Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
672/14.9GCVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE CRIME
Decisão: CONCEDIDA A QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO
Legislação Nacional: ARTS. 135.º E 182.º DO CPP; ART. 78.º DO DL. N.º 298/92 DE 31-12
Sumário: Suscitado o incidente e chegado ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no n.º 3 do art. 135.º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 I. RELATÓRIO

Nos autos de inquérito nº 672/14.9GCVIS, que correm termos na 2ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Viseu, são investigados factos eventualmente preenchedores do tipo do crime de, furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 2, a), do C. Penal, tendo por objecto a subtracção da quantia de € 120.000 e de vários objectos de ouro que o ofendido guardava num cofre disfarçado num lote de madeira colocado numa dependência de oficina sua.

 

Na participação, o denunciante e ofendido A... aponta como suspeito da prática dos factos o denunciado B... , seu antigo trabalhador na oficina.

A Digna Magistrada do Ministério Público, invocando a necessidade, para a continuação da investigação, do conhecimento das contas bancárias tituladas pelo suspeito, cônjuge e filhos e respectivos extractos, e do conhecimento da existência de incumprimento bancário ou financeiro por parte deles, requereu ao Mmo. Juiz de Instrução que, nos termos dos arts. 182º, nº 2 do C. Processo Penal e 80º, nº 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, solicitasse ao Banco de Portugal o envio dos elementos pretendidos.

Por despacho de 19 de Março de 2015 o Mmo. Juiz de instrução determinou a notificação do Banco de Portugal para que procedesse ao envio das informações pretendidas.

Por requerimento entrado em juízo em 16 de Abril de 2015, o Banco de Portugal informou não dispor de elementos que permitam a identificação do cônjuge do suspeito e não possuir na sua base de dados informação sobre movimentos e saldos bancários. E quanto à pretendida informação sobre «algum incumprimento bancário ou financeiro» deduziu escusa, ao abrigo do disposto no art. 135º do C. Processo Penal, até levantamento do respectivo segredo profissional.

A Digna Magistrada do Ministério Público promoveu então a quebra do segredo profissional.

Por despacho de 8 de Maio de 2015 o Mmo. Juiz de instrução Criminal, reconhecendo como legítima, ao menos, implicitamente, a recusa do banco, suscitou o incidente.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Dec. Lei nº 298/92 de 31 de Dezembro, com a última alteração introduzida pela Lei nº 16/2015, de 24 de Fevereiro e, doravante, designado por RGICSF), estabelece no seu art. 78º, nº 1, que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. E no seu nº 2 do mesmo artigo dispõe que estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes de clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras operações bancárias.

As excepções ao dever de segredo encontram-se previstas no art. 79º do mesmo RGICSF. Assim, nos termos do seu nº 1, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição bancária podem ser revelados mediante autorização do cliente transmitida à instituição.

Quando não exista autorização do cliente devidamente comunicada à instituição, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os factos e elementos sujeitos ao segredo só podem ser revelados:

- Ao Banco de Portugal, à Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização de Investidores, no âmbito das respectivas atribuições;

- Nos termos previstos na lei penal e na lei processual penal; e

- Quando exista disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

No que especificamente respeita ao Banco de Portugal, regem os arts. 80º e 81º. Estabelece o primeiro, na parte relevante:

1 – As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.

2 – Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.

(…).

Já o art. 81º, regulando a cooperação do Banco de Portugal com outras entidades, dispõe não obstar ao segredo a troca de informações com determinadas entidades, nacionais e europeias (nºs 1 e 2), a troca de informações no âmbito de acordos de cooperação (nº 3), a troca de informações, e a troca de informações entidades não nacionais nem europeias (nº 4), observados os respectivos requisitos.

O desrespeito do segredo pode fazer incorrer o agente na prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195º do C. Penal (cfr. ainda art. 84º do RGICSF).

            2. O C. Processo Penal regula o incidente de quebra do segredo profissional nos seus arts. 135º e 182º.

Dispõe o nº 1 do art. 135º que, os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

Na sequência de algumas divergências a que o Acórdão Uniformizador nº 2/2008, de 13/02/2008 [DR I, de 31 de Março de 2008] pôs termo, o processamento do incidente obedece, no essencial, aos seguintes passos:

- Invocada a escusa por quem a lei permite ou impõe que guarde segredo e existindo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, o tribunal onde ela foi deduzida procede às averiguações necessárias e caso conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento ou da forma de cooperação pretendida (art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal);

- Sendo legítima a escusa, compete ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente foi suscitado decidir sobre a quebra do segredo (art. 135º, nº 3 do C. Processo Penal), depois de ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (nº 4 do mesmo artigo).

Suscitado o incidente e chegado este ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do art. 135º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.

Tais interesses são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, a reserva da vida privada e a tutela da relação de confiança o banco e os seus clientes, devendo a opção a efectuar ter por base padrões objectivos e controláveis.

Posto isto.

3. Face ao disposto no art. 78º do Regime Geral referido, dúvidas não subsistem de que os elementos pretendidos pela Digna Magistrada do Ministério Público, supra referidos, estão cobertos pelo segredo bancário. E dúvidas também não há de que o Mmo. Juiz de instrução, não obstante os termos do despacho que proferiu, reconheceu a legitimidade da recusa do Banco de Portugal.

Dos elementos disponíveis nos autos resulta que neles se investiga, além do mais, a prática de crime de furto qualificado, punível pena de prisão de dois a oito anos.

Não existe norma que expressamente limite o segredo bancário, no âmbito deste crime.

Pretende a Digna Magistrada do Ministério Público a identificação das contas bancárias de que seja titular o suspeito, o cônjuge e os filhos bem como, informação sobre a existência de incumprimento bancário ou financeiro por parte deles.

O Banco de Portugal, na resposta enviada ao inquérito, começou por informar não dispor de elementos que lhe permitam a identificação do cônjuge do suspeito e não possuir na sua base de dados informação sobre movimentos e saldos bancários. Resulta do nº 2 do art. 81º-A do RG que a base de dados organizada e gerida pelo Banco de Portugal não contém elementos de informação relativos a extractos de contas e movimentos bancários, mas apenas, elementos relativos à identificação da conta, do seu domicilio, dos seus titulares, das condições de movimentação e datas de abertura e encerramento.  

Assumem indiscutível relevo para a investigação os elementos pretendidos já que serão, muito provavelmente, os únicos aptos a permitirem a densificação das suspeitas do ofendido relativamente à autoria dos factos.

Assim, tendo em conta os interesses em confronto, e efectuando a sua ponderação com referência ao concreto crime em investigação, entendemos que o interesse público da investigação criminal e da realização da justiça deve prevalecer sobre o interesse de natureza privada que subjaz ao segredo bancário, com a consequente quebra do mesmo.

Entendemos, por outro lado que, pelo menos, na actual fase da investigação [face aos elementos disponibilizados no presente incidente], a quebra do segredo bancário deve abranger apenas o suspeito e o seu cônjuge, logo que identificado, e terá por objecto os elementos pretendidos, com excepção do envio dos extractos de movimentos das contas bancária a partir de 13 de Agosto de 2014, por ser manifesto deles não dispor o Banco de Portugal.   


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal da Relação em conceder a quebra do segredo bancário, dispensando os funcionários do Banco de Portugal de tal dever, a fim de serem prestados os elementos pretendidos pelo Ministério Público, a saber:

- A identificação das contas bancárias tituladas pelo suspeito B... e seu cônjuge, que para o efeito, deverá ser devidamente identificado;

- A existência de incumprimento bancário ou financeiro por parte do suspeito e de seu cônjuge.

Incidente sem tributação.


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Coimbra, 16 de Junho de 2015


(Heitor Vasques Osório - relator)


(Fernando Chaves - adjunto)