Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/10.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
MORTE
COLISÃO DE DIREITOS
CEMITÉRIO
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 70º, 71º E 335.º NºS 1 E 2 DO CÓDIGO CIVIL E N.º 1 DO ARTIGO 28.º DO DECRETO-LEI 280/2007 DE 7 DE AGOSTO
Sumário: I - Constitui um direito de personalidade o direito a manter uma relação espiritual com os familiares já mortos.

II - Encontra-se a exercer esse direito quem junto à campa, em recolhimento, rezando ou não rezando, está com o falecido e coloca um ramo de flores no seu túmulo.

III - A circunstância de haver uma concessão da sepultura a favor de outra pessoa não é impeditiva deste direito de personalidade ser exercido do modo atrás referido.

IV - Estando os cemitérios integrados no domínio público, quem tem a seu favor a concessão da uma sepultura não pode impedir que outros, nomeadamente os filhos da pessoa aí sepultada, se aproximem dessa campa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A..., B... e C... instauraram, na comarca da Guarda, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra D...e E..., pedindo que se condene os réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que consubstanciem a violação da obrigação natural de permitir o culto aos demais descendentes da falecida F...[1].

Alegaram, em síntese, que as autoras e a ré mulher são filhas de F..., que faleceu em 2004 e que está sepultada numa sepultura que, em 2006, a ré adquiriu à Junta de Freguesia do .... Após essa data a ré vem impedindo as autoras de colocar flores e outros objectos no túmulo de sua mãe, de aí rezarem e de se aproximarem do respectivo talhão.

Os réus não contestaram.

Foi proferido despacho saneador-sentença em que se decidiu:

Pelo exposto, o tribunal julga a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve os réus do pedido.

Inconformados com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª As A.A. e Ré são irmãs e esta impede-as de colocar flores, rezar, velar e aproximar-se da sepultura da sua mãe.

2.ª Diz que é dona do talhão ...

3.ª E o Tribunal não encontrou “in casu” mais do que uma obrigação sem vínculo de coercibilidade ...

4.ª As A.A. não se conformam com o teor da douta sentença recorrida.

5.ª Estamos no domínio dos direitos de personalidade, de culto, mas também dos usos e dos direitos, liberdades e garantias.

6.ª O direito de culto previsto no n.º 1 do artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa traduz-se numa dimensão da liberdade religiosa, compreendendo o direito individual ou colectivo de praticar os actos externos de veneração próprios de uma determinada religião.

7.ª O direito de culto é inviolável.

8.ª Duas filhas que pretendem praticar os actos externos de veneração próprios de uma cultura, de uma religião, em face da morte da sua mãe, vêem violado o seu direito de culto.

9.ª Estamos também perante um uso de uma dada comunidade – o que é facto notório carecendo de ser invocado.

10.ª Este uso foi construído com base no respeito absoluto pelos princípios da boa fé, razão pela qual se convocam para a aplicação ao caso concreto.

11.ª Quanto ao direito de propriedade das R.R. ninguém o questionou nem se pretende fazer.

12.ª Apenas se questiona o uso ou conteúdo desse mesmo direito de propriedade, pois ele não é absoluto.

13.ª O exercício do direito de propriedade pelos R.R. é contrário ao direito, ilegítimo e inapropriado.

14.ª Tal como tem vindo a ser exercido, esse direito de propriedade excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes e pelo fim económico e social do direito.

15.ª Logo, este comportamento seria sempre em abuso de direito por parte dos R.R..

16.ª Violou o Tribunal “a quo” os artigos 41.º-1 da C.R.P. o 27.º, 70.º e 71.º do C.C. e mal interpretou os artigos 397.º e 398.º do mesmo diploma legal.

Terminam pedindo a revisão da douta sentença condenando os R.R. a reconhecerem às A.A. o direito de prestar culto à memória de sua falecida mãe, não as impedindo de colocar flores, lápides e rezar[2] junto à campa.

Os réus contra-alegaram sustentando a improcedência do recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[3], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se aos autores assiste o direito de colocar flores, lápides e rezar junto à campa da mãe das autoras e sogra do autor.


II

1.º


Nos termos do disposto nos artigos 713.º n.º 2 e 659.º n.º 3, o tribunal da Relação pode aditar factos aos factos dados como provados pelo tribunal a quo, desde que, evidentemente, se verifiquem os pressupostos enunciados nesta última norma.

Em virtude do efeito cominatório semi-pleno decorrente da circunstância de os réus não terem contestado[4], deve ter-se por confessado[5] o alegado no artigo 2.º da petição inicial, isto é que a 16 de Novembro de 2004 F... foi sepultada no talhão ... do cemitério de ....

E sendo este facto relevante para a decisão das questões colocadas nos autos, ele será levado aos factos provados.


2.º

Estão provados os seguintes factos:

a) Consta do assento de nascimento n.º 20677 do ano de 2008, lavrado na Conservatória do Registo Civil da ..., que A... nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1950 e é filha de G... e de F... ;

b) Consta do assento de nascimento n.º 813 do ano de 1942, lavrado na Conservatória do Registo Civil da ..., que B... nasceu no dia 27 de Julho de 1942 e é filha de G... e de F..., constando ainda averbado o seu casamento com C...;

c) Consta do assento de nascimento n.º 883 do ano de 1945, lavrado na Conservatória do Registo Civil da ..., que D... nasceu no dia 17 de Junho de 1945 e é filha de G... e de F..., constando ainda averbado o seu casamento com E...;

d) Consta do assento de óbito n.º 19/2005, do ano de 2005, lavrado na Conservatória do Registo Civil da ..., que F... faleceu no dia 12 de Novembro de 2004, no estado civil de viúva de G...;

e) A 16 de Novembro de 2004 F... foi sepultada no talhão ... do cemitério de ...;

f) A Junta de Freguesia do ..., no dia 29 de Abril de 2006, concedeu a D... o direito ao uso de uma sepultura simples e perpétua, onde se encontra sepultada a sua mãe, F..., tendo-lhe concedido o respectivo alvará para garantia dos seus direitos;

g) Após tal facto, a ré vem impedindo as autoras, suas irmãs, de colocar flores na sepultura da sua mãe;

h) E de aí rezar e velar pela sua mãe;

i) Não lhes permitindo sequer aproximarem-se do talhão.


3.º

Os autores pedem que os réus sejam condenados a abster-se de praticar quaisquer actos que consubstanciem violação da obrigação natural de permitir o culto aos demais descendentes da falecida F....

A redacção dada ao pedido é pouco clara e algo ambígua. Mas, face ao alegado pelos autores no artigo 18.º da petição inicial[6] e ao que afirmam na parte final das suas alegações de recurso[7], deve interpretar-se o pedido no sentido de que eles pedem a condenação dos réus a absterem-se de os impedir de, ao prestarem culto à memória da falecida F..., colocarem flores e lápides na campa desta, de se aproximarem da respectiva sepultura e de junto a ela rezarem.


4.º

O artigo 26.º n.º 1 dispõe que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, acrescentando o seu n.º 3 que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

A revisão processual operada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 Dezembro, tomou posição na controvérsia que até então se vinha debatendo sobre a legitimidade, passando esta a ser apreciada sob a perspectiva da relação da parte com o objecto da acção, aferida pela utilidade que da sua procedência ou improcedência possa advir para as partes e a posição que elas têm na relação jurídica controvertida, tal como o autor a configura. Assim, quem tem interesse em discutir o litígio são os sujeitos da relação jurídica controvertida tal como é apresentada no conflito de interesses pelo autor. A legitimidade processual -pressuposto de que depende o conhecimento do mérito da causa (art. 288º, nº 1, al. d) C.Pr.Civil)- e que se não confunde com legitimidade substantiva -requisito de procedência do pedido-, afere-se pelo interesse directo do autor em demandar e pelo interesse directo do réu em contradizer[8].

No caso dos autos, verifica-se que, no relato feito nos artigos 6.º a 18.º na petição inicial, os sujeitos da relação controvertida são apenas as autoras e a ré. Nesta questão somente estão envolvidas aquelas e esta.

Nada se alega, quer no sentido de o autor também pretender aproximar-se e rezar junto da sepultura da sua sogra e de aí querer colocar flores ou de querer fazer qualquer outra coisa, quer de a ré o impedir de assim agir. Também nada se alegou em relação ao réu, nomeadamente que ele impede as autoras de praticarem qualquer acto relacionado com a sepultura da mãe destas.

É, assim, claro que o autor e o réu não são sujeitos da relação controvertida, o mesmo é dizer que são partes ilegítimas[9].


5.º

Conforme resulta dos factos provados, F... faleceu em 2004, está sepultada no talhão ... do cemitério de ... e em 2006 a Junta de Freguesia do ... concedeu à ré o direito ao uso dessa sepultura[10].

Os cemitérios não figuram no rol de coisas pertencentes ao domínio público que se encontra no n.º 1 do artigo 84.º da Constituição da República e, por outro lado, o actual Código Civil não contém norma idêntica ao artigo 380.º do Código Civil de Seabra, onde se definia o que é coisa pública e se enumerava, a título exemplificativo, algumas delas.

Assim, e na ausência de qualquer outra norma, tem que se concluir que não há texto legal que expressamente declare a dominialidade dos cemitérios (…). Parece-nos, porém, que os cemitérios municipais e paroquiais são bens do domínio público, porquanto: a) são objecto de propriedade de uma autarquia local; b) são destinados à inumação dos cadáveres de todos os indivíduos que falecerem na circunscrição, não sendo lícita a recusa da sepultura fora dos casos especiais previstos na lei: c) é livre o acesso de todos ao campo santo[11]. Devemos, então, ter como certo que os cemitérios são bens do domínio público[12].

Sendo os cemitérios coisa pública, destinada, como é próprio da natureza destas, a ser fruída por todos[13], não se vê com que fundamento pode a ré impedir as autoras, ou mesmo qualquer outra pessoa, de se aproximarem do talhão onde está a sepultura de F... e de, junto desta, aí rezarem.

Na verdade, as coisas públicas não pertencem a ninguém, pelo que não constituem objecto de um direito de propriedade, tendo a Administração sobre elas apenas o direito de guarda e superintendência e o dever de as conservar no interesse geral. Por isso é que o uso geral (ou comum) de uma coisa pública consiste no modo da sua utilização que é declarado lícito para todos ou para uma categoria genericamente delimitada de particulares[14]; no uso do domínio público há uma liberdade de actuação[15].


6.º

As autoras e a ré são filhas de F..., o que significa que aquelas são familiares desta, por com ela terem uma relação de parentesco[16]. Ora, essa relação de família não cessa com a morte; as filhas de F... não deixaram de o ser quando esta faleceu.

O artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República dispõe que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação[17].

E o artigo 70.º n.º 1 do Código Civil estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, dizendo o seu n.º 2 que independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Ora, o n.º 1 do art. 70.º do Código Civil toma como bem jurídico, objecto de uma tutela geral, a personalidade física ou moral, dos indivíduos, isto é os bens inerentes à própria materialidade e espiritualidade de cada homem[18]. Com efeito, esta norma tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os factores que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis[19].

Estes direitos, como se vê, abrangem aspectos tanto físicos, como espirituais[20] e asseguram juridicamente a (…) dignidade[21] do ser humano.

Por outro lado, a sua tipificação não é exaustiva, mas simplesmente exemplificativa. Os tipos de direitos de personalidade previstos na lei e enunciados pela doutrina são tipos representativos. Quer isto dizer que, para além dos tipos enunciados, outros podem surgir, e que os que são referidos correspondem apenas a casos especialmente exemplares e elucidativos que servem para exprimir modelos de comportamentos, são casos paradigmáticos de tutela da personalidade. (…) Os direitos de personalidade podem ser tipificados, como paradigmas mais importantes da tutela da personalidade e como caracterizações mais relevantes do princípio do respeito pela personalidade, em direito à vida, à integridade física e psíquica, à inviolabilidade moral, à honra e à privacidade[22]. Realmente não existe uma taxatividade, um numerus clausus, de direitos de personalidade. Bem pelo contrário, é possível, tanto por via científica como por via jurisprudencial, que novos direitos se consigam identificar[23].

E sucede até que, conforme resulta do n.º 1 do artigo 71.º do Código Civil, o legislador entendeu que há direitos de personalidade que devem gozar de protecção mesmo depois da morte, tendo, certamente, por subjacente a ideia de que a personalidade de uma pessoa falecida continua a viver (…) neste mundo na memória (…) de um maior ou menor círculo de pessoas[24].

É sabido que o Homem sempre respeitou a morte, certamente por a temer[25], e homenageou os já falecidos. Todas as sociedades têm procurado, das mais variadas maneiras, honrar os seus mortos, nomeadamente recorrendo a construções, esculturas, pinturas, símbolos, dedicando-lhes um dia do calendário ou ainda, como dizia Johan Huizinga, adornando a alma com as roupagem do pesar[26]. Há mais de 6.000 anos, na cultura megalítica, já se praticava o culto funerário, erguendo-se monumentos tumulares colectivos, os conhecidos dólmens, o que é bem revelador da necessidade, quase instintiva, que logo as primeiras sociedades sentiram de estabelecer uma relação com os que vão morrendo, necessidade essa que se manteve, ininterruptamente, até aos nossos dias. E o desrespeito pelos mortos é, em certas circunstâncias, objecto de censura penal[27]. Existe, sem dúvida, uma grande sensibilidade social com as questões relativas aos mortos. Veja-se, a título de exemplo, as dramáticas consequências do decreto de Setembro de 1844, do governo de Costa Cabral, que proibiu os enterros nas igrejas e impôs a realização dos mesmos em cemitérios[28] construídos em campo aberto[29].

Há uma relação espiritual, muitas vezes com uma componente religiosa, mas não necessariamente com ela, que, desde tempos imemoriais, os vivos mantêm com os mortos, procurando, por essa via, uma proximidade e um contacto que a dimensão física das coisas, ou, como lhe chamou Camões, a lei da morte, já não consente. Essa relação espiritual é, em regra, mais intensa e mais querida quando os que ainda vivem e os que já morreram estão unidos por laços familiares, os quais fazem pressupor a existência de fortes vínculos afectivos; quando a pessoa falecida é um dos nossos, o desejo de estar com ela é, em regra, mais intenso. É um sentimento inerente à condição humana.

À luz do que se deixa dito, deve concluir-se que os direitos de personalidade, na sua vertente moral, englobam o direito a manter uma relação espiritual com os familiares falecidos, nomeadamente com os que são próximos, como é o caso dos pais. Essa relação espiritual pode concretizar-se de diversas formas, algumas das quais passam pela proximidade física da sepultura onde o falecido se encontra sepultado, para junto a essa campa, em recolhimento, rezando ou não rezando, se estar com aquele que já não se pode abraçar. E, sendo o Homem também produto da cultura em que se insere, na nossa sociedade a colocação de flores e de lápides nos túmulos tem que ser tida como uma outra forma de estabelecer essa relação espiritual com aqueles a quem Átropos já cortou o fio da vida.

Aqui chegados, não pode deixar de se reconhecer às autoras o direito de personalidade de se relacionarem espiritualmente com a sua mãe já falecida, não se acompanhando, por isso, o Meritíssimo Juiz quando considerou que estamos na presença de uma obrigação natural[30].


7.º

Se, como já se referiu, é verdade que os cemitérios são coisa pública, é igualmente certo que, no caso em apreço, a ré tem uma concessão da sepultura onde se encontra sepultada F....

Ora, os bens públicos admitem também um uso privativo. Este é o modo de utilização do domínio que é consentida apenas a alguma ou algumas pessoas determinadas, com base num título jurídico individual[31], que pode ser a concessão[32].

As concessões de uso privativo respeitam apenas à utilização, não implicam gestão. (…) No cemitério público adquirirá o concessionário o direito a possuir privativamente e in perpetuum o terreno de uma sepultura ou para a construção de um jazigo. (…) Sendo impossível a constituição de direitos reais privados sobre coisas sujeitas à propriedade pública, não há na cedência do terreno para sepultura perpétua ou jazigo outra coisa mais senão a concessão de uso privativo sobre uma parte da coisa pública[33].

Assim, não esquecendo o disposto no n.º 1 do artigo 28.º[34] do Decreto-Lei 280/2007 de 7 de Agosto, tem que se reconhecer que a ré tem poderes exclusivos de fruição da sepultura[35]; ela tem o direito ao seu uso privativo[36].


8.º

Provou-se que a ré, desde que obteve a concessão da sepultura onde está sepultada D..., vem impedindo as autoras de aí colocarem flores e de rezarem junto a ela, não lhes permitindo, sequer, aproximarem-se do talhão[37]. E, na presente acção, as autoras manifestam a vontade de colocar lápides na sepultura.

Como já se disse, o colocar flores e lápides naquela sepultura, o rezar junto a ela e o aproximar do talhão são actos que consistem no exercício do mencionado direito de personalidade das autoras.

Se é evidente que as autoras ao rezarem junto à sepultura de F...ou ao aproximarem-se desta não interferem minimamente com os direitos da ré emergentes da concessão, o mesmo já não se passa com a colocação de flores ou de lápides por cima da campa, uma vez que, por esta via, se praticam actos sobre a coisa concessionada.

O n.º 1 do artigo 335.º do Código Civil dispõe que havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, acrescentando o seu n.º 2 que se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Na colisão de um direito de personalidade com um de concessão de uma sepultura, estamos na presença de direitos de diferentes espécies. E, neste cenário, aquele prevalece sobre este[38].

No entanto, isso não é sinónimo de que o primeiro se impõe, de forma absoluta, em relação ao segundo, como que o aniquilando em termos práticos; o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses[39]. É, assim, indispensável ponderar os direitos em conflito e a ponderação deve ser feita em concreto[40], tendo em vista alcançar uma solução em que os direitos se não prejudiquem mutuamente[41], ou, não sendo possível atingir esse objectivo, em que o prejuízo seja o menor possível. Há que encontrar a concordância prática, isto é, devem procurar-se soluções concretas que harmonizem, na medida do possível, os preceitos divergentes e que distribuam de modo proporcional os custos do conflito[42].

Com efeito, essencial é aqui que as medidas a tomar sejam orientadas pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, traduzindo-se o primeiro na adequada (proporção) entre os valores em análise, aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro; o "princípio da razoabilidade" vedando o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva[43].

No caso dos autos, na procura do equilíbrio de interesses que o artigo 335.º do Código Civil exige, não se deve autorizar a prática de actos que importem alterações na sepultura, vista esta como uma construção, por mais simples que ela seja, de carácter permanente ou tendencialmente duradouro, por isso colidir com uma parte importante dos direitos da ré decorrentes da concessão. Tanto mais que é possível as autoras exercerem o citado direito de personalidade sem comprimir, dessa forma, o direito da concessionária, visto que o exercício daquele não passa necessariamente pela prática de tais actos. Já os actos que tiverem repercussões efémeras na edificação que é a sepultura, justamente por essa natureza temporária, devem ser autorizados.

Finalmente há que considerar que a própria ré também tem, nesta matéria, um direito de personalidade, em tudo igual ao das autoras, que cumpre respeitar, nomeadamente não permitindo a prática de actos por parte destas que, pela sua frequência ou pelos efeitos na coisa que é a sepultura, possam limitá-lo de forma significativa.

Ponderado tudo o que se deixou dito, deverá reconhecer-se que as autoras têm o direito de colocarem, de tempos a tempos, designadamente em dias com carga simbólica, um ramo de flores na sepultura da sua mãe. Mas, já não se lhes reconhece a faculdade de colocarem lápides ou vasos de flores nessa mesma sepultura.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se:

a) o autor parte ilegítima e absolve-se os réus da instância relativamente a ele, ficando esta, nessa parte, extinta.

b) o réu parte ilegítima e absolve-se este da instância.

c) parcialmente procedente o recurso e condena-se a ré a abster-se de impedir as autoras de, ao prestarem culto à memória da falecida F..., colocarem, de tempos a tempos, um ramo de flores na campa desta, de se aproximarem dessa sepultura e de junto a ela rezarem, revogando-se, neste segmento, a decisão recorrida.

d) improcedente, na restante parte, o recurso, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

Custas pelos autores e pela ré, na proporção de ¼ para aqueles e de ¾ para esta

                                        
António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida   


[1] Foi formulado um segundo pedido que não foi admitido por cumulação ilegal de pedidos, tendo a respectiva decisão já transitado.
[2] Por lapso, na parte final das suas alegações, os autores escreveram regar em vez de rezar.
[3] São do Código de Processo Civil, na sua versão posterior ao Decreto-Lei 303/2007 de 24-8, todos os artigos adiante citados sem qualquer outra menção.
[4] Cfr. artigo 484.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
[5] Ficta confessio.
[6] Cfr. folha 6.
[7] Cfr. folha 74.
[8] Ac. S.T.J. de 16-11-06 no Proc. 06B3630, www.gde.mj.pt.
[9] Importa não esquecer que, conforme o estabelecido no artigo 495.º do Código de Processo Civil, esta excepção dilatória é de conhecimento oficioso.
[10] Quanto a esta concessão poderá ver-se os artigos 33.º e seguintes do Decreto 48770 de 18-12-1968 e o artigo 34.º n.os 4 d) e 6 d) da Lei 5-A/2002 de 11-1.
[11] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9.ª Edição, pág. 919. Igual opinião tem Ana Gonçalves Moniz, O Domínio Público o Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, pág. 271 e seguintes. Neste sentido pode ainda ver-se Ac. Rel. Guimarães de 25-5-2005 no Processo 987/05, em www.colectaneadejurisprudência.com, Ac. Rel. Porto de 25-9-1997 no Proc. 9730759, Ac. Rel. Porto de 8-11-1999 no Proc. 9951037, Ac. Rel. Porto 25-11-2002 no Proc. 0251136 e Ac. Rel. Porto de 12-5-2009 no Proc. 3376/08.8TJVNF-A.P1, estes em www.gde.mj.pt.
[12] É, aliás, isso que está subjacente às várias versões que o artigo 4.º do Decreto 44220 de 3-3 já teve, designadamente na mais recente que foi introduzida pelo Decreto-Lei 168/2006 de 16-8, e ao artigo 34.º n.º 4 c) da Lei 5-A/2002 de 11-1.
[13] Cfr. artigo 25.º n.º 1 do Decreto-Lei 280/2007 de 7-8.
[14] José Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2.ª edição, pág. 336, 343, 344 e 345.
[15] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo II, 2.ª Edição, pág. 53.
[16] Cfr. artigos 1576.º, 1578.º e 1579.º do Código Civil.
[17] Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, pág. 461, não é por acaso que este preceito surge imediatamente a seguir ao direito à vida e ao direito à integridade pessoal, reconhecendo, desse modo, a importância atribuída pelo legislador constitucional à tutela da personalidade.
[18] Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, Reimpressão, pág. 106.
[19] Ac. Rel. Lisboa de 18-3-2010 no Proc. 606/05, www.colectaneadejurisprudencia. com.
[20] Capelo de Sousa, obra citada, pág. 115.
[21] José Alberto González, Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 95.
[22] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do direito, 5.ª Edição, pág. 48.
[23] José Alberto González, obra citada, pág. 95.
[24] Hubmann, citado por Capelo de Sousa na obra mencionada, pág. 195.
[25] Certa mihi mors, incerta est funeris hora.
[26] Citado por Ana Rodrigues Oliveira, Rainhas Medievais de Portugal, pág. 537.
[27] Cfr. nomeadamente os artigos 253.º e 254.º do Código Penal, que punem, respectivamente, o impedimento ou perturbação de cerimónia fúnebre e a profanação de cadáver ou de lugar fúnebre.
[28] Por decreto de Setembro de 1835 tinha sido determinado que se estabelecessem cemitérios públicos em todas as povoações.
[29] É certo que essa decisão foi muito aproveitada e empolada politicamente por se estar ainda na ressaca de uma guerra civil, e na antecâmara de outra (a Patuleia), e por o país se encontrar profundamente dividido.
[30] O Meritíssimo Juiz parece ter aderido ao entendimento expresso no Ac. do STJ de 19-12-2006 no Proc. 06A4210, que cita. Porém a situação aí em apreço é um pouco diferente da destes autos. Nesse processo os aí autores são pais da pessoa falecida e a ré é a sua viúva. A urna está depositada num gavetão de um cemitério, do qual, segundo o que figura nos factos provados, a ré é dona. E os autores formularam o pedido de condenação da ré a facultar-lhes o acesso à urna do seu filho, abrindo a porta do gavetão quando eles o pretendam ou cedendo-lhes a chave do mesmo.
[31] José Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, obra citada, pág. 344.
[32] Cfr. artigo 27.º do Decreto-Lei 280/2007 de 7-8. E no que se refere aos jazigos e sepulturas pode ainda ver-se o artigo 34.º n.º 6 d) da Lei 5-A/2002 de 11-1.
[33] Marcello Caetano, obra citada, pág. 938 e 940.
[34] Através de acto ou contrato administrativos podem ser conferidos a particulares, durante um período determinado de tempo, poderes exclusivos de fruição de bens do domínio público, mediante o pagamento de taxas.
[35] Neste sentido pode ver-se os já citados Ac. Rel. Porto 25-11-2002 e de 12-5-2009.
[36] Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 54.
[37] É tardia a impugnação destes factos que a ré pretende fazer nas suas contra-alegações. Se os queria impugnar tinha que ter contestado.
[38] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª Edição pág. 291 e 292, dá prevalência aos direitos de personalidade em relação, quer ao de propriedade, quer aos meramente económicos e nos Ac. STJ de 9-6-1996 no Proc. 87.941 e Ac. STJ de 22-9-2009 no Proc. 161/05 (www.colectaneadejurisprudencia.com) reconheceu-se a prevalência de um direito de personalidade sobre o de exercício de uma actividade económica.
[39] Ac. STJ de 17-12-2009, no Proc. 4822, www.colectaneadejurisprudencia.com.
[40] Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 292.
[41] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 300.
[42] Ac. STJ de 17-12-2009 já citado.
[43] Rel. Coimbra de 19-2-2004, no Proc. 2094/03, www.colectaneadejurisprudencia. com.