Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/18.1T9FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NÃO APURAMENTO DA CONDIÇÃO ECONÓMICA
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
REENVIO PARCIAL
Data do Acordão: 10/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 41.º DO RGCOC; ARTS. 379.º, 410.º, N.º 2, E 426.º DO CPP
Sumário:
I – A coima é uma sanção pecuniária sendo, por isso, natural que a lei determine que a sua quantificação, no caso concreto, dependa das condições económicas do coimado, a fim de esbater a diferença de sacrifício que o seu pagamento pode significar, para infractores com diferentes capacidades económicas e financeiras.
II – Nada constando da sentença, em termos de matéria de facto provada quanto à situação económica da recorrente, sempre seria desnecessária, por ilógica, qualquer crítica pela ausência de indicação de prova de uma factualidade que, pura e simplesmente, não foi ali contemplada.
III – Os vícios decisórios traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento, exigindo a lei, por esta razão, que a sua evidenciação se faça apenas através do texto da sentença, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para este efeito, o recurso a elementos a ela alheios, ainda que constem do respectivo processo.
IV - Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto] ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
V - A sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, i) por não ter sido apurada a situação económica da recorrente e ii) por não ter sido quantificado, tanto quanto possível, o benefício económico retirado pela recorrente com a prática da contra-ordenação.
VI – E, verificando-se a impossibilidade de sanação do vício, deve, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal, ser determinado o reenvio parcial do processo, para novo julgamento quanto às questões concretas da situação económica da recorrente e do benefício económico por si obtido.
Decisão Texto Integral:
2
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO
Por decisão da Vereadora com competência delegada, da Câmara Municipal da …, foi a arguida A, Lda, com os demais sinais nos autos, condenada, pela prática de uma contra-ordenações, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 102º, nº 1, a) e 103º, nºs 1, a) e 2, todos do Regulamento de Publicidade e Ocupação de Espaço Público da …, na coima de € 5.000.

Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial o qual, por sentença de 18 de Abril de 2018 [proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal da Figueira da Foz], foi julgado parcialmente procedente e, em consequência, a arguida foi condenada na coima de € 3.000.
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De novo inconformada com a decisão, recorreu a arguida para esta Relação, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1 – …
16 – …
Nestes termos e nos melhores de Direito cujo douto suprimento se invoca, o presente recurso deve ser admitido e julgado procedente, dando-se-lhe provimento e em consequência, a Douta Decisão recorrida deve ser revogada e ser substituída por outra que determine uma coima no montante de € 1.000,00, ou, caso assim se não entenda, sempre em montante inferior a € 3.000,00, assim se fazendo JUSTIÇA!
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Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
1. …
15. …
Nestes termos, deve o recurso interposto improceder, confirmando-se antes a douta sentença condenatória do Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, pois que assim se fará, com o douto suprimento de Vossas Excelências, a tão costumada JUSTIÇA!
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação na medida em que dela não consta a indicação das provas que suportaram a decisão na parte relativa à situação económica da recorrente e ao benefício económico por esta obtido, necessários à determinação da medida concreta da coima, e concluiu pela declaração da nulidade ou, assim não se entendendo, pela confirmação da sentença.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A actuação não dolosa ou, assim não se entendendo, a actuação com dolo eventual;
- A incorrecta determinação da medida concreta da pena.

Haverá ainda que conhecer – até por ser de conhecimento oficioso – a nulidade da sentença suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
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Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
1. …
8. … (…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:
“ (…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:
“ (…)”.

D) E dela consta a seguinte fundamentação quanto à determinação da medida concreta da coima:
“ (…).
Feito pela forma supra descrita o enquadramento jurídico da conduta da arguida/recorrente importa agora determinar a medida da coima a aplicar.
A contra-ordenação é punível, quanto às pessoas colectivas, com coima de € 1.000 a € 12.000, em caso de dolo, nos termos previstos no art. 103.º n.ºs 1 al. a) e 2 do Regulamento de Publicidade e Ocupação de Espaço Público da ….
Nos termos do artigo 18º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10, a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
Considerando os factos apurados, o grau de ilicitude é médio, considerando o número e a dimensão das estruturas colocadas; a contra-ordenação foi praticada a título de dolo, sendo que o benefício económico advém da própria publicitação não autorizada que não se verificaria caso a Recorrente se abstivesse do seu comportamento.
A favor da recorrente milita a circunstância de a mesma ter diversas estruturas publicitárias instaladas no concelho da …, diligenciado a mesma, no âmbito da sua actividade, para licenciar as estruturas publicitárias junto das entidades administrativas competentes (não se trata aqui de uma entidade que nem sequer apresenta e instrui pedidos de licenciamento, o que não pode deixar de ser atendido). Também a seu favor milita a circunstância de não ter antecedentes contra-ordenacionais.
Ponderados todos estes elementos, o Tribunal entende condenar a arguida na coima de € 3.000,00 (três mil euros) alterando, assim, a decisão recorrida.
(…)”.
*
Da nulidade da sentença por falta de fundamentação
1. No seu parecer, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão de padecer a sentença recorrida de nulidade da por falta de fundamentação, pois dela não consta a indicação das provas que serviram para suportar a decisão de facto na parte relativa à situação económica da recorrente e ao benefício económico por esta obtido, sendo estes elementos relevantes para a determinação da medida concreta da coima.
Também a recorrente – conclusão 12 – havia aludido, de alguma forma, a esta problemática, dizendo que dos autos não constam elementos relativos à sua situação económica e por isso, não poderão ter sido ponderados na determinação da coima, como não foram, dada a ausência de qualquer referência objectiva, na sentença, a tal situação. Diferente é a posição do Ministério Público assumida na resposta, para quem a omissão de elementos concretos relativos á situação económica da recorrente não afecta as suas garantias de defesa nem dificulta o exercício do direito de impugnação judicial pois não há inversão do ónus da prova nem violação do contraditório, já que sempre aquela podia ter apresentado os elementos de prova susceptíveis de permitirem ao tribunal a apreciação da sua situação económica.
Vejamos.
A recorrente foi condenada na sentença recorrida, pela prática da imputada infracção ao Regulamento de Publicidade e Ocupação de Espaço Público da, na coima de € 3.000 [na decisão administrativa judicialmente impugnada, a coima havia sido fixada em € 5.000] e pretende agora, ver reduzida a coima para o seu montante mínimo ou, assim, não se entendendo, para valor inferior ao fixado pela decisão recorrida.
a. O Regulamento de Publicidade e Ocupação de Espaço Público da sanciona a contra-ordenação praticada (arts. 6º, nº 1, 102º, nº 1, a) e 103º, nºs 1, a) e 2) com a coima de € 1.000 a € 12.000.
Dispõe o art. 18º, nº 1 do Regime Geral da Contra-Ordenações e Coimas [RGCOC] que a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
A coima é sempre uma sanção pecuniária sendo, por isso, natural que a lei determina que a sua quantificação, no caso concreto, dependa das condições económicas do coimado, a fim de esbater a diferença de sacrifício que o seu pagamento pode significar, para infractores com diferentes capacidades económicas e financeiras.
b. Tendo o RGCOC como direito subsidiário o direito processual penal e, portanto, o C. Processo Penal (art. 41º, nº 1 do RGCOC), à sentença recorrida é aplicável o regime da nulidade da sentença, previsto no art. 379º daquele código.
A falta de fundamentação constitui, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal, um caso de nulidade da sentença.
O conteúdo da fundamentação da sentença penal encontra-se definido no nº 2 do art. 374º do C. Processo Penal esclarecendo-se, desde já, que à falta absoluta de fundamentação ou de algum dos sues elementos essenciais deve ser equiparada a insuficiência de fundamentação, entendida esta como a impossibilidade de, através do respectivo texto, poderem ser entendidos os motivos do que se decidiu e por que assim se decidiu.
Lida a sentença recorrida, fácil é concluir que dela constam os elementos mencionados naquele nº 2 e que através da sua leitura se pode perceber o processo lógico que determinou a convicção da Mma. Juíza a quo quanto à decisão de facto. Com efeito, aí foram identificadas as testemunhas cujos depoimentos, e os documentos, cujo conteúdo, para aquele efeito, foram ponderados.
Nada constando da sentença, em termos de matéria de facto provada, quanto à situação económica da recorrente, sempre seria desnecessária, por ilógica, qualquer crítica pela ausência de indicação de prova de uma factualidade que, pura e simplesmente, não foi ali contemplada.
Em suma, a sentença mostra-se suficientemente fundamentada.
Na verdade, a questão suscitada, até pela forma como o foi, assume, cremos, um outro nomen juris.
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Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
2. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento, exigindo a lei, por esta razão, que a sua evidenciação se faça apenas através do texto da sentença, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para este efeito, o recurso a elementos a ela alheios, ainda que constem do respectivo processo.
O regime legal deste instrumento de sindicância da decisão de facto não inclui, como é sabido, a reapreciação da prova, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à detecção do defeito que a sentença revela e, não podendo saná-lo, a determinar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento. Por isso, nada impede que no processo contra-ordenacional, não obstante as limitações aos poderes de cognição do tribunal de recurso, impostas pelo art. 75º, nº 1 do RGCOC, possam ser conhecidos tais vícios (cfr. António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 3ª Edição, 2009, Almedina, pág. 273, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 314 e Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, 2018, Almedina, pág. 256), sendo certo que é também oficioso o seu conhecimento, conforme jurisprudência fixada pelo acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto] ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
Pois bem.
a. Já vimos que um dos elementos a considerar para a determinação da medida da coima é a situação económica do agente, e também já sabemos que nada consta na matéria de facto, provada ou não provada, levada à sentença, quanto a tal situação.
A invocação desta omissão, pela recorrente, surge quase como um venire contra factum proprium pois, tendo sido notificada pela autoridade administrativa, no âmbito do art. 50º do RGCOC, para, além do mais e querendo, juntar os elementos comprovativos da sua situação económica (fls. 24), nada fez.
Já no que respeita ao tribunal a quo, não desconhecendo este a relevância daquele elemento de facto para a determinação da medida da coima, nem podendo ignorar, por outro lado, que uma das pretensões da recorrente, deduzida na impugnação judicial, era a sua condenação na coima correspondente ao limite mínimo aplicável, nos termos do art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal, deveria ter diligenciado no sentido de obter os elementos de prova, v.g., cópia das declarações mais recentes de IRC da recorrente, necessários e depois, fazer constar da matéria de facto provada, a sua situação económica e financeira.
Uma nota final para dizer que, com ressalva do respeito devido, a omissão deste elemento de facto nada tem a ver com garantias de defesa, ónus da prova e exercício do contraditório.
Em suma, padece a sentença recorrida do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

b. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto estendeu a questão por si levantada a um outro elemento de facto, igualmente relevante para a determinação da medida concreta da coima, o benefício económico retirado pelo agente da prática da contra-ordenação. E o mesmo fez a recorrente na conclusão 13.
A sentença recorrida, em bom rigor, não omitiu o conhecimento deste elemento pois dela consta, se bem que não nos factos provados, que tal benefício consistiu na própria publicitação não autorizada que não se verificaria caso a Recorrente se abstivesse do seu comportamento.
Qual tenha sido a expressão numérica deste benefício económico é resposta que a matéria de facto provada da sentença não dá, sendo certo que, este elemento de facto releva, especialmente, para os efeitos previstos no nº 2 do art. 18º do RGCOC e portanto, para a elevação do limite máximo da coima prevista, até um terço do mesmo, desde que o benefício económico calculável seja superior àquele limite máximo.
Por outro lado, temos para nós, que em termos de razoabilidade, em situações como a dos autos, o benefício económico obtido corresponderá aos montantes não pagos pela recorrente ao município, pelos omitidos licenciamentos.
Assim, também nesta perspectiva, enferma a sentença recorrida do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

3. Padecendo a sentença recorrida, pelas razões sobreditas, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, i) por não ter sido apurada a situação económica da recorrente e ii) por não ter sido quantificado, tanto quanto possível, o benefício económico retirado pela recorrente com a prática da contra-ordenação, e verificando-se a impossibilidade de sanação do vício, deve, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal, ser determinado o reenvio parcial do processo, para novo julgamento quanto às questões concretas da situação económica da recorrente e do benefício económico por si obtido.
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O reenvio parcial do processo para novo julgamento prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por razões não totalmente coincidentes, em conceder provimento ao recurso.
Em consequência, revogam a sentença recorrida e determinam o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente às concretas questões, supra, identificadas.
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Recurso sem tributação (arts. 92º, nº 1 do RGCOC e 513º, nº 1, do C. Processo Penal).
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Coimbra, 24 de Outubro de 2017
Vasques Osório (relator)
Helena Bolieiro (adjunta)