Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1036/06.3TAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, AVEIRO, JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL, JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103º E 104º DO RGIT
Sumário: O limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT
Decisão Texto Integral:
I. Relatório
No processo comum colectivo 1036/06.3TAAVR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, Juízo de Média Instância Criminal, Juiz 1, os arguidos:
1º-FF…;
2º- VE…;
3º- LTP…;
4º- LP…;
5º- C& O…;
6º- CV…;
7º- V&O…;
8º- JV…;
9º- C, Ldª;
10º- CO…;
11º- RS..., Ldª;
12º- DR...;
13º- S, Ldª;
14º- AF…;
15º- AO...;
16º- V…, Ldª
17º- VS...;
18º- HF...;
19º- C...Lda,
20º- MF...;
21º- VC...;
22º- RS...;
23º- CMM...;
24º- D…, Ldª;
25º- DG...;
26º- T…, Ldª;
27º- JÁ…;
28º- FA...;
29º- P… SA;
30º- AP...;
31º- HD...;
32º- LC…Ldª;
33º- MG...;
devidamente identificados nos autos, forma submetidos a julgamento acusados:
- Os arguidos FF… e VE…, da co-autoria material, em concurso efectivo, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.º 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) e um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- O arguido LP…, na qualidade de sócio-gerente da “LTP…ª”, da autoria material, em concurso efectivo, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- O arguido CV…, na qualidade de sócio-gerente da C&O…, da autoria material, em concurso efectivo, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- O arguido JV..., na qualidade de sócio-gerente da Construções V&O…, da autoria material, em concurso efectivo, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- O arguido CO, na qualidade de sócio-gerente da C, Ldª, da autoria material, em concurso efectivo, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e –de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- Os arguidos DR...; AF...; AO...; VS...; HF...; MF...; VC...; RS...; CMM...; JA...; FA...; AP...; HD... e MG..., da autoria material de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT;
- O arguido DG... da autoria material, em concurso efectivo, de dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT, um enquanto empresário em nome individual, e um em representação da firma D…, Ldª, na qualidade de seu sócio-gerente;
- As sociedades arguidas RS..., S,Lda, V…, Ldª ; C...Lda, Ldª; D… Ldª; T… Ldª; P…SA, e LC…Ldª, da incursão em um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT;
- A sociedade arguida LTP…, da incursão, em concurso efectivo, em um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e de um crime de burla tributária, p. e p. pelos arts. 7º, 15º e 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- A sociedade arguida C&O…, da incursão, em concurso efectivo, em um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e de um crime de burla tributária, p. e p. pelos arts. 7º, 15º e 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- A sociedade arguida Construções V&O…, da incursão, em concurso efectivo, em um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT, e em um crime de burla tributária, p. e p. pelos arts. 7º, 15º e 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT;
- A sociedade arguida C, Ldª, da incursão, em concurso efectivo, em um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 103º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT, e em um crime de burla tributária, p. e p. pelos arts. 7º, 15º, 87º, n.ºs 1 e 3, do RGIT.

Por acórdão proferido em 18.11.2009 foi decidido:
a) Absolver os arguidos VE…; V...Lda, Ldª (agora VIT 21 – Construções, Ldª); VS...; LC…Ldª, e MG... dos crimes de fraude fiscal qualificada e de burla tributária de que vêm acusados;
b) Condenar o arguido FF… pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão;
c) Condenar o arguido FF… pela prática, em co-autoria material, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão;
d) Condenar o arguido FF…, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, a contar do trânsito em julgado. Esta suspensão é acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos Serviços de Reinserção Social, ficando o arguido FF… obrigado a responder às convocatórias do Técnico de reinserção social e a receber visitas deste, bem como a informar sobre alterações de residência ou de emprego, com vista à sua inserção (caso não cumpra, poderá ser revogada a suspensão e vir a cumprir tal pena);
e) Condenar a arguida C&O…, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00;
f) Condenar a arguida C&O…, pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1 e 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 550 (quinhentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00;
g) Condenar a arguida C&O…, em cúmulo jurídico, na pena única de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no total de € 12.000,00 (doze mil euros);
h) Condenar o arguido CV… pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão;
i) Condenar o arguido CV… pela prática, em co-autoria material, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão;
j) Condenar o arguido CV…, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, a contar do trânsito em julgado. Esta suspensão é acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos Serviços de Reinserção Social, ficando o arguido CV… obrigado a responder às convocatórias do Técnico de reinserção social e a receber visitas deste, bem como a informar sobre alterações de residência ou de emprego, com vista à sua inserção (caso não cumpra, poderá ser revogada a suspensão e vir a cumprir tal pena);
l) Condenar a arguida Construções V&O…, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 375 (trezentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 05,00;
m) Condenar a arguida Construções V&O…, pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1 e 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 05,00;
n) Condenar a arguida Construções V&O…, em cúmulo jurídico, na pena única de 550 (quinhentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 05,00, no total de € 2.750,00 (dois mil setecentos e cinquenta euros);
o) Condenar o arguido JV... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;
p) Condenar o arguido JV... pela prática, em co-autoria material, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão;
q) Condenar o arguido JV..., em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 3 (três) meses, a contar do trânsito em julgado. Esta suspensão é acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos Serviços de Reinserção Social, ficando o arguido JV... obrigado a responder às convocatórias do Técnico de reinserção social e a receber visitas deste, bem como a informar sobre alterações de residência ou de emprego, com vista à sua inserção (caso não cumpra, poderá ser revogada a suspensão e vir a cumprir tal pena);
r) Condenar a arguida C, Ldª, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 475 (quatrocentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 20,00;
s) Condenar a arguida C, Ldª, pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1 e 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 575 (quinhentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 20,00;
t) Condenar a arguida C, Ldª, em cúmulo jurídico, na pena única de 620 (seiscentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no total de € 12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros);
u) Condenar o arguido CO pela prática, em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 11 (onze) meses de prisão;
v) Condenar o arguido CO pela prática, em co-autoria material, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 3, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;
x) Condenar o arguido CO, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 7 (sete) meses, a contar do trânsito em julgado. Esta suspensão é acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos Serviços de Reinserção Social, ficando o arguido CO obrigado a responder às convocatórias do Técnico de reinserção social e a receber visitas deste, bem como a informar sobre alterações de residência ou de emprego, com vista à sua inserção (caso não cumpra, poderá ser revogada a suspensão e vir a cumprir tal pena);
z) Condenar a arguida S…, Ldª, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 375 (trezentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no total de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);
aa) Condenar o arguido AF... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, a contar do trânsito em julgado;
bb) Condenar o arguido AO... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado;
cc) Condenar o arguido HF... pela prática, em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, a contar do trânsito em julgado;
dd) Condenar a arguida C...Lda, Ldª, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no total de € 7.000,00 (sete mil euros);
ee) Condenar o arguido MF... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado;
ff) Condenar o arguido VC... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado;
gg) condenar a arguida P… SA, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7º nº 1, 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no total de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros);
hh) Condenar o arguido AP... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado;
ii) Condenar o arguido HD... pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1 c), e 104º, nºs 1 d) e e) e 2, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 5 de Junho), na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, a contar do trânsito em julgado.

Inconformados com esta decisão, dela recorreram os arguidos P… SA e AP..., rematando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
OS FACTOS:
O tribunal a quo fez errada interpretação das declarações do arguido FF... e extraiu conclusões que não resultam directamente do depoimento prestado.
Assim, deveria ter-se dado como provado que a factura foi preenchida e assinada pelo arguido FF... e chegado à posse do arguido AF… por meios não concretamente apurados.
Também deveria ter-se dado como não provado a autoria do contrato de empreitada junto àquela factura.
-o arguido FF... declarou que não conhecia o arguido Agostinho, mas não explicou como abriu mão da factura em causa.
Também nada resultou provado em relação à acusação de pagamento de quantias pelo arguido AF...ao arguido FF..., pelo que, nesta parte, deve tal matéria ser dada como não provada e a acusação improceder.
Cfr. reprodução da depoimento do arguido FF....
O DIREITO:
Em face da prova assim fixada e nos termos atrás expostos, aqui dados por reproduzidos, deve:
a) Ser considerado que o preenchimento do tipo legal de crime de fraude fiscal qualificada só é preenchido se a vantagem patrimonial obtida for igualou superior a 15 000,00 euros, (no caso dos autos);
b) Mais deve ser considerado que dos factos provados não resulta o preenchimento das previsões do artº 103º, nº1 al) a e 104º, nº1, al) d) e), ambos do RGIT;
c) Em consequência, deve ser considerado que a conduta dos arguidos foi despenalizada, pela redacção do Lei nº 60-A/2005, que elevou o montante acima do qual a conduta é penalmente relevante para a quantia de 15 000, euros.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exª doutamente suprirão, deve ser revogado o acórdão sob censura e substituído por outro, em que se julgue que a conduta dos arguidos foi despenalizada, nos termos atrás expostos, absolvendo-se os arguidos.
Tudo conforme for de direito e justiça, que se pede.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo o seguinte:
1 ° O Tribunal fez um correcto julgamento quando deu como provados os factos sob o nº B­12°, relativos aos recorrentes, a fls. 3226 v. e 3227, pois fez ponderação e análise crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, e não apenas do depoimento do co­arguido Ferreira.
2° Da análise do pedido formulado no recurso, em termos fácticos, parece-me que a única divergência que os recorrentes sustentam, relativamente à matéria de facto julgada como provada, tem a ver com o facto destes defenderem que se deveria ter julgado como provado que foi o arguido FF... que preencheu a factura referida a fls. 3226 v.
3° Salvo o devido respeito, a prova produzida em audiência de julgamento não vai nesse sentido, sendo que o arguido FF... chegou a declarar que trazia no carro várias facturas assinadas em branco, mas por outro lado também não se alcança qual o efeito prático que esta matéria, em termos de facto ou de direito, traria para os recorrentes.
4° O Tribunal faz uma correcta apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento, sustentando a sua convicção nos depoimentos dos inspectores tributários, na análise crítica dos vários documentos juntos aos autos, bem como no depoimento do co­arguido FF..., cuja valoração não está impedido de fazer.
(Neste sentido, Ac.do S.T J. de 19/12/96, in C.J.-AC.s do STJ-IV Tomo 2, pag. 214).
5° A QUESTÃO DO DIREITO:
A aplicação da despenalização prevista no art. 103-nº 2 do RGIT (fraude fiscal simples) ao crime de fraude fiscal qualificado p.e p. no art. 104 do RGIT:
- Duas questões se suscitam: nestes autos, há caso julgado formal e, sem prescindir, o nº2 do art. 103 do RGIT não se aplica ao crime de fraude fiscal qualificado p. e p. pelo art. 104 do RGIT.
6° CASO JULGADO:
A questão suscitada foi decidida pelo Tribunal, em Acta, a fls. 2989, em fase prévia ao início do julgamento, tendo o Colectivo deliberado que o nº 2 do art. 103 do RGIT não se aplicava ao crime de fraude fiscal qualificado p. e p. no art. 104 do RGIT
7° Essa deliberação é de 08/09/2009, pelo que entrando este recurso em 21/12/2009, formou-se caso julgado quanto a essa questão, pelo que o Tribunal de recurso está agora impedido de se pronunciar novamente sobre esta matéria.
- cfr. arts. 493-nº 3 e 497- nº 1 e 2 do C.P.C., aplicáveis "ex-vi" art° 4° C.P.P. e neste sentido também Ac. S.T.J. de 03/03/2004- proferido no Proc. 215/03 da 3a secção.
8° SEM PRESCINDIR
Resulta da letra da Lei, que a despenalização prevista no nº 2 do art.103 do RGIT só se aplica aos números anteriores, e não tendo o art. 104 do RGIT norma de idêntico conteúdo e sendo a gravidade da acção neste último crime superior à prevista no art. 103, percebe-se porque pretendeu o legislador proceder à referida despenalização, nos termos previstos nesse nº 2, deixando-a em exclusivo para o crime de fraude fiscal simples p. e p. no art. 103 do RGIT.
9° Assim sendo, tratando-se de fraude fiscal qualificada não ocorre a despenalização prevista nº 2 do artº 103 do RGIT, que apenas tem aplicação nos crimes de fraude fiscal simples. (Neste sentido AC. da Relação de Guimarães, de 18/5/2009, lavrado no Proc. 352/02.8IDBRG-G1, in www.dgsi.pt.).
Nestes termos, improcedendo totalmente os recursos interpostos por ambos os arguidos, será feita JUSTIÇA!

Foi proferido despacho admitindo o recurso interposto e remetidos os autos a esta Relação.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a resposta do Ministério em 1ª instância.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal os recorrentes exerceram o direito de resposta, pugnando no sentido de que não se formou caso julgado formal e apelando ao disposto no artigo 410º, nº 1 do Código de Processo Penal que permite a reapreciação em recurso de todas as questões tratadas na decisão recorrida.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos (transcrição na parte que implica os recorrentes):
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
(…)
B)
(…)
12º- P… SA, com sede em Albergaria-a-Velha:
A P… SA, adiante designada por P…SA, dedica-se à exportação, importação, comércio e indústria de máquinas, ferramentas, acessórios e exploração de oficinas de reparações e montagens, actividade enquadrável no CAE 51870, relativo a “comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos para a indústria, comércio e navegação”.
Para efeitos de IVA, está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal e no regime geral, para efeitos de IRC.
Exerceu o cargo de Presidente do Conselho de Administração da empresa, no triénio de 2002 a 2005, o arguido AP....
Este, no exercício dessas funções e no interesse desta, com vista a contabilisticamente aumentar os custos de exercício da mesma, sem que correspondesse a serviços efectivamente prestados à sociedade, no ano de 2002, recebeu, de indivíduo não identificado, a seguinte factura, pertencente ao arguido FF... no valor base de € 49.000,00, acrescido de IVA no montante de € 9.310,00 (que consta do anexo 90, a fls. 794):
Ord.—Utilizador--------N.º---Data--------Valor €-----IVA €-----Total €
1 P… S.A. 622 15.07.2002 49.000,00 9.310,00 58.310,00
49.000,00 9.310,00 58.310,00
Esta factura foi assinada pelo arguido FF... e preenchida por indivíduo não identificado, à ordem da P… SA, como se tratasse de serviços e materiais de construção civil por si prestados e fornecidos a esta, o que não correspondia à realidade.
De molde a dissimulá-la, no intuito de dar a aparência de que seria real, de comum acordo, indivíduo não identificado elaborou o contrato de empreitada fictício, datado de 22-07-2002 (doc. fls. 795 e 796), em que constavam como outorgantes o legal representante da P...SA, SA, e o FF..., sendo por ambos assinado, o qual foi anexo à factura.
Ainda com o mesmo objectivo de dissimulação, de forma a dar a aparência de que o preço nela inscrito teria sido pago ao emitente, o arguido AP... sacou o cheque n.º 3156622548, sobre a conta n.º 462409771, do BANIF, agência de Aveiro, de que a firma era titular, no montante de € 58.310,00.
Todavia, não entregou o cheque ao FF..., tendo-o depositado na sua conta pessoal, em 13-01-2003, tendo posteriormente retornado o dinheiro à P...SA, SA.
Em poder da referida factura, o arguido AP... providenciou no sentido de ser registada na contabilidade da empresa, o que foi feito, a fim de oportunamente os seus valores serem declarados à administração tributária, para efeitos de IRC e de IVA.
- IRC
Assim, por referência ao exercício de 2002, em sede de imposto sobre o rendimento, foi o valor da factura inscrito, como custos, na respectiva declaração de IRC apresentada pela P...SA, SA, perante a administração tributária.
Deste modo, obteve uma redução do valor do IRC, pagando menos IRC do que devia.
Entretanto, detectada a ilegalidade, foi o lucro tributável declarado corrigido pela administração tributária, decorrente da não-aceitação dos custos antes descritos, do seguinte modo:
Exercício de 2002
Descrição Declarado Correcção Corrigido
Resultado líquido do exercício € 50.023,37 ------------ 50.023,37
Acréscimos/Deduções € 29.130,99 4.900,00 34.030,99
Lucro tributável € 79.154,36 4.900,00 84.054,36

Exercício de 2003
Descrição Declarado Correcção Corrigido
Resultado líquido do exercício € 30.879,51 ----------- 30.879,51
Acréscimos/Deduções € 23.124,03 4.900,00 28.024,03
Lucro tributável € 54.003,54 4.900,00 58.903,54

Exercício de 2004
Descrição Declarado Correcção Corrigido
Resultado líquido do exercício € 23.749,73 ---------- 23.749,73
Acréscimos/Deduções € 26.904,21 4.900,00 31.804,21
Lucro tributável € 3.154,48 4.900,00 8.054,48
Em face do exposto, em sede de IRC, a vantagem patrimonial ilegítima obtida pela P...SA, SA, ascendeu ao montante de € 4.994,13 (quatro mil, novecentos e noventa e quatro euros e treze cêntimos), imposto que devia ter entregue e não entregou aos cofres do Estado, do seguinte modo discriminado:
- exercício de 2002 - € 1.587,59;
- exercício de 2003 - € 2.083,54;
- exercício de 2004 - € 1.323,00.
- IVA
Por seu turno, o montante exarado na factura, a título de IVA, foi revelado à administração tributária na correspondente declaração periódica de IVA apresentada no ano de 2002, pela P...SA, SA, tendo deduzido IVA nesse montante, o que não podia fazer, por respeitar a operações simuladas, atento o disposto no artigo 19º, n.º 3, do CIVA.
Nestes termos, face a esta dedução indevida, procedeu a administração tributária à correcção do IVA dedutível, cifrando-se em € 9.310,00 (nove mil, trezentos e dez euros) a vantagem patrimonial ilegítima global obtida pela P...SA, SA, em sede de IVA, do seguinte modo discriminada:
Período Declarado Correcção Corrigido
2002-07 10.355,51 9.310,00 1.045,51
Totais 10.355,51 9.310,00 1.045,51
Entretanto, no âmbito da acção inspectiva, ao ser confrontada com a situação em apreço, a P...SA, SA, reconheceu a falta, tendo regularizado a sua situação tributária em conformidade com as correcções supra identificadas, entregando para o efeito, declaração de substituição, modelo C, do IVA, relativamente ao período em causa e as declarações de substituição, modelo 22, do IRC, relativas aos exercícios de 2002, 2003 e 2004.
(…)
C)
(…)
Os arguidos AF..., AO..., HF..., MF..., VC..., AP... e HD..., que receberam e utilizaram as facturas fictícias, ou porque não correspondiam quaisquer operações ou porque os serviços não tinham sido prestados pelo arguidos FF…, agiram voluntária, livre e conscientemente, por eles e/ou em representação e interesse das firmas de que eram sócios-gerentes/administradores, cada um sob a mesma resolução criminosa, ciente de tais facturas não corresponderem a quaisquer serviços prestados e/ou materiais fornecidos pela pessoa que nelas constava como emitente, a favor dos mesmos, não se abstendo, porém, de as aceitar e lançá-las nas respectivas contabilidades.
Mais sabiam que os recibos e orçamentos a elas anexos eram fictícios.
Fizeram-no no intuito de obterem proveitos económicos indevidos para eles e/ou para as firmas que representavam, ao contabilizarem tais facturas como custos, no propósito de pagarem ao Estado menos impostos do que, na realidade, deviam, em sede de IRS e de IVA, fruto da diminuição do lucro tributável e da dedução de IVA, o que conseguiram.
(…)
Todos os arguidos tinham conhecimento de serem as suas condutas proibidas por lei.
(…)
D)
O arguido AP... é actualmente empresário do ramo de venda de máquinas e ferramentas, recebendo, como administrador, o vencimento de cerca de € 1.250,00 mensais.
A sua mulher é empregada administrativa, auferindo o vencimento de cerca de € 750,00 mensais. Têm dois filhos, de 12 e 8 anos de idade, que frequentam os estudos. Vivem em casa própria e concluiu o curso de contabilidade e administração.
(…)
E)
(…)
O arguido AP... foi condenado em 25-06-2003, por um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos (já declarada extinta).

Mais nenhum outro se provou, nomeadamente os seguintes:
(…)
h-2) Que foi o arguido FF... que emitiu e entregou a factura referida em B) - 12º supra ao arguido AP... e que, em contrapartida, este entregou àquele a quantia acordada;

A formação da convicção do Tribunal Colectivo teve por base a análise global das provas produzidas em audiência, em conjugação e confronto, analisadas e valoradas segundo as regras da experiência comum e normalidade das coisas, particularmente os elementos seguintes:
(…)
- quanto aos factos descritos em B) -12º supra, além dos documentos aí mencionados (com referência às folhas do processo), foram valoradas as declarações do arguido FF…, que referiu nunca ter trabalhado para a arguida P...SA, SA, cujo legal representante nem conhece, não tendo, por isso, emitido e entregue a factura em causa, tendo reconhecido tal documento como seu e tê-lo assinado, tal como a folha do contrato (fls. 794 e 795, que examinou). Foi também valorado, com relevo, o depoimento da testemunha PG…, Inspector Tributário, que referiu as averiguações que fez, no que respeita à factura daquele existente na contabilidade desta sociedade, para efeitos de IRC e IVA, confirmando os dados que recolheu e relatório (auto de notícia) que elaborou, bem como os documentos obtidos, além das correcções efectuadas, que objectivamente comprovam tais factos, sendo também elucidativo o facto de a factura ter data anterior ao contrato (fls. 93 a 98, 123 a 130 e 794 e 795), tudo isso também considerado, tal como o Relatório de Inspecção constante do Apenso 01 (embora o auto de notícia e relatório não na parte em que transcrevem declarações de arguidos ou testemunhas, então inquiridos). Quanto à denominação da arguida P...SA, SA, bem como quanto ao seu objecto, sede e legal representante, foi valorada a certidão da respectiva matrícula na C. R. Comercial (fls. 1257 a 1266). Quanto às vantagens ilegítimas, foi valorada a informação recebida dos Serviços de Finanças (fls. 1342 a 1344). Diga-se que perante a evidência dessas provas, nada foi trazido à audiência que as contrarie, sendo que o arguido AP...optou por não prestar declarações (no uso de direito legítimo);
(…)
- quanto aos factos descritos em D) supra, foram valoradas as declarações dos arguidos FF..., VE…, JV..., AF…, AO..., VS…, HF…, MF…, VC..., AP..., HD… e MG..., que referiram a sua situação profissional, pessoal e familiar desse modo, na altura e no presente.
(…)
- quanto ao factos aludidos em E) supra, foram considerados os CRC juntos aos autos (fls. 1247, 1322, 1251, 1249, 1323 e 1324, 1234, 1236, 1237, 1238, 1240, 1239, 1325 e 1326, 1246, 1327 e 1328, respectivamente);
- quanto aos factos não provados, aludidos em a) a r-2) supra, tal resultou da ausência de prova bastante da sua realidade, já que ou os arguidos não os confessaram ou as testemunhas não revelaram conhecimento directo dos mesmos ou foi mesmo referida coisa diferentes. Relativamente à prestação ou não dos trabalhos das facturas mencionadas, além do que objectivamente resulta das mesmas e demais documentação, em várias dessas situações não foi feita prova bastante de que tenha sido o arguido FF... a “vender” tais facturas, tanto mais que foi feita alusão, por várias pessoas, ao XZ..., que “andava” a passar facturas daquele, podendo, efectivamente, nas situações em que o FF... negou a emissão e entrega a outros arguidos, ter ocorrido ser aquele XZ... ou outrem a fazê-lo (embora não deixe de ser estranha a explicação do arguido FF... de que deixou o livro de facturas e recibos, com tudo já assinado, no porta luvas da viatura daquele, vindo só mais tarde a descobrir que haviam sido passadas muitas delas).

Fixados os factos, cabe proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
(…)
Impõem-se, então, analisar agora os ilícitos imputados aos restantes arguidos, em face da qualificação feita na acusação, começando pelo crime de fraude fiscal qualificada:
Dispõe o art. 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT (aprovado pela Lei 15/2001, de 05-06, na redacção em vigor à data dos factos), com a epígrafe “Fraude”, o seguinte:
“1 – Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificadamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável; …/…
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.” …/…
Por seu lado, estabelece o art. 104º, do mesmo RGIT, com a epígrafe “Fraude qualificada”:
“1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias: …/…
a) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
d) O agente usar livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro; …/…
2) A mesma é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das operações subjacentes.” …/…
(…)
No que respeita à responsabilidade das pessoas colectivas e dos seus legais representantes neste tipo de ilícitos, o art. 6º nº 1 do mesmo RGIT, que tem por epígrafe “Actuação em nome de outrem”, estabelece a responsabilidade penal de “titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva”, designadamente de “sociedade”.
Em todo o caso, “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fisicamente equiparadas, são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em nome e no interesse colectivo” (nº 1 do art. 7º do mesmo RGIT). E a responsabilidade criminal destas entidades “não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes” (nº 3 desse preceito).
Relativamente à pena de multa, cada dia “corresponde a uma quantia entre € 1 e € 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre € 5 e € 5000, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos” (art. 15º, nº 1, do mesmo RGIT).
No que respeita ao primeiro ilícito (fraude fiscal), trata-se de um crime doloso, podendo aparecer sob todas as formas desta categoria da culpa (dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual), não se exigindo, contudo, qualquer dolo específico (cfr. Ac. da RC de 11-06-2008 – nº Convencional JTRC e Proc. 53/06.8IDAVR, in www.dgsi.pt).
Ademais, para que o crime se considere consumado, não se exigirá que o agente represente, com exactidão, o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal e do benefício indevido correspectivo que se visa alcançar. Por outro lado, o crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, bastando-se a lei com a circunstância de as condutas tipificadas “visem” ou sejam pré-ordenadas à obtenção de vantagens patrimoniais «susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias». Ou seja, a eventual verificação do resultado lesivo apenas será relevante em sede de medida da pena (cfr. Tolda Pinto e Reis Bravo, Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais, Anotados, Coimbra Editora, 2002, págs. 310, 311 e 313).
(…)
Ademais, como já se referiu, a fraude qualificada pode ocorrer pela utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou ainda por valores diferentes ou com intervenção de pessoas diversas das da operação subjacente. Ou seja, a fraude pode ocorrer não só por “facturas falsas”, mas também por “simulação”, designadamente quanto aos sujeitos. Por outro lado, tendo ocorrido um negócio simulado entre duas pessoas quanto ao valor, como sucedeu nalguns destes casos, tendo em vista diminuir a prestação de imposto, há co-autoria na prática do crime de fraude fiscal, ainda que apenas um dos outorgantes seja o sujeito passivo da relação tributária, não sendo relevante o facto de não tirar vantagem patrimonial dessa simulação (neste sentido pode ver-se o Ac. da RC de 11-06-2008, Porc. 53/06.8IDAVR – nº Convencional JTRC, in www.dgsi.pt).
A jurisprudência tem vindo a reafirmar a natureza de crime de perigo por parte da fraude fiscal, na medida em que não se exige a efectiva obtenção de vantagem patrimonial, em prejuízo do administração fiscal, mas apenas a conduta que vise essa vantagem, consumando-se ainda que nenhuma vantagem venha a ocorrer (cfr. os Acs. da RC de 09-05-2007, Porc. 11/04.7IDCBR – nº Convencional JTRC, e do STJ de 27-11-2007, Proc. 07P3324 – nº Convencional JSTJ000, in www.dgsi.pt).
Refira-se ainda (tal como já se despachou no decorrer da audiência, na sequência de requerimento dos arguidos P...SA, SA, e AP...) que se considera que o limite de € 15.000,00, mencionado do nº 3 do artigo 103º do RGIT (na redacção da Lei 60-A/2005), abaixo do qual os factos integradores do crime de fraude fiscal não são actualmente puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no artigo 104º do mesmo RGIT, designadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime (neste sentido decidiu o Ac. da RG de 18-05-2009, Porc. 352/02.8IDBRG, in www.dgsi.pt).
Relativamente à dedução de IVA, estabelece o art. 19º, nº 3, do CIVA que “não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente.” E a simulação tanto pode ser absoluta como relativa (conceitos definidos nos arts. 240º e 241º do C. Civil).
Vejamos, então, a factualidade apurada relativamente a cada um dos arguidos submetidos a julgamento e a sua eventual responsabilidade penal.
(…)
Relativamente aos arguidos P...SA, e AP..., este legal representante daquela, resultou provado que, no ano de 2002, este, no exercício das suas funções, recebeu e lançou na sua contabilidade, para efeitos de IRC e IVA, uma factura e recibo em nome do arguido FF..., no valor base global de € 49.000,00, acrescido de IVA no montante de € 9.310,00, sem que correspondesse a quaisquer serviços e/ou materiais fornecidos por este, o qual também não lha emitiu e entregou, mas sim indivíduo não identificado (factos melhor descritos em B) – 12º supra).
Tratou-se, pois, de emissão de factura por operação inexistente com o arguido FF..., sendo que não resultou provado que tenha sido outra pessoa a executar os serviços mencionados em tal factura, pelo que se traduz numa “factura falsa”. Contudo, mesmo que tivesse sido emitida com intervenção de pessoa diversa (o FF...) da das operações subjacentes (o que se desconhece), tal representaria um negócio simulado, quanto aos sujeitos, situações igualmente tipificadas na lei, a qual integra também a falsificação do respectivo documento (cfr. arts. 103º nº 1 c) e 104º nºs 1 d) e 2 do RGIT).
Embora a situação tributária tenha sido regularizada, já que foi reposta a verdade fiscal (o que terá reflexos em termos de grau de ilicitude), incorreram os arguidos P...SA – Máquinas e Ferramentas, SA, e AP... na prática de um crime de fraude fiscal qualificada (como vêm acusados).
(…)
Todos os arguidos procederam de forma livre e consciente nesses seus actos, com intenção de alcançarem esses resultados, nos termos acima enunciados, sabendo da ilicitude de tais condutas. Por outro lado, não existirem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa previstas na lei penal (arts. 31º a 39º do C. Penal).

O crime de abuso de fraude fiscal qualificada é punido, quanto às pessoas singulares, com pena de 1 a 5 anos de prisão, sendo punido, quanto às sociedades, com pena de multa de 240 a 1200 dias (arts. 104º nºs 1 e 2 do referido RGIT).
(…)
Na determinação da pena concreta, dentro dos mencionados limites, há que ter em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo ainda atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a favor e contra os arguidos (art. 71º do mesmo Código). As directrizes a observar são, por um lado, a culpa do agente, que impõe uma retribuição justa e, por outro, as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e as exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade (cfr. Acs. do STJ de 24-02-93, BMJ 424º, 405 e da RC de 17-01-96, CJ I, 38).
Além disso há que ter em consideração o prejuízo sofrido pelo Estado, em face dos montantes em causa, o que importa diferenciar, conforme impõe o art. 13º do RGIT (embora as situações tenham sido, na maior parte, regularizadas).
Assim, há que considerar o grau da ilicitude dos factos, sendo mais elevado relativamente ao arguido FF..., que obteve as facturas e entregou a maior parte ou contribuiu para a sua disseminação, sendo ainda elevado quanto aos demais em função dos valores envolvidos, embora com diferenciação em função dos respectivos montantes e também devido ao facto de corresponderem ou não a serviços prestados por outrem (é maior a censurabilidade nos caso que não correspondem a quaisquer serviços), sendo que na generalidade das situações já foi regularizada a situação tributária, com pagamento das quantias apuradas; a intensidade do dolo, na modalidade de directo quanto à fraude, dado que os arguidos sabiam que estavam a violar a lei e que não lhe era permitido contabilizar esses custos para efeitos de IRS/IRC ou deduzi-los para efeitos de IVA, sendo eventual quanto à burla tributária; a inexistência de antecedentes criminais por parte da generalidade dos arguidos, com excepção dos arguidos CO e AP..., que foram condenados uma vez, embora em penas de gravidade pouco significativa, mas o segundo também por crime fiscal (abuso de confiança, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, já declarada extinta); a sua situação económica e integração familiar e social, o que os beneficia, além da postura que cada um assumiu em audiência, mais relevante por parte do arguido FF..., que contribuiu para o esclarecimento dos factos.
Ponderando todas estas circunstâncias e tendo em conta as fortes exigências de prevenção, nomeadamente de ordem geral, face à significativa frequência deste tipo de ilícitos, cuja repulsa social por parte dos contribuintes cumpridores é evidente, e tendo em consideração as molduras legais, bem como a diferenciação a fazer, em função dos factores enunciados, afigura-se ajustado aplicar as penas seguintes: (…) à arguida P...SA , a pena de 330 dias de multa; ao arguido AP... a pena de 2 anos de prisão (…) pelo crime de fraude fiscal qualificada.
(…)
No que respeita ao montante de cada dia de multa, o mesmo varia entre € 05,00 e € 5.000,00, a fixar em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos (art. 15º do RGIT). Assim, tendo em conta que a arguida Construções V&O…, foi já declarada insolvente, não tendo, por isso rendimentos, e as restantes mantém actividade, embora sem se ter apurado os lucros concretos que obtêm, sendo do conhecimento geral que o sector da construção civil atravessa uma crise (tal como a actividade económica e produtiva em geral), fixa-se o quantitativo diário da multa em € 05,00 para aquela (insolvente) e em € 20,00 para as demais (por não haver especial razão para distinguir).
Dispõe o art. 50º nº 1 do C. Penal (redacção da Lei 59/2007, de 04-09, em vigor desde 15-09-2007) que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.”
Ao contrário da anterior redacção desse normativo, que apenas permitia a suspensão da execução da pena de prisão quando “aplicada em medida não superior a três anos”, actualmente essa suspensão é permitida quando a pena seja aplicada em medida não superior a cinco anos, pelo que o actual regime é manifestamente mais favorável, sendo, por isso, o aplicável (art. 2º nº 4 do C. Penal).
Os arguidos pessoas singulares, naquilo que foi possível apurar, encontram-se social, familiar e laboralmente integrados, não tendo condenações criminais, com excepção dos dois referidos, também estas de gravidade moderada. Além disso, já decorreu bastante tempo sobre a data dos factos e regularizaram, na generalidade, as obrigações contributivas. Por outro lado, sendo a conduta do arguido FF... a mais grave, por ter sido o “epicentro” de toda esta fraude, o mesmo encontra-se em situação de saúde muito delicada, em cadeira de rodas e com amputação de uma das pernas, completamente incapaz. Desse modo, porque se afigura que será suficiente para satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime, decide-se suspender a execução dessas penas de prisão, sendo o período de suspensão igual ao da respectiva pena aplicada a cada um dos arguidos, a contar do trânsito em julgado (nº 5 desse preceito).
(…)
Atento tempo já decorrido e especialmente a reposição da verdade fiscal por parte dos arguidos, considera-se não se mostrarem verificados suficientemente os pressupostos para aplicação de quaisquer penas acessórias (cfr. arts. 16º e 17º do dito RGIT).
***
III. Apreciação do Recurso
Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Quando o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos prescritos no nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (sendo o caso). Acrescenta o nº 4 desse preceito que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
E a enunciação de tal fundamento do recurso bem como a respectiva especificação deve constar antes de mais da motivação, destinando-se as conclusões apenas a resumir os fundamentos do recurso daquela constante, não a enunciar novos fundamentos, conforme decorre do disposto nos artigos 412º, nº 1 e 417º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Ora os recorrentes na motivação apresentada em nenhum momento impugnam a matéria de facto, apenas o fazendo nas conclusões, embora também sem cumprimento cabal do disposto no artigo 412º, nº 3 e nº 4 do Código de Processo Penal.
Em razão de tais deficiências está este Tribunal impedido de conhecer da impugnação da matéria de facto que, para os efeitos legais, não foi sequer realizada, porque ausente da motivação do recurso em sentido estrito.

Sendo as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto e sem embargo do antes exposto, a questão a apreciar será a seguinte:
- Se o crime de fraude fiscal qualificado p. e p. pelo artigo 104º do RGIT por que os arguidos/recorrentes foram condenados foi objecto de descriminalização por força da alteração introduzida pela Lei nº 60-A/2005 ao artigo 103º, nº 2 do RGIT, dado que a vantagem patrimonial ilegítima obtida é inferior a 15.000 €?

Porém, o Ministério Público na sua resposta ao recurso suscita a questão da existência de caso julgado relativamente a tal matéria por ter sido objecto de apreciação a requerimento dos arguidos em despacho proferido na acta de audiência de julgamento.
Como tal questão, a ser pertinente, contenderá com a possibilidade de apreciação do recurso, será previamente objecto de apreciação.

Do caso julgado formal
A questão da descriminalização do crime de fraude fiscal imputado aos arguidos/recorrentes foi objecto de decisão na acta de audiência de julgamento de fls. 2938, a requerimento dos mesmos, tendo-se decidido pela não ocorrência de descriminalização porque, no entendimento expresso, o nº 2 do artigo 103º do RGIT se não aplica ao crime de fraude fiscal qualificada previsto no artigo 104º do mesmo diploma legal.
Tendo tal decisão sido proferida em 8.9.2009 e tendo o recurso sido interposto em 21.12.2009, ter-se-á formado caso julgado formal, caso em que este Tribunal de recurso estará impedido de apreciar a questão. Esta é a posição expressa pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso.
A questão do caso julgado em processo penal não terá uma apreciação tão linear como em processo civil porque a matéria não se encontra regulada no Código de Processo Penal.
O artigo 4º do Código de Processo Penal estipula que "nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal".
Convirá precisar que o que fundamenta o caso julgado é essencialmente a necessidade de garantir a certeza e a segurança do direito, ainda que com eventual sacrifício da justiça material, por forma a assegurar às pessoas a paz jurídica, evitando o perigo de decisões contraditórias (cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1983, pág. 302).
Mas em que termos em processo penal a justiça material poderá ficar prejudicada em benefício da necessidade da certeza e segurança do direito?
Que quanto a decisões que ponham termo ao processo essa necessidade é evidente, ainda assim a lei contempla excepções ao caso julgado (veja-se a recente alteração ao artigo 4º, nº 4 do Código Penal).
Fora, portanto, das excepções expressamente previstas, não temos dúvidas em afirmar que em relação a decisões que no processo penal lhe ponham termo se impõe a aplicação analógica do regime do caso julgado previsto em processo civil.
A questão coloca-se, porém, em relação a decisões interlocutórias, como a presente, que não põem termo ao processo.
Como se afirma no Acórdão de fixação de Jurisprudência do STJ nº 2/95, publicado no DR Iª S de 12.6.1995 que de perto seguimos e que apreciou questão de caso julgado em processo penal, embora sem paralelo evidente com a presente, "a pura e simples aplicação dos princípios e normas que regem o caso julgado no processo civil ao processo penal não se nos afigura legítima, designadamente porque se iria, no fundo, coarctar, limitar e condicionar o princípio da verdade material que constitui o escopo fundamental a atingir no processo penal".
Sem afastar o recurso à analogia, o que se acentua em tal Acórdão é que "é indispensável encontrar um critério que, entrando em linha de conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo penal das normas do processo civil neste domínio e tal critério só poderá encontrar-se no artigo 4º do Código de Processo Penal que aponta fundamentalmente para dois pressupostos de aplicação, a saber:
A existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do processo penal; e
A harmonização das normas do processo civil a aplicar com o processo penal."
Se o recurso à analogia pressupõe necessariamente a existência de uma lacuna, cabe perguntar em primeiro lugar se no caso ocorre uma verdadeira lacuna ou se, pelo contrário, existe norma no processo penal que, directa ou indirectamente, regule a situação, afastando, pois, a aplicação do regime do caso julgado regulado no processo civil.
O Acórdão mencionado teoriza longamente com recurso a pertinente doutrina sobre o que deve considerar-se lacuna e sobre o que se deve entender como lacuna imprópria e que, por isso, não justifica o recurso à analogia, acentuando, como Figueiredo Dias, em Direito Processual Penal, vol. I pags. 96 a 97, que o recurso a processo analógico tem de comportar as limitações decorrentes do principio da legalidade, o que significará que a integração analógica nunca poderá ter lugar se e quando conduza à diminuição dos direitos processuais do arguido, a chamada analogia in malam partem.
Ora, tendo presentes estes pressupostos, verificamos que o artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal que se refere às questões a decidir na sentença estipula nos seus nºs 2 e 3:
"2. … o presidente enumera descriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões a saber:
a) se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime,
b) se o arguido praticou o crime ou nele participou,
(…)
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
(…)
3. Em seguida o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior.
Assim, como verificamos pelo teor deste preceito, vem estabelecido que na decisão final o tribunal possa apreciar e com a maior amplitude todas as questões relativas à subsunção jurídica dos factos e punibilidade da conduta sem que se encontre qualquer ressalva em relação a questões dessa natureza que antes da decisão final tenham sido suscitadas no processo e objecto de decisão.
Tal apenas pode querer significar que não é legitimo aplicar ao caso as regras do trânsito em julgado em relação ao conjunto de questões que o tribunal, com toda a amplitude, pode conhecer na decisão final que se siga ao julgamento.
E se o tribunal não só pode como deve conhecer de tais questões, como a descriminalização da conduta imputada, o que, aliás, ocorreu na decisão recorrida, a aplicação das regras do caso julgado contidas no processo civil, redundaria numa compressão intolerável do direito ao recurso com a extensão consignada no artigo 410º, nº 1 do Código de Processo Penal estipulando que "… o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida".
E pelo exposto se concluiu inevitavelmente que as regras do caso julgado previstas no processo civil não são aplicáveis no caso, desde logo porque não ocorre qualquer lacuna, sendo a regulamentação contida no processo penal incompatível com tal regime.
Nada obsta, pois, à apreciação da questão suscitada pelos recorrentes.

Da descriminalização do crime de fraude fiscal
Pugnam os recorrentes no sentido de que o crime de fraude fiscal qualificado que determinou a sua condenação se encontra descriminalizado em razão da alteração produzida pela Lei nº pela Lei nº 60-A/2005 no artigo 103º, nº 2 do RGIT, fixando o valor aí referido em 15.000 €.
Certo é que vem provado terem os arguidos/recorrentes obtido com a sua conduta vantagem patrimonial não superior a esse valor.
Na decisão recorrida considerou-se não ter ocorrido despenalização porque o nº 2 do artigo 103º do RGIT que define o valor da vantagem patrimonial a partir do qual a conduta tipificada como fraude é punível, não é aplicável ao crime de fraude qualificado previsto no artigo 104º do RGIT, tendo sido essa a incriminação efectuada.
Citou-se em abono de tal tese o Acórdão da Relação de Guimarães de 18.5.2009, publicado em www.dgsi.pt, onde se pode ler:
"A técnica legislativa é bem clara.
Os recorrentes não praticaram apenas os factos previstos em "números anteriores" do artigo 103º, nº 2. Praticaram esses e mais outros, que qualificam o crime (utilizaram facturas falsas – art. 104º, nº 2). Os factos não puníveis são apenas os previstos nos "números anteriores", não existindo nenhuma razão literal ou outra, para suspeitar que o legislador quis também abranger os factos previstos nos artigos seguintes."
Vejamos então.
Com a alteração em questão o artigo 103º do RGIT passou a ter a seguinte redacção:
«1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar dos livros de contabilidade ou de escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
2. Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, deva m constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».

Já o corpo do nº 1 do artigo 104º tem a seguinte redacção:
1. Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
Para tipificar o crime de fraude qualificada o normativo acabado de citar remete para "os factos previstos no artigo anterior" e não para os factos previstos no nº 1 do artigo anterior.
E os factos previstos no artigo anterior não são apenas os elementos típicos previstos no nº 1, com também a condição objectiva de punibilidade prevista no nº 2. Facto punível é, em suma, a conduta ilegítima que vise a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, mediante ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar dos livros de contabilidade ou de escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável ou mediante ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária, se a vantagem patrimonial ilegítima for de valor igual ou superior a € 15.000.
Segundo uma interpretação conforme com o disposto no artigo 9º do Código Civil isso apenas pode querer significar que também a fraude fiscal qualificada apenas é punível se a vantagem patrimonial ilegítima não for inferior a 15.000 euros.
É que, se não fora essa a intenção do legislador, expressamente teria empregue a linguagem de remissão para os números do artigo anterior que pretendia aplicáveis e conformadores do tipo de crime e não para todo o artigo.
E, nos termos do citado artigo do Código Civil, se é certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, também igualmente estabelece que não pode ter acolhimento aquela que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expressa.
Existem afinal, segundo cremos, razões literais e intransponíveis, para se entender que o crime de fraude fiscal, ainda que qualificado nos termos do artigo 104º do RGIT, foi objecto de descriminalização quando o valor da vantagem obtida for inferior a 15.000 €, como em relação aos recorrentes ocorre.
Acresce que em direito penal a interpretação da lei, para além do disposto no artigo 9º do Código Civil, deve ainda obedecer aos ditames do princípio da legalidade que desde logo tem consagração no artigo 29º, nº 1 da Constituição. E em que medida o princípio da legalidade se constituiu como uma barreira que pode mesmo contrariar em casos limite a racio legis ou a racio iuris?
Como refere Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2º edição, pág. 180, a propósito do princípio da legalidade «o princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento tem o legislador que o considerar como crime para que ele possa ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na sua punibilidade também certos (outros) comportamentos».
E mais adiante (pág. 186) escreve o mesmo autor «para uma correcta observância do princípio da legalidade importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até ao ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados» e «nesta acepção se afirma com razão que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e determinada; e se chama muito acertadamente a atenção, nos novos tempos, para que é mais aqui até do que no plano da proibição da analogia ou da retroactividade que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum crimen, que é neste ponto que reside o verdadeiro cerne do princípio da legalidade.»
E ainda especificamente sobre as consequências do princípio da legalidade na delimitação da actividade interpretativa refere o mesmo autor (pág. 189) «fundar ou agravar a responsabilidade do agente em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas» e referindo-se ao papel da racio legis, sentido e finalidade da lei, na interpretação (pág. 191) «Claro que este sentido e finalidade assume na interpretação (também na jurídico-penal, como assinalámos) uma função primordial. Mas antes de ele entrar em jogo, a interpretação admissível tem de passar a "prova de fogo" - para a qual pode servir a imagem do "funil invertido" – da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele comporta. De outro modo esfuma-se a função de garantia da lei penal – a protecção das pessoas perante a lei penal (…) e o disposto no artigo 29º, nº 1 perde inteiramente a sua função e o seu significado.»
Não nos conseguiríamos exprimir com maior eloquência sobre a dimensão do princípio da legalidade na actividade do intérprete e sobre a importância acrescida de não poder colher a interpretação que não corresponda ao sentido gramatical das palavras usadas, ainda que outras razões/elementos de ordem interpretativa o pudessem justificar.
E a doutrina que conhecemos tem-se expressado precisamente no sentido que começámos por defender, antes mesmo dos subsídios importantes do princípio da legalidade.
Assim, referem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, em Regime Geral das Infracções tributárias Anotado, 2008, anotação ao artigo 104.º do RGIT:
«A falsificação ou viciação, ocultação, destruição, inutilização ou recusa de entrega, exibição ou apresentação de livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária, pelo agente, bem como o uso por este daqueles elementos, sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro, por parte das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem a liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias de valor igual ou superior a € 7500, não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber, caso em que é aplicável [als. d) e e) do n.º 1 e 3]». Referem-se os autores à redacção anterior do preceito, mantendo-se, porém, a pertinência do afirmado com a redacção actual que apenas alterou o referido valor.
Por sua vez, escreve Susana Aires de Sousa, em Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, pág.118, citando em seu apoio os autores anteriormente referidos e ainda Germano Marques da Silva, em Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo II, 2001, pág. 64:
«Uma outra questão importante é a de saber se o n.º 2 do artigo 103.º que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem ilegítima for inferior a € 7500 vale nos casos em que a fraude é qualificada. A nosso ver a resposta só pode ser no sentido da validade, no âmbito do artigo 104.º daquele limite. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima, conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado, for igual ou superior àquele montante». Igualmente se refere a autora à redacção anterior do preceito.
Finalmente, Nuno Pombo, em Fraude Fiscal, Almedina, 2007, pág. 215, afirma o seguinte:
«Refira-se por último que o legislador, pela técnica usada no desenho da norma incriminadora, veio permitir que se instalasse a dúvida quando a saber se a efectiva punição, tal como se estabelece para o crime de fraude simples, pressupõe a pretensão de ser auferida vantagem patrimonial igual ou superior a 15.000 €. Com efeito, o artigo 104.º sobre este aspecto, é estranhamente mudo. Parece-nos todavia, que a melhor solução, em homenagem mais ao espírito do instituto do que aos elementos literais disponíveis, será a que advoga dever ser tomado em conta o limite de que depende a respectiva punição. A qualificação opera-se pela recepção de circunstâncias modificativas agravantes e deve traduzir-se não no alargamento das situações puníveis mas, como acontece, num endurecimento das respectivas penas».
Em face do que se deixa consignado importa concluir que o recurso merece provimento.
***
IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos acordam em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, declarar extinto por descriminalização o procedimento criminal exercido contra os arguidos/recorrentes P...SA e AP....
Não há lugar a tributação.
***
Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)

José Eduardo Fernandes Martins