Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
733/14.4GBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CANABIS
FOLHAS E SUMIDADES FLORIDAS OU FRUTIFICADAS
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
CONSUMO MÉDIO DIÁRIO
GRAU DE CONCENTRAÇÃO MÉDIO
GRAU DE PUREZA
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (CALDAS DA RAINHA – JL CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 40.º, N.º 2, DO DL 15/93, DE 22-01; ART. 2.º, N.º 2, DA LEI N.º 30/2000, DE 29-11; ART. 9.º DA PORTARIA N.º 94/96, DE 26-03
Sumário: I – A indicação, na tabela referida no artigo 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26-03, do valor correspondente ao consumo médio diário de resina de canabis (2,5g diários) pressupõe, conforme nota (3) d) inscrita na dita tabela, um grau de concentração médio de 2% de A9TIIC.

II – Revelando-se diferente o grau de pureza daquela substância estupefaciente, o valor referencial do consumo médio diário terá de ser casuisticamente adaptado.

III – Contudo, a quantidade necessária para o consumo médio individual diário de substâncias estupefacientes, não sendo rígido e inderrogável, pode ser determinado em função das características individuais de um concreto consumidor. Estas, se comprovadas, são susceptíveis de conduzir – cfr. n.º 2 do artigo 163.º do CPP –, a um resultado diferente do decorrente da estrita aplicação dos critérios constantes da Portaria 94/96, sem que isso traduza violação da prova pericial.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 733/14.4GBCLD do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, C. Rainha – JL Criminal, mediante acusação pública, foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I – C anexa.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 25.05.2017, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

Pelos motivos e com os fundamentos expostos, julgo improcedente a acusação e, em consequência, decido absolver o arguido A......, da prática de um crime de consumo, p. e p. pelo art.º 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de que vinha acusado.

[…]

Após trânsito, extraia certidão dos presentes autos e remete à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, atento o disposto no artigo 5º e ao regime especial previsto no artigo 10º e seguintes, todos da Lei 30/2000, de 29.11.

[…].

3. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

a) A CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E A DECISÃO – artigo 410º b) do C.P.P:

A. Como se pode ler do texto da sentença, todos os factos constantes da acusação foram dados como provados, inclusive que o arguido tinha consigo quantidade de canábis suficiente para 86 doses.

B. Observando a motivação da matéria de facto, verifica-se que tal facto resultou da valoração do exame pericial de fls. 44 no qual consta que o produto estupefaciente apreendido é suficiente para 86 doses, calculadas nos termos da portaria 15/93.

C. Já no “enquadramento jurídico” da sentença (a fls. 201 e 202 dos autos), pode ler-se: ”Ora, perscrutando a matéria de facto provada não se poderá deixar de concluir que o arguido sabia e quis deter para seu consumo cannabis, sendo que esta se integra na Tabela I – C anexa ao referido diploma, que se destinava na totalidade ao seu próprio consumo.

O arguido detinha na sua posse, 23,074 gramas de flores e sumidades de cannabis, tendo em conta o limite máximo para cada dose diária definido pela Portaria n.º 94/96, de 26 de Março – no caso concreto, o limite máximo para cada dose diária é de 2,5 gr. -, concluindo-se assim que a quantidade detida pelo arguido não excedia o necessário para o consumo médio individual durante 10 dias

D. Ora, tendo sido dado como provado que a quantidade detida pelo arguido podia ser subdividida em 86 doses e tendo sido valorado, sem qualquer hesitação o relatório pericial, não se compreende em que se fundou o Tribunal para considerar que o arguido tinha consigo menos de 10 doses, ou seja, da quantidade permitida para 10 dias.

E. Existe, assim, inegavelmente, uma contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada e a decisão e uma errada aplicação do direito.

F. Afigura-se-nos que a Meritíssima Juiz baseou a sua decisão apenas na pesagem das folhas detidas pelo arguido: 23,074g (peso obtido pela P.J. mas não pela GNR) que dividiu pelos 2,5 gramas referidos na tabela constante da portaria 15/93. Sucede que, nem tal raciocínio está descrito ou fundamentado na sentença, nem está correto, como passaremos a demonstrar:

b) EXISTE ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA, NOMEADAMENTE DO EXAME PERICIAL – artigo 410º, nº 2 c)

G. Nos termos do artigo 40º 15/93 (Lei da Droga), após a sua repristinação pelo AUJ do STJ de 8/2008, pratica o crime de Consumo quem detiver, para seu consumo plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, se a quantidade exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

H. A tabela IC anexa a tal diploma define o conceito de canábis, folhas e sumidades floridas e frutificadas e o Mapa anexo à portaria 94/96estabelece como se calcula as doses referentes ao consumo médio individual.

Assim, tendo em consideração as alíneas a) e c) aplicáveis à canábis, a quantidade média diária tem de ser calculada com base na variação média de THC existente nos produtos de canábis. Especificamente para as folhas a indicação de 2,5g foi calculada a uma concentração média de 2% de THC.

I. Conforme se pode ver pela mera leitura da tabela não se trata de uma simples multiplicação de 2,5 gramas por 10 dias. Sendo necessário o apuramento e o cálculo do THC e da sua concentração (em percentagem) na canábis.

K. Tratando-se de uma operação que exige conhecimentos técnicos, científicos e exames laboratoriais, tal cálculo terá de ser efetuado por perito credível e com conhecimento da matéria, in casu o Laboratório de Polícia Científica da P.J.

L. Sendo matéria, necessariamente sujeita a exame pericial, tem aplicação o artigo 163º do C.P.P. que disciplina que O juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

M. Ou seja, no caso concreto, o apuramento do THC e das doses resultantes da quantidade apreendida resultam exclusivamente da prova pericial estando assim, subtraída à livre convicção do julgador.

N. Ou seja, não poderia, sem mais, a Meritíssima Juiz afastar a conclusão da perícia, de que estávamos perante 86 doses. E, caso estivesse convicta do seu conhecimento sobre a matéria, teria de fundamentar adequadamente, tal divergência, o que não fez.

O. Não o fazendo a sentença recorrida é ilegal, por violação do artigo 163º do C.P.P., padece de erro notório na apreciação da prova e de falta de fundamentação.

c) EXISTE NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS PARA SANAÇÃO DAS DÚVIDAS DO TRIBUNAL – artigo 120º, nº 2 d) do C.P.P.

P. Refira-se, ainda, e por último que, tendo dúvidas sobre a forma como o perito concluiu tratarem-se de 86 doses diárias, deveria a Meritíssima Juiz, requerer esclarecimentos sobre a perícia, conforme impõe o artigo 158º nº 1 do C.P.P.

Q. Não o fazendo, não supriu uma dúvida que era sanável, ou seja não realizou todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material.

R. Pelo exposto, consideramos que existe contradição insanável entre o facto 1) da matéria dada como provada e a conclusão de que o arguido tinha consigo quantidade inferior a 10 doses diárias.

Consideramos que houve violação das regras de valoração da prova, ao afastar o resultado técnico da prova pericial.

Consideramos ainda que ao não esclarecer a dúvida que resultou da leitura do relatório pericial, o Tribunal não diligenciou pelo esclarecimento de uma dúvida sanável, ferindo a sua decisão de nulidade.

Conforme referido, a sentença recorrida deve ser declarada nula, pela existência dos vícios mencionados.

Desta forma se fazendo Justiça.

4. Por despacho exarado a fls. 225 foi o recurso admitido.

5. O arguido respondeu ao recurso, defendendo a correção da sentença recorrida.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417º do CPP o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Considerando as conclusões, as quais, exceção feita às questões de natureza oficiosa, limitam os poderes de cognição deste tribunal, no caso em apreço importa decidir se: (i) É nula, por omissão de diligências essenciais, a sentença; (ii) Padece a mesma dos vícios das alíneas b) e/ou c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e (iii) Errou o tribunal na determinação da quantidade de estupefaciente necessária ao consumo médio individual de acordo com a Portaria n.º 94/96, de 26.03 (mapa anexo).

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

A. Factos Provados

 Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão do objeto dos autos, os seguintes factos:

1. No dia 31 de Dezembro de 2014, no interior do veículo automóvel de matrícula (...) , e na Estrada Nacional 8, Tornada, o arguido tinha na sua posse no total 23,074 gramas de canábis em folhas e sumidades floridas, quantidade suficiente para 86 doses.

2. O arguido destinava aquele produto ao seu consumo.

3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo ter na sua posse o mencionado produto estupefaciente, conhecendo as suas características, o qual destinava ao seu consumo, bem sabendo que aquela quantidade excedia o necessário para o consumo médio individual durante o período de três dias.

4. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

Mais se provou que

5. À data da prática dos factos o arguido consumia uma média de 8 a 9 gramas de canábis, por dia.

6. O desenvolvimento inicial do arguido decorreu num meio familiar pautado pela fragilidade organizacional e estrutural.

7. O arguido iniciou a escolaridade na idade regular e concluiu apenas o 2º ciclo, apesar de relevar capacidades para progredir a nível escolar e formativo, não concluiu a formação para iniciar a vida ativa.

8. Assim iniciou, ainda na adolescência, a vida profissional, como trabalhador indiferenciado. Foi também neste período que iniciou o consumo regular de substâncias aditivas, que assumiram um ritmo de regularidade que veio a condicionar o início da vida adulta e o contacto com a justiça.

9. A nível das suas competências pessoais e sociais, apresenta alguma capacidade de raciocínio e de pensamento consequencial, sendo um jovem adulto com algumas competências, que tem conseguido executar a atividade profissional de trabalhador rural e assegurar o apoio habitacional e financeiro ao seu atual agregado familiar.

10. Numa ponderação de fatores de risco e de proteção, parecem sobressair deste balanço os primeiros, pela manutenção do comportamento aditivo e tendo em conta os seus antecedentes criminais, sem que se encontrem estabelecidos mecanismos claros e inibitórios deste comportamento no meio sócio familiar do mesmo.

11. Face ao exposto, apesar de manter o comportamento aditivo, mas tendo em conta a situação atual do arguido e o seu aparente empenho no processo de reinserção social a nível familiar e profissional, consideramos que, caso venha a ser condenado neste processo judicial, estão reunidas condições para o cumprimento adequado de uma pena na comunidade, eventualmente com acompanhamento.

12. O arguido aufere um vencimento médio mensal de € 600 a € 700.

13. O arguido reside em casa dos progenitores da companheira, a qual exerce a mesma atividade profissional que o arguido e tem o mesmo nível de rendimentos.

14. O casal contribui para as despesas domésticas com cerca de € 100 mensais.

15. O arguido tem um encargo mensal de € 412 referente a um crédito pessoal.

16. O arguido em 1 filho de 15 anos que se encontra a residir com a progenitora em Inglaterra, e uma filha de 1 ano e 3 meses filha da sua atual companheira.

17. Em 13.04.2017, constam averbadas no CRC do arguido as seguintes condenações:

- Por sentença proferida em 30.11.01, no âmbito do Processo Comum Singular nº 452/99.PAMTJ, do extinto Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, transitada em 15.11.2001, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artigo 25º, al. a) do DL 15/93, de 22.01, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, praticado em 07.08.1999;

- Por sentença proferida em 08.04.2003, no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 6/01.2TAMRA, do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Moura, transitada em 02.05.2003, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de 5 anos de prisão, por factos praticados em 14.12.2001;

- Por sentença proferida em 28.05.2003, no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 16/01.0TBMTJ, do extinto 1º juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, transitada em 13.11.2003, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artigo 25º, al. a) do DL 15/93, de 22.01, na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, praticado em 20.10.2000;

- Por sentença proferida em 20.02.2006, no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 343/04.4JELSB, da extinta 1ª Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, transitada em 07.03.2006, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22.01, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, praticado em 30.10.2004;

- Por sentença proferida em 03.12.2008, no âmbito do Processo Comum Singular nº 255/07.0JELSB, do extinto 1º juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, transitada em 19.01.2009, pela prática de um crime de tráfico para consumo, p.p. pelo artigo 26º, nº 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de 2 anos de prisão, praticado em 07.07.2007.


*

B. Factos não provados

Inexistem factos não provados.


*

C. Motivação

O Tribunal fundou a sua convicção na ponderação de toda a prova produzida, em audiência de julgamento, designadamente na confissão livre, integral e sem reservas do arguido.

O Tribunal atendeu ainda ao teor do auto de notícia de fls. 2 a 4, ao resultado dos testes rápidos de fls. 10, a fotografia de fls. 15, ao auto de apreensão de fls. 18 e do exame pericial de fls. 44.

Resulta do relatório pericial que o cannabis apreendido, tem um peso líquido de 23,074gr., permitindo constituir 86 (oitenta e seis) doses, calculado segundo a Portaria 94/96, de 26.03.

As condições pessoais e socio-económicas do Arguido resultaram das suas declarações e, bem assim, do relatório social junto a fls. 189 e seguintes dos autos.

Quanto aos antecedentes criminais, fundou-se o tribunal no CRC junto a fls. 172 ss dos autos.

3. Apreciação

§1. Da nulidade da sentença por omissão de diligências essenciais – artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP

Alega o recorrente enfermar a sentença de nulidade por o tribunal haver omitido diligências essenciais para a sanação das dúvidas que se lhe teriam colocado.

Não lhe assiste, contudo, razão, desde logo em função da assinalada omissão não constituir causa de nulidade da sentença (artigo 379.º do CPP), depois porque não decorre da decisão que o julgador, em relação à determinação da quantidade de estupefaciente necessária ao consumo médio individual durante dez dias, tenha sido invadido por qualquer dúvida, o que não significa que o juízo a tal propósito formulado, como adiante veremos, seja isento de crítica.

§2. Dos vícios previstos nas alíneas b) e/ou c), do n.º 2 do artigo 410.º do CPP

Tendo presente respeitarem os invocados vícios, tão só, à confeção técnica da matéria de facto, manifesto se torna que os fundamentos que surgem a suportá-los, por não terem tradução/não se mostrarem refletidos no acervo factual assente – o qual, como bem realça o recorrente, no respeitante à natureza do estupefaciente e ao número de doses respetivo não diverge da acusação -, não podem conduzir à respetiva afirmação.

Com efeito, quando a matéria de facto provada, sem que se detete no seu seio omissão relevante, contradição insanável e/ou erro notório na apreciação da prova, demande uma diferente decisão ao nível do direito então o que se verifica é um erro de tal natureza, mas não os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

Como assim, improcede também nesta parte o recurso.

§3. A questão da determinação da quantidade de estupefaciente necessária ao consumo médio individual durante dez dias

Contra o arguido foi deduzida acusação pela prática do crime p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2 do D.L. n.º 15/93, de 22.01. Com efeito, após a revogação expressa do citado normativo, exceção feita ao “cultivo de estupefacientes”, operada pela Lei n.º 30/2000, de 29.11 (artigo 28.º) - diploma que qualificou como contraordenação “O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior” (n.º 1 do artigo 2.º), não deixando, contudo, de acrescentar que «Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias» -, perante as divergências surgidas, quer na doutrina quer no seio dos tribunais, o Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 8/2008 (DR 1.ª Série, n.º 150, de 25 de Agosto), fixou a seguinte jurisprudência: “Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

A questão que agora se coloca é a de saber como deve ser feita a quantificação do que seja o consumo médio individual.

A este propósito, refere o acórdão do TRC de 08.11.2017, proferido no âmbito do processo n.º 29/17.0GBGRD.C1, no qual a ora relatora interveio como adjunta: «O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que instituiu o ainda vigente regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabeleceu, no seu artigo 71.º, n.º 1, al. c): «Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina legal, determinam, mediante portaria: c) Os limites quantitativos máximo do princípio ativo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente».

Mais se acrescentou no seu n.º 3: “O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no n.º 1 é apreciado nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal”.

Da determinação da dose média individual com referência ao princípio ativo do estupefaciente pode depender a prática de um ou outro crime de tráfico ou então de consumo de estupefacientes e agora de uma contraordenação.

A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, determinou no seu artigo 9.º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.

Ora, no referido mapa e no que respeita à canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas) é indicado o valor de 2,5 gr, como correspondente à “dose média diária com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da Cannabis” e como referência “uma concentração média de 2% de A9THC”.

Por seu turno, nos termos do artigo 10.º, n.º 1 da dita Portaria, “Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93 (…), o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respetivo princípio ativo ou substância de referência”.

Do que se deixa dito impõe-se reconhecer ter errado o tribunal a quo quando, em sede de direito, e exclusivamente com referência aos valores indicados na Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, concluiu por não exceder a quantidade de estupefaciente em questão o necessário para o consumo médio individual durante 10 dias, e, com esse fundamento, afastou o crime, p. e p. no n.º 2 do artigo 40.º do D.L. n.º 15/93, de 22.01, circunstância que se ficou a dever ao facto de o julgador não haver atentado no grau de concentração do princípio ativo no estupefaciente em questão nos autos (de 18%, conforme relatório pericial de fls. 44), significativamente superior àquele outro de que parte o mapa anexo à dita Portaria (de 2%), e que conduziu às 86 (oitenta e seis) doses, sendo certo que quanto maior for o grau de concentração da substância ativa menor será a necessidade do consumidor, do referido produto, para obter o efeito desejado.

Significa isto, atendendo ao desconsiderado grau de concentração da substância ativa presente no concreto estupefaciente, assistir razão ao recorrente quando, com apelo a um tal critério, se insurge contra a decisão já que efetivamente em causa está uma quantidade de produto, a qual, focando-nos apenas nos valores fixados no mapa a que se refere o artigo 9.º da Portaria n.º 94/96, excede o quantitativo previsto no n.º 2 do artigo 40.º do D.L. n.º 15/93, quando interpretado à luz do AFJ n.º 8/2008.

Contudo, sem que haja sido impugnado, vem assente, como provado, na sentença recorrida que «À data da prática dos factos o arguido consumia uma média de 8 a 9 gramas de cannabis por dia», aspeto que nos conduz a uma outra questão que se traduz em saber qual a relevância a atribuir a semelhante circunstância.

Dito de outro modo, importa dilucidar sobre se os valores reportados na tabela que complementa a Portaria 94/96 são imperativos, no sentido de não consentirem desvios ou, antes, passíveis de ser contrariados em função das características individuais do consumidor em questão.

A natureza de «valores indicativos», cujo afastamento pelo tribunal, desde que fundamentado, é possível, foi já defendida pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 534/98, de 07.08.98, chamado então a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade orgânica do artigo 71.º, n.º 1, alínea c) do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro. No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 30.04.2008, consultável em www.pgllisboa.pt, onde se pode ler: «A Portaria 94/96, de 26.03, norma complementar que veio dar expressão, por força do critério do valor probatório da remissão nela contida, à norma sancionatória (em branco) – norma incompleta – do art.º 71.º, n.º 1, al. c), do DL 15/93, definidora dos limites quantitativos máximos admitidos nas doses individuais de estupefacientes (em função das quais se aplicam tipos de ilícitos comuns ou privilegiados) tem natureza meramente técnica, devendo ser interpretada como um critério de prova pericial, permitindo, pois, a impugnação dos dados apresentados, nos termos do art.º 163.º do CPP …».

Afigura-se-nos, pois, não poder neste domínio deixar de se reconhecer uma certa latitude na interpretação da matéria, desempenhando aqui um papel de relevo as características individuais do consumidor, as quais, se comprovadas, são suscetíveis de conduzir – cf. n.º 2 do artigo 163º do CPP - a um resultado diferente daquele que decorreria da estrita aplicação dos critérios constantes da Portaria 94/96, sem que nisso se veja violação da prova pericial, entendimento, de resto – como vimos – defendido pelo Tribunal Constitucional.

Nesta medida, acompanhamos as considerações a propósito tecidas no acórdão do TRP de 02.10.2013 (proc. n.º 2465/11.6TAMTS.P1) no sentido de que «Na quantificação das necessidades de consumo médio individual durante determinado período de tempo (dez dias, quanto à questão que agora releva), a legislação vigente segue um critério que não é puramente subjetivo (isto é, não considera apenas as necessidades do indivíduo em causa), mas também não puramente objetivo (isto é, não considera apenas a média estatística da generalidade dos consumidores), mas um critério objetivo-quantitativo mitigado (isto é, parte de valores objetivos que correspondem à média dos consumos mais frequentes, mas esses valores podem ser afastados, num sentido ou noutro, no caso concreto, em função das características específicas de u consumidor individual). Assim, os valores decorrentes da tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96 não são rígidos e inderrogáveis; podem ser considerados valores de consumo médio individual diferentes, em função das características individuais do consumidor em questão».

Retomando o caso concreto, perante o facto provado acima assinalado – o qual não suscitou a reação do recorrente -, considerando situar-se o consumo do arguido em 9 gramas do estupefaciente da natureza do que, na ocasião, detinha – porquanto no seio da indicada média de 8 a 9 gramas é o que mais o favorece, justificando-se, assim, a aplicação do pro reo – importa concluir que a quantidade de estupefaciente em questão, excedendo, embora, à luz dos valores fixados na tabela a que se reporta o artigo 9º da Portaria n.º 94/96, o valor correspondente à média da generalidade dos consumos durante dez dias, não ultrapassa, como resultou provado, as necessidades de consumo habitual do arguido durante esse período de tempo.

Perante semelhante cenário, apelando à orientação que nos parece colher maior adequação, traduzida na natureza não absoluta, antes indicativa, dos valores reportados na sobredita Portaria, por motivos não coincidentes com os apontados na sentença é de manter a decisão enquanto absolveu o arguido da prática do crime p. e p. pelo n.º 2 do artigo 40.º do D.L n.º 15/93, de 22.01.

III. Dispositivo

Termos em que deliberam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Sem tributação

Coimbra, 10 de Janeiro de 2018     

[Processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)