Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/14.4TBOLR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE
INTERESSADO
JUIZ
HOMOLOGAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – FUNDÃO – SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º Nº 1, 17º-A, Nº 1 E 17º-B DO CIRE.
Sumário: I – A regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter eminente ou verdadeiramente actual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao controlo judicial.

II - No âmbito da respectiva liberdade e autonomia, os credores dos aqui requerentes, na sua maioria qualificada imposta por lei, conformaram juridicamente os seus interesses no plano que aprovaram, tendo, por esse modo, considerado aqueles seus devedores “desvitalizados” mas (ainda não) insolventes. Esse negócio jurídico processual não exigiria a unanimidade dos votos favoráveis ou o consentimento de todos os credores, para que se tivesse por validamente concluído e vinculativo para todos eles, incluindo os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias, e, por isso, não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com fundamento na ora alegada insolvência actual dos requerentes.

III - O legislador, com o mecanismo processual ora em apreço, atribui ao juiz um papel muito restrito e faz radicar a defesa do interesse público em que se traduz a saúde da economia, ou a preservação do tecido económico, na primazia da autonomia da vontade da maioria qualificada dos credores, ainda que, em detrimento da liberdade contratual individual e da inviolabilidade da esfera jurídica de algum ou alguns dos credores, cujo consentimento, nesse estrito sentido, é dispensado e admite, inclusivamente, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios, se tal constar expressamente do plano, pelo que, também não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com esse fundamento.

IV - A homologação do plano também não pode ser recusada com fundamento em que a situação de um credor ao abrigo do plano será, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano se esse credor não apresentar, antes da homologação, qualquer requerimento tendente a demonstrar, em termos plausíveis, esse fundamento, nem essa questão, por maioria de razão, pode agora ser apreciada em sede de recurso.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

J… e A…, casados, intentaram este processo especial de revitalização de ambos os cônjuges, manifestando a vontade de encetarem negociações conducentes à sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação, para o que alegaram, em síntese: encontram-se em situação de “pré-insolvência” resultante de falta de meios económicos, porquanto assumiram pessoalmente diversos créditos e garantias pessoais, nomeadamente como avalistas, tendo como único rendimento, a sua remuneração mensal no montante bruto de € 485, cada um. Apresentaram a seguinte relação de credores (num total de débitos de € 8.054.936): I… – € 6.000.000; Banco A… – € 1.595.035; Banco B… – € 344.922; Banco C… – € 66.087; Banco D… – € 26.384; H…, SA – € 8.071; U…, SA – € 6.764; CLF – € 4.933; Banco F… – € 1.240; e L… – € 1.500.
A Sra. Administradora Judicial Provisória, nomeada após indicação dos requerentes, apresentou a lista provisória de créditos, num total de € 13.513.886,49, a qual, não tendo sido objecto de impugnações, foi declarada como convertida em definitiva, por despacho de fls. 8 do apenso de reclamação de créditos.
O plano de revitalização dos devedores obteve o voto favorável dos credores I… (€ 11.111.400) e Instituto da Segurança Social (€ 116.345,28) e o voto desfavorável dos demais (…).
Não foi requerida ao Tribunal de 1ª instância a recusa da homologação do referido plano, designadamente pelo credor Banco ….
 Na sentença, a Sra. Juíza, julgando válido o quórum deliberativo e inexistir qualquer violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao respectivo conteúdo, homologou o plano de revitalização dos devedores.
Inconformada, o credor Banco A… recorreu, suscitando a questão de saber se deveria ter sido recusada a homologação do plano de revitalização (PER) porque:
1. - os requerentes/devedores encontram-se em situação de insolvência e dos fundamentos do requerimento que conduziu à aprovação do PER não é possível inferir a susceptibilidade da sua recuperação;
2. - foi clausulada uma redução do objecto das hipotecas de que é beneficiária a ora recorrente e que garantem a totalidade dos seus créditos, sem o seu consentimento e contra a posição tomada, designadamente em sede de negociações, pelo que a proposta descrita no plano quanto ao reembolso do crédito da recorrente coloca esta numa situação menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Os requerentes apresentaram contra-alegações em que, além do mais, aduziram, previamente, a intempestividade da questão, só invocada no recurso, de dever ter sido recusada a homologação do plano, a qual a recorrente não requereu ao Tribunal a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, nem aquando da votação, nem após a aprovação desse plano de recuperação.

Os factos relevantes a considerar são os que se retiram do antecedente relatório.
Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.
Desviando-se do paradigma em que assentava o direito anterior, o CIRE construiu o processo de insolvência como um instrumento de liquidação, com a primazia de mecanismos próprios de regulação de mercado e dos interesses de ordem económica dos credores, em detrimento da preservação do tecido económico e do emprego, confinando a recuperação a mera finalidade possível do processo.
Contudo, o Estado Português, no quadro do programa de assistência financeira a que se submeteu nos últimos anos, vinculou-se a alterar aquele código, com o proclamado objectivo de facilitar o resgate de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis. Foi nesse contexto que emergiu a Lei nº 16/2012 de 20/4, alterando o CIRE, nomeadamente regulamentando o novo processo especial de revitalização (PER), resultando da exposição de motivos da Proposta da Presidência do Conselho de Ministros que lhe deu origem que o principal objectivo da alteração do CIRE visou direccionar este último diploma para a recuperação de empresas devedoras, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação» ([1]).
É certo que, como sugere a própria designação utilizada pelo legislador, o processo de revitalização exclui do seu âmbito de aplicação o devedor insolvente, sendo apenas facultado ao devedor “desvitalizado”: o devedor que se encontre em situação económica difícil – com dificuldades sérias para cumprir as suas obrigações, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito – ou de insolvência eminente – situação que pode ser entendida como de probabilidade séria da impossibilidade de cumprimento, num futuro próximo, das suas obrigações vincendas (arts 1º nº 1, 17º-A nº 1 e 17º-B do CIRE) ([2]).
Porém, para o que o processo se inicie é suficiente uma declaração escrita assinada pelo devedor e, pelo menos, por um dos seus credores, manifestando a vontade de encetar negociações conducentes à revitalização (art. 17º-A nº 2 e 17º-C nº 1 do CIRE). Ora, apesar de tal documento não ser adequado a demonstrar a situação económica difícil ou a insolvência eminente do devedor e de ao juiz não ser dada a efectiva possibilidade de controlar a verificação de um ou de outro destes pressupostos, o certo é que basta a apresentação daquela declaração e a comunicação, pelo devedor, de que pretende encetar negociações para que o processo seja, necessariamente, aberto, devendo o juiz nomear, de imediato, administrador judicial provisório ([3]). Por outro lado, os documentos que o devedor deve remeter ao tribunal – relação dos credores e das acções e execuções pendentes, documento de explicitação da sua actividade e das contas anuais relativas aos três últimos exercícios, etc. – também não são aptos para comprovar tais pressupostos, sendo certo, de resto, que a sua remessa para o tribunal pode ocorrer depois de o processo já se ter iniciado e de o juiz proferir aquele despacho (arts 24º nº 1 e 17º-C nº 3 b) do CIRE).
Com efeito, este processo, embora híbrido, assenta, essencialmente, numa fase nitidamente «extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização» do devedor e conclui-se, depois, com uma fase judicial, à «qual são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras específicas que pautam a homologação do plano insolvencial, maxime, as decorrentes do normativo inserto no artigo 195º do CIRE, constante do Titulo IX, para o qual nos remete o artigo 17º-F, nº5, do mesmo diploma» ([4]).
A reclamação, a verificação e a graduação de créditos obedecem, neste processo, aos seguintes trâmites: publicitada no Portal Citius a nomeação do administrador provisório, o credor reclamante, no prazo de 20 dias, apresenta àquele um requerimento invocando o seu crédito e a sua natureza (comum, privilegiado, garantido, subordinado ou não), devendo juntar os documentos comprovativos dos factos alegados ([5]). Findo aquele prazo, o administrador provisório apresenta na secretaria judicial, nos 5 subsequentes, a relação provisória dos créditos reconhecidos – com indicação, designadamente da identidade de cada credor, da natureza e valor, capital e juros, do crédito, e das garantias, pessoais ou reais, ou dos privilégios – e não reconhecidos ([6]).
Essa relação é impugnável por qualquer interessado, por requerimento dirigido ao juiz no prazo de 5 dias úteis seguintes do termo do prazo da sua apresentação, podendo a oposição fundamentar-se na indevida inclusão ou exclusão dos créditos, ou na incorrecção do seu valor ou da sua qualificação ([7]).
Na falta de impugnações, o juiz deve, no prazo de 5 dias, verificar os créditos por decisão que, salvo o caso de erro manifesto, se deve limitar a homologar a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador provisório e a converter a lista provisória em definitiva (arts 17º-D nº 4 e 130º nº 3 do CIRE).
Deste regime decorre que a falta de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador provisório produz um efeito cominatório pleno, pois que eles ficam imediatamente reconhecidos, limitando-se o juiz a homologar a lista correspondente e a convertê-la em definitiva. Se, realmente, o administrador reconheceu o crédito reclamado e nenhum credor, tendo sido colocado em condições de o fazer, compareceu a exercer o seu direito de contradição, a ordem jurídica interpreta, legitimamente a atitude do credor como sinal inequívoco de que nada tem a opor à pretensão do credor reclamante e ao reconhecimento, pelo administrador do respectivo crédito ([8]). E, sendo os créditos reconhecidos por falta de impugnação, o tribunal profere sentença homologatória que conheça da sua existência e os gradue pela ordem que lhes competir.
Assim se constata que, embora a regularidade da vida económica e a salvaguarda das regras de concorrência inerentes e indispensáveis ao funcionamento de uma economia de mercado reclame que cada operador económico cumpra, com pontualidade, os seus compromissos – ocorrendo, quando isso não suceda, uma lesão do tecido económico que deve ser reparada, extirpando-se dele o devedor comprovadamente relapso, através da declaração de insolvência, e promovendo-se liquidação total do seu património em benefício de todos os seus credores ([9]) –, a verdade é que a regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter eminente ou verdadeiramente actual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao controlo judicial.
Diferentemente, para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência, ou seja, de impossibilidade de solver os seus compromissos (art. 3º nº 1 do CIRE). E para que seja proferida essa sentença, o juiz deve verificar se ocorrem as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência. O cotejo das normas gerais do processo de insolvência com as normas especiais do procedimento de revitalização – marcadas estas, por exemplo, pela notável exiguidade dos prazos – é a este respeito, esclarecedor.
À decisão de homologação do plano de revitalização são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras dispostas para o plano de insolvência no título IX do CIRE (art. 17º-F nº 3), no tocante tanto às maiorias exigíveis para a sua aprovação como aos fundamentos da recusa da sua homologação (arts 212º nº 1, 215º e 216º do CIRE) ([10]).
 Porém, aderimos ao que já se escreveu no Ac. de 15/2/2015 desta Secção ([11]):
«(…) a averiguação da situação de insolvência do devedor coloca delicados problemas de alegação e de prova, para as quais, nitidamente, o processo especial de revitalização não se mostra talhado. Em que momento deve ser alegada a situação de insolvência actual do devedor? E em que prazo deve o devedor – ou os demais credores – ser admitidos a impugnar a alegação? E que provas são admissíveis e em que momento devem ser propostas e produzidas as provas admitidas para se decidir a questão controversa correspondente?
Quando muito, o controlo sobre a verificação dos pressupostos da revitalização ocorrerá a final do procedimento, no momento em que o tribunal é chamado a homologar o acordo de recuperação, dado que tal acordo, para que seja eficaz, exige a homologação judicial (artº 17-F nº 5 do CIRE). Todavia, mesmo nesse caso, se os credores – ou a maioria exigível deles – tiverem aprovado o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, não parece que ao juiz – descontada a verificação de qualquer outro fundamento de recusa de homologação do plano – reste outra alternativa que não a homologação desse acordo ([12]). O que se compreende, já que se o devedor e os credores, ou uma maioria qualificada deles – sujeitos para cuja tutela o processo se mostra ordenado - acordam num plano de recuperação é porque realmente o devedor não se encontra em estado de insolvência, antes é recuperável ou revitalizável ou como tal se deve ter: ninguém está melhor colocado para decidir sobre o estado de insolvência ou de recuperação do devedor que os seus credores. A este propósito deve notar-se que a declaração de insolvência, no contexto do processo especial de revitalização, só é admissível no caso de o processo negocial se mostrar concluído sem a aprovação de plano de recuperação e só tem lugar depois do encerramento do processo (artº 17-G nºs 1 e 2 do CIRE).
Do que decorre que, na prática, o processo de revitalização acabe por ser aplicável em casos em que não deveria sequer ter sido aberto, ou seja, que se aplique a devedores em situação de insolvência actual, portanto, à margem dos pressupostos que definem o seu âmbito de aplicação ([13]).
Independentemente da exactidão destas considerações, uma coisa se deve ter por certa: a de que a recusa da homologação do plano de recuperação, fundada no facto de o estado do devedor não ser de insolvência meramente eminente mas actual, exige a aquisição, com correcção, para o processo, dos factos demonstrativos desse estado.
A particularidade relevante do PER é a probabilidade da homologação do plano de recuperação, desde que aprovado por uma maioria qualificada o tornar vinculativo para todos os credores, mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 6 do CIRE).».
Incumbido pela Constituição (art. 9º) de transformar e modernizar as estruturas económicas e sociais, o Estado, com o mecanismo ora em apreço, entrega à liberdade e autonomia da maioria qualificada dos credores a particular tarefa da prossecução da preservação do tecido económico. O papel do juiz neste processo é muito restrito, porquanto o legislador faz radicar a defesa daquele interesse público, em que se traduz a saúde da economia, na primazia da vontade da maioria qualificada dos credores, confiando, quase plenamente, nestes e no administrador judicial ([14]). E prossegue esse desiderato mesmo em detrimento da liberdade contratual individual e da inviolabilidade da esfera jurídica de algum ou alguns dos credores, cujo consentimento, nesse estrito sentido, é dispensado – ainda que com algumas excepções – e admite, inclusivamente, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios, se tal constar expressamente do plano, nos termos do art. 197° do CIRE.
Foi o que também se expendeu no já citado acórdão de 15/2/2015:
«(…) Todavia, seja qual for a modalidade de plano considerada, na fixação do seu conteúdo, rege o princípio da liberdade e da autonomia dos credores, por força do qual estes gozam de liberdade latitudinária, mas não ilimitada, na conformação jurídica dos seus interesses (artº 195 nº 2, in fine, e 196 nº 1 do CIRE) ([15]). Limite relevante dessa liberdade e autonomia é – como já se apontou - o representado pelo princípio da igualdade dos credores (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).
Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção ([16]) e, portanto, um verdadeiro contrato. A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de um simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias no caso dos credores privilegiados ([17]) – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.
Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui, porém, uma verdadeira condição de eficácia do plano [18] (artº 217 nº 1 do CIRE).
O juiz da insolvência está, portanto, vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de insolvência, devendo recusar, ex-officio, a sua homologação, designadamente, caso o seu exame o leve a concluir que se verificou uma violação, não negligenciável, de regras procedimentais, das normais processuais integrantes do iter, marcado na lei, conducente à sua aprovação, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo (artº 215 do CIRE), as normas que conformam a respectiva substância, designadamente, as que definem um conteúdo vinculado desse mesmo plano. Note-se que, quer se trate de normas de procedimento quer de normas de conteúdo, em causa estão sempre normas processuais, i.e., normas que definem uma consequência processual, ou, mais concretamente, aquelas cuja previsão desencadeia um efeito processual.
Todavia, para recusar, oficiosamente, a homologação do plano não é suficiente a constatação de que houve violação tanto de normas de tramitação como de normas relativas ao conteúdo do plano. A ofensa de normas de qualquer destas espécies só autoriza a recusa da homologação se for não negligenciável, exigência que vincula, evidentemente, à distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes e que traz, naturalmente, implicada a concessão ao juiz de um largo poder de apreciação. Essa apreciação deve nortear-se pelos princípios orientadores, em geral, da nulidade processual, entre os quais se conta o da essencialidade, de harmonia com o qual a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame e na decisão da causa (artº 195 nº 1, in fine, do nCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).».
Dado que também os vícios de conteúdo são abarcáveis pelo conceito de violações não negligenciáveis constitutivas de fundamento da recusa de homologação do plano de recuperação, deve entender-se, como tais todas aquelas que importem forçosamente uma violação de normas imperativas, a produção de um resultado não autorizado pela lei, já não as que atinjam apenas regras de tutela particular ([19]).
A par da recusa oficiosa da homologação do plano – fundada na violação não negligenciável de regras procedimentais ou de normas de conteúdo – essa homologação pode ainda ser recusada, na sequência de requerimento de qualquer credor, desde que este demonstre, em termos plausíveis, por exemplo, que a sua situação ao abrigo do plano é, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano (art. 216 nº 1 a) do CIRE) ([20]).
No entanto, neste processo, a apelante, apesar de ter comunicado a sua oposição à aprovação do plano, não apresentou, antes da sua homologação, qualquer requerimento tendente a demonstrar, em termos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano seria, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, sujeitando essa sua objecção a discussão e a contraditório, aquando da formação do sentido de voto dos demais credores habilitados a votar ([21]). Por isso, aquela homologação também não poderia ser recusada com tal fundamento, nem essa questão poderia agora ser apreciada, porque apenas agora suscitada no recurso ([22]).
A improcedência das questões suscitadas pela apelante é evidenciada, com suficiência, por tudo o que acaba de se expor e que se resume através da seguinte
Síntese conclusiva:
1ª) A regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter eminente ou verdadeiramente actual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao controlo judicial.
2ª) No âmbito da respectiva liberdade e autonomia, os credores dos aqui requerentes, na sua maioria qualificada imposta por lei, conformaram juridicamente os seus interesses no plano que aprovaram, tendo, por esse modo, considerado aqueles seus devedores “desvitalizados” mas (ainda não) insolventes. Esse negócio jurídico processual não exigiria a unanimidade dos votos favoráveis ou o consentimento de todos os credores, para que se tivesse por validamente concluído e vinculativo para todos eles, incluindo os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias, e, por isso, não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com fundamento na ora alegada insolvência actual dos requerentes.
3ª) O legislador, com o mecanismo processual ora em apreço, atribui ao juiz um papel muito restrito e faz radicar a defesa do interesse público em que se traduz a saúde da economia, ou a preservação do tecido económico, na primazia da autonomia da vontade da maioria qualificada dos credores, ainda que, em detrimento da liberdade contratual individual e da inviolabilidade da esfera jurídica de algum ou alguns dos credores, cujo consentimento, nesse estrito sentido, é dispensado e admite, inclusivamente, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios, se tal constar expressamente do plano, pelo que, também não deveria ser oficiosamente recusada a homologação do plano com esse fundamento.
4ª) A homologação do plano também não pode ser recusada com fundamento em que a situação de um credor ao abrigo do plano será, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano se esse credor não apresentar, antes da homologação, qualquer requerimento tendente a demonstrar, em termos plausíveis, esse fundamento, nem essa questão, por maioria de razão, pode agora ser apreciada em sede de recurso.

Decisão.
Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, decide-se confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
                   Coimbra, 10/03/2015 
Alexandre Reis (Relator)
Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] «Assim, não esquecendo o disposto no artigo 9.º, n.º1, do Código Civil, tudo aponta e obriga a que, em sede de recusa da homologação do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em razão de violação não negligenciável de regras procedimentais, há-de forçosamente o Juiz atender ou pelo menos não menosprezar o favor debitoris, ou seja, ter de alguma forma presente o desiderato do Processo Especial de Revitalização acima mencionado» (Ac. da RC de 11/3/2014 (434/13.0TBCNT.C1-Moreira do Carmo).
[2] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 20.
[3] Despacho que é, de imediato, notificado, publicado e registado (art. 17 nºs 3, a), e 4 do CIRE).
[4] Ac. do STJ de 25/11/2014 (p. 414/13.6TYLSB.L1.S1-Ana Paula Boularot).
[5] Cf. arts. 17-D nº 2, 1ª parte, e 128 nºs 1 e 2 a) e c) do CIRE. Donde, o juiz não tem, em princípio, acesso aos requerimentos dos credores reclamantes, nem aos documentos por eles juntos, já que o administrador não é obrigado a juntá-los aos autos.
[6] Arts. 17-D nº 2, 2ª parte, 129 nºs 1 e 2 do CIRE.
[7] Arts. 17-D nº 3, 1ª parte, e 130 nº 1 do CIRE. Naturalmente, também qualquer credor pode contestar algum crédito que possa concorrer com o que ele reclama ou as recíprocas causas de preferência dos créditos, antes da respectiva graduação, porque o concurso se baseia na oponibilidade, bem como as garantias invocadas por qualquer outro credor.
[8] A cominação opera, portanto, relativamente aos factos e ao direito: na falta de impugnação de crédito reconhecido pelo administrador provisório, o crédito considera-se definitivamente reconhecido. V. Acs. do STJ de 20/5/2010 e da RG de 16/1/2014, www.dgsi.pt.
[9] A insolvência tem também, na verdade, por finalidade expurgar do mercado as empresas, económica ou financeiramente, inviáveis: Ac. do STJ de 14.11.06, www.dgsi.pt.
[10] Por força dessa extensão de regime, exige-se, para a aprovação do plano de revitalização, a participação de credores que representem pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, e mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções
[11] No enquadramento desta medida inovatória, seguimos de perto o recente Ac. desta secção de 15/2/2015 (p. 626/13-Henrique Antunes), em que o ora relator foi adjunto.
[12] Segundo o Ac. da RL de 04.12.14 – www.dgsi.pt – o tribunal deve, neste domínio, ter em conta o favor debitoris.
[13] Catarina Serra, “Processo especial de revitalização – contributos para uma rectificação”, ROA, Ano 72, 2012, Vol. II/III, Abril/Setembro, pág. 721.
[14] Neste sentido, o Ac. da RP de 30/6/2014 1251/12.0TYVNG.P1-Caimoto Jácome).
[15] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas Notas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 587.
[16] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “A natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[17] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[18] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas notas”, cit. pág. 590.
[19] Neste sentido, o Ac. deste Tribunal de 11/3/2014 (434/13.0TBCNT.C1-Moreira do Carmo).
[20] «Incumbe ao credor oponente a prova, em termos plausíveis, de que o plano de recuperação o coloca numa situação menos favorável do que aquela que decorreria da ausência de qualquer plano» (citado o Ac. da RP de 30/6/2014).

[21] Neste sentido, os Acs deste Tribunal de 26/11/2013 (1785/12.7TBTNV.C1-Arlindo Oliveira), 25/10/2011 (329/10.0TBMGL-E.C1-Carlos Moreira) e 18/1/2011 (294/10.3TBVNO-G.C1-Virgílio Mateus).
[22] Porque não suscitada em 1ª instância para que sobre ela, por consequência, recaísse pronúncia e decisão na sentença recorrida. Portanto, também por este motivo e por maioria de razão, a pretensão recursiva não seria admissível: como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso, o que não sucede com as alegações apenas colocadas a este Tribunal. Note-se, que, diferentemente, estar-se-ia a julgar ex-novo e não a reponderar ou reapreciar o julgamento feito na 1ª instância, o que estaria vedado face ao modelo do recurso que o direito português consagra: o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal superior que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância. A função do recurso ordinário é, no nosso direito, por princípio, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa (cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 81.).