Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/09.2GDAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: NÃO TITULAR DE LICENÇA/CARTA DE CONDUÇÃO
CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE – BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 69º Nº 1 CP
Sumário: A proibição de conduzir veículos com motor é aplicável ao infrator que não é possuidor de carta ou licença de condução.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO


1 – Pugnando pela alteração da decisão judicial documentada na sentença junta a fls. 81/86, quanto à vertente opcionalmente omissiva de imposição de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados ao arguido (romeno) A..., na circunstância condenado pelo acumulativo cometimento dum crime de condução automóvel sem habilitação legal (p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. n.º 2/98, de 03/01) e dum outro de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal) – respectivamente às penas concretas de 90 e 60 dias de multa, à razão diária de € 5,00, e à pena conjunta/unitária (resultante da unificação, em cúmulo jurídico daqueloutras) de 120 dias de multa, à mesma taxa diária – dela recorre o MINISTÉRIO PÚBLICO, fundando-se, para tanto, na argumentação aduzida na correspondente peça motivacional documentada a fls. 92/97, (nesta sede tida por reproduzida)[1], de cujo conteúdo extraiu, a final, o seguinte quadro-conclusivo (por transcrição):
«[…]
1ª) Resulta do art. 69º, nº 1, a) do CP que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é sempre aplicada ao agente que seja condenado por condução de veículo em estado de embriaguez, não fazendo a lei depender tal condenação da titularidade ou não de licença ou carta de condução;
2ª) Decorre também, claramente, do art. 126º, nº 1, d) do CE que quem não é titular de licença/carta de condução pode ser proibido de conduzir;
3ª) Por outro lado, tendo em conta a natureza penal e as finalidades de prevenção que estão na base da aplicação da proibição de conduzir (assegurar, de forma reforçada, a tutela dos bens jurídicos e evitar que o agente do crime volte a praticar factos semelhantes), não faria qualquer sentido que o legislador quisesse apenas impô-la quando o condenado fosse titular de um documento que o habilitasse a conduzir, na medida em que, estando-o ou não, persistem as razões de política criminal que justificam a necessidade da sua imposição;
4ª) Acresce que o agente que conduzir sem carta ou licença e estiver proibido de o fazer por força da sua condenação na dita pena acessória, viola dois bens jurídicos distintos: a segurança da circulação rodoviária (protegido pela condução em estado de embriaguez) e a autoridade pública, mais precisamente o interesse na não frustração de uma sanção imposta por sentença criminal (protegido pelo crime de violação de proibições inserto no art. 353º do CP), cometendo, nessa medida, em concurso efectivo, (aqueles) dois ilícitos criminais;
5ª) Para além disso, a imposição desta pena acessória justifica-se, também, pela necessidade de evitar um tratamento desigual dos condutores que conduzam em estado de embriaguez e a concessão de um injustificado privilégio a quem praticou um comportamento mais grave (por conduzir em estado de embriaguez e sem título de condução);
6ª) No caso em apreço, uma vez que o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º nº 1 do CP, deve ser-lhe aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no art. 69º, nº 1 do CP, cuja medida concreta, atendendo aos critérios do art. 71º do CP, se deve fixar em período não inferior a 3 meses e 15 dias;
7ª) Não o entendendo assim e deixando de condenar o arguido nos moldes referidos, a sentença recorrida violou a norma constante do art. 69º, nº 1, a) do CP;
8ª) Face ao exposto, deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que condene o arguido nos termos explanados.
[…]»

2 – Nesta Relação foi emitido douto parecer por Ex.mo magistrado do mesmo órgão da administração da justiça (M.º P.º), em sentido concordante com a tese e pretensão recursórias, (vd. peça de fls. 178/180 v.º).

3 – Realizados os pertinentes actos/formalidades legais, e mantendo-se a regularidade da instância, nada obsta à legal prossecução processual.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II.A – CONTEXTUALIZAÇÃO


Com vista à cabal avaliação da suscitada ilegalidade da enunciada vertente decisória – omissão de imposição de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados ao arguido A... –, importa reter a essencialidade do enunciado fáctico tido por adquirido pelo julgador, firmado no respectivo quadro da questionada sentença[2]:
«[…]
1. No dia 15/11/2009, pelas 02h30m, o arguido A... conduzia um veículo automóvel, ligeiro de passageiros,  pela E.M. n.º 333-1, em Amoreira da Gândara (freguesia), Anadia (concelho).
2. O arguido era portador de uma taxa de álcool no sangue (T.A.S.) de 1,35 g/l.
3. O arguido não se encontra legalmente habilitado para conduzir aquele veículo na via pública.
4. Sabia o arguido que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que é proibida a condução de veículos na via pública sob a influência do álcool e, ainda assim, decidiu-se a conduzir o veículo nas condições referidas.
5. O arguido bem sabia que não era titular de documento legal que o habilitasse ao exercício da condução daquele veículo e, ainda assim, decidiu-se a conduzi-lo nas circunstâncias referidas.
6. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e que, assim, incorria em responsabilidade criminal.
7. Do registo criminal do arguido não consta qualquer inscrição.
[…]»

II.B – AVALIAÇÃO

§ 1.º


Com o devido respeito por diversa opinião, afigura-se-nos como incontornável a obrigatoriedade de cominação de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados a qualquer (judicialmente) reconhecido agente dalgum dos crimes enunciados sob as diversas alíneas do n.º 1 do art.º 69.º do Código Penal, designadamente – no que ora importa – do de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal), encontre-se ou não legalmente habilitado à respectiva tripulação, mormente por carta de condução, como sustentado pelo recorrente (M.º P.º), e, vem sendo generalizadamente ajuizado pela jurisprudência nacional – de cujo sentido exemplificativamente se destacam os seguintes representativos arestos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/03/2003, (proc. n.º 03P505); desta Relação de Coimbra, de 09/02/2011, (proc. n.º 43/09.9GATBU.C1), e de 04/05/2011, (proc. n.º 181/10.5GBAND.C1)[3]; do Tribunal da Relação do Porto, de 10/03/2010, (proc. n.º 1440/09.5GBAMT.P1), de 14/04/2010, (proc. n.º 1189/09.9PAPVZ.P1), e de 07/07/2010, (proc. n.º 1/09.3PCMTS.P1); do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/05/2010, (proc. n.º 138/10.6SFLSB.L1-3), e de 13/09/2011, (proc. n.º 204/10.8GATVD.L1-5); do Tribunal da Relação de Évora, de 26-05-2009, (proc. n.º 141/07.3GBASL.E1), de 10/12/2009, (proc. n.º 83/09.8GBLGS.E1), e de 11/03/2010, (proc. n.º 498/09.1PALGS.E1); e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24/01/2011, (proc. n.º 377/10.0GDGMR.G1), todos disponíveis/consultáveis em http://www.dgsi.pt –, pela seguinte essencial e inescapável ordem-de-razões:

a) Por apenas assim se respeitar o princípio constitucional da igualdade, estabelecido no n.º 1 do art.º 13.º da Constituição Nacional[4], inequivocamente obstativo da diferenciação jurídico-sancionatória, com a referida pena acessória, de quaisquer agentes de tais infracções criminais – prevenidas sob as diversas alíneas do n.º 1 do art.º 69.º do C. Penal –, em função da respectiva habilitação legal, ou não, para a condução de quaisquer veículos, que a própria enunciada norma abstracta (art.º 69.º do C. Penal) de todo não legitima[5];

b) Por, como sucessiva e exaustivamente vem sendo enfatizado pela convocada linha jurisprudencial, o próprio legislador – cujo pensamento/propósito se haverá que presumir como consciente, lógica, sábia e adequadamente expresso nos respectivos textos normativos, (cfr. art.º 9.º do Código Civil) – claramente assumir, nos dispositivos normativos ínsitos nos arts. 126.º, n.º 1, al. d), do Código da Estrada[6], e 4.º, ns. 1, al. e), e 4, al. f), do D.L. n.º 98/2006 de 06/06[7] [regime jurídico do registo de infracções de não condutores, ou seja, de infractores não habilitados, (RIO)], a possibilidade de condenação de condutores não habilitados a tal pena acessória.

 Como assim, mal se compreende a sindicada – e ainda perturbantemente pertinaz – postura decisória de concernente denegação condenatória, para mais sem qualquer ponderável suporte justificativo-legal, como se observa do correspectivo excerto da questionada sentença, (vd. fls. 85/86):
– «[…]
Embora seja questão jurisprudencialmente controvertida, em nosso entender, não há lugar à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69.º do C.Penal, a quem, embora praticando um dos crimes aí elencados, não esteja legalmente habilitado para a condução de veículos na via pública (neste sentido, a título de exemplo, o acórdão do T.R.Évora de 03-02-2004 (em www.dgsi.pt – Processo n.º 2294/03-1).
Deste modo, não terá lugar a aplicação de tal pena acessória.
[…]»


§ 2.º


1 – Demanda-se, por conseguinte, o suprimento da referente invalidade, por inconstitucionalidade – decorrente da axiomática violação do enunciado princípio da igualdade –, e ilegalidade, e a cominação ao id.º sujeito-arguido A... de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por período necessariamente compreendido entre três meses e três anos, (cfr. n.º 1 do citado art.º 69.º do C. Penal).

         2 – Como expressamente foi consignado/assumido pelo respectivo legislador no preâmbulo do D. Lei n.º 44/2005, de 23 Fevereiro, que operou profundas alterações ao Código da Estrada[8], a segurança rodoviária e a prevenção dos acidentes constituem-se na actualidade como principais prioridades europeias e nacionais – mobilizadoras de toda a sociedade, (como aí também se diz) –, para cuja realização foi considerada necessária – a par de várias outras em diversos planos (como a educação do utente e a criação de um ambiente rodoviário seguro) – a adopção e consagração de um mais rigoroso e eficaz quadro legal, com aptidão sensibilizadora dos utentes viários à responsável modificação comportamental, designadamente pelo cumprimento da legislação adequada, em que se inseriu o agravamento das coimas aplicáveis aos comportamentos contra-ordenacionais de risco realizados de forma mais frequente, como seja a condução sob o efeito do álcool.

         Impõe-se, pois, ao intérprete e aplicador da lei – em conformidade com o disposto no art.º 9.º, n.º 1, do Código Civil – procurar, nos limites da norma, acompanhar e materializar tal pensamento e evolução legislativa, adoptando medidas sancionatórias com energia e adequação bastantes à prossecução dos prementes desideratos preventivos e à salvaguarda da unidade e compatibilização do sistema jurídico, procurando, sempre que a situação concreta lho permita, acautelar a necessária/ideal diferenciação/graduação da dignidade ético-social da figura-de-delito criminal de condução sob efeito de TAS igual ou superior a 1,2 g/l – tipificada no art.º 292.º do Código Penal –, referentemente à imanente àqueloutras, contra-ordenacionais.

         Tal judiciosa incumbência haver-se-á que reportar também à determinação da medida concreta da pena acessória de temporária proibição de condução de veículos com motor – estabelecida no dito art.º 69.º do C. Penal[9] –, que, partindo, como a da principal, do juízo de censura global pela referente comissão delitiva, bem como da pertinente ponderação dos atinentes critérios estabelecidos no art.º 71.º do Código Penal, sem olvidar o ideal efeito intimidatório da generalidade (prevenção geral)[10], se haverá essencialmente que perspectivar pela predominante função de acautelamento/refreamento da revelada perigosidade do agente, e, assim, como relevante providência no combate aos elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária, de todos conhecidos, para que contribui, como um dos factores mais salientes, a condução em estado de embriaguez e a não interiorização pelos condutores da incompatibilidade entre o consumo de bebidas alcoólicas e o exercício da condução.

         Haver-se-ão, por conseguinte, que valorar na respectiva graduação – como daqueloutra –, a culpa do agente, as exigências de prevenção (geral e especial), e o demais relevante/conhecido circunstancialismo com adequação à beneficiação ou desfavorecimento do infractor, designadamente o grau da respectiva ilicitude comportamental.

Como assim, efectuando a pertinente ponderação da utilidade do adquirido quadro-fáctico, considerando a amplitude da respectiva moldura – de 3 meses a 3 anos –, sopesando o já significativo valor da taxa de alcoolemia registada, de 1,35 g/l – representativa de embriaguez nítida (em sentido técnico) –, já adequada à produção de perturbação da marcha e de diplopia, e, consequentemente, do exponencialmente acentuado agravamento do risco de acidente[11], crê-se como adequado impor-lhe a proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses.


III – DISPOSITIVO


Pelo exposto, o órgão colegial judicial reunido para o efeito em conferência neste Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo provimento ao avaliando recurso do MINISTÉRIO PÚBLICO, e, por tal sorte, alterando, no particular, a impugnada decisão, delibera condenar o id.º arguido A... – em acréscimo às reacções penais que lhe foram impostas em 1.ª instância – à pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.

***

Sem tributação.

***

Acórdão elaborado/revisto pelo relator, primeiro signatário, (cfr. art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal).

***

Os Juízes-desembargadores:

        

Abílio Ramalho (Relato)

        

Luís Ramos


[1] A que o id.º arguido – notificado, na Roménia, no âmbito de pertinente carta rogatória, (vd. fls. 158/166) – nada contrapôs.
[2] Factos provados, vertente jurídico-processual que, no texto, por comodidade e simplificação, também eventualmente denominaremos por asserto e/ou assertório.
[3] Também referente ao mesmo tribunal (Instância Criminal de Anadia da comarca de Baixo Vouga).
[4] Artigo 13.º (Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
[…]
[5] Artigo 69.º (Proibição de conduzir veículos motorizados)
1 – É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;
b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
[…]
[6] Artigo 126.º (Requisitos para a obtenção de títulos de condução)
1 – Pode obter título de condução quem satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos:
[…]
d) Não esteja a cumprir proibição ou inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução;
[…]
[7] Artigo 4.º (Registo de infracções)
1 – O RIO é um ficheiro constituído por dados relativos:
[…]
e) À condenação por crime praticado em território nacional, no exercício da condução por pessoa não habilitada para a condução.
[8] Vigentes desde 25/03/2005, (cfr. art.º 24.º do citado D. Lei n.º 44/2005, de 23 Fevereiro).
[9] Introduzida pela Revisão operada pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, e posteriormente alterada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, que imprimiu maior rigor ao seu âmbito de aplicação e elevou os respectivos limites – mínimo e máximo – de 1 mês a 1 ano para 3 meses a 3 anos.
[10] Vide, a propósito, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, (reimpressão), Coimbra Editora – 2005 –, §§ 88 e 232, máxime, e Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Universidade Católica, pág. 28.
[11] Vide artigos/estudos – disponíveis/consultáveis – em http://www.cras.min-saude.pt/Brochura.pdf, http://www.ecdidactica.net/PDF/alcool_conducao.pdf, e http://www.verbojuridico.com/doutrina/penal/alcool.html (CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ – Aspectos Processuais e Substantivos, por Pedro Soares Albergaria e Pedro Mendes Lima), designadamente.


Coimbra, 09/05/2012.