Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
769/12.0GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA AUDIÊNCIA
ADIAMENTO
PERDA
EFICÁCIA
PROVAS
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 328.º, N.º 6, E 363.º, DO CPP
Sumário: Se a audiência de julgamento começou e atingiu o seu termo sem qualquer adiamento, tendo sido proferida sentença condenatória, e, posteriormente, porque a gravação de um dos meios de prova, oralmente produzido, não se mostrava audível, foi ordenada a repetição do julgamento e elaborada nova decisão final, a este caso não é aplicável o disposto no artigo 328.º, n.º 6, do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

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I – RELATÓRIO

1 - Por sentença datada de 23 de Setembro de 2013, foi o arguido, A... , com sinais nos autos, condenado pela prática, em concurso material e concurso efectivo, de:

- dois crimes de injúrias, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa; à taxa diária de €7,00 para cada um.

- um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €7,00.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado pela prática dos sobreditos crimes na pena única de 205 (duzentos e cinco) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros).

2 - Inconformado com esta condenação, dela recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

a) Em 26 de Junho de 2013, o tribunal de primeira instância prolatou a sentença condenatória do arguido.

b) Porém, a gravação da acareação levada a cabo entre o assistente e as testemunhas, B...e C..., não a registou com audibilidade.

c) Por despacho de 12.07.2013, julgo nulo o acto de acareação por deficiência de documentação das declarações prestadas oralmente.

d) Em 23 de Setembro de 2013, a primeira instância proferiu nova sentença na qual condenou o arguido, por dois crimes de injúria e um crime de ameaças agravado.

e) O art. 328º do CPP estipula a regra da continuidade da audiência, admitindo algumas excepções de descontinuidade, mitigadas por determinado prazo, mais concretamente, o nº 6, que impõe que «o adiamento não pode exceder os 30 dias» e estabelece como consequência para a sua não observação, a perda de eficácia da prova já realizada.

f) No caso dos autos, decorreram mais de 30 dias entre a segunda sessão de julgamento (26 de Junho de 2013) e a terceira sessão de julgamento em que se procedeu à repetição da acareação.

g) Deve, pois, ser declarada a invalidade do julgamento e a nulidade insanável da sentença.

h) Os pontos de factos nºs 1, 2º, 5º, 8º e 9º não podiam ter sido dado como provados como o foi em primeira instância.

i) O Tribunal da primeira instância não valorou nem as declarações do arguido, A..., nem o depoimento da testemunha C..., tendo considerado este depoimento inconsistente, manifestamente parcial e interessado, na clara tentativa de desresponsabilizar o arguido.

j) Porém, esta testemunha prestou um depoimento firme, convicto e credível.

l) Não existe contradição entre os depoimentos de A... e C....

m) O depoimento prestado pela C... perante D... mostrou-se, ao contrário, do que se lê, na sentença, inequívoco, seguro e firme.

n) O motivo pelo qual o tribunal de primeira instância descredibilizou o depoimento de C... – o tentar desviar o objecto de acareação para outros assuntos (procurando deliberadamente criar dúvida sobre o carácter dos assistente e da testemunha B...) deveria, contrariamente, ter servido para credibilizar o depoimento daquela testemunha.

o) O depoimento do assistente não merece qualquer credibilidade pela notória contradição e incoerência demonstrada no mesmo.

p) Contrariamente ao considerado a sentença, a distância a que se encontrava a testemunha, B..., não lhe permitia ouvir com clareza o que as pessoas diziam.

q) No que toca aos factos nºs 5º, 8º e 9º, não poderiam ter sido dado como provados, porquanto o comportamento processual do assistente leva a crer que o mesmo deu mais relevância aos insultos do que à suposta ameaça à sua integridade física, porque apresenta queixa dos factos no segundo dia seguinte à ocorrência dos primeiros, enquanto espera aproximadamente um mês para apresentar a queixa dos factos alegadamente ocorridos em 17 de Novembro de 2012.

r) Tal revela que o assistente não poderia ter sentido medo, receio ou temor ou insegurança, porque o comportamento normal do ser humano intimidado seria denunciar a situação de imediato, o que não ocorreu no caso dos autos.

s) Devem, pois, os factos tidos como provados nos nºs 2, 3, 5, 8 e 9 serem julgados não provados. 

3 – O Ministério Público em primeira instância defendeu a manutenção da decisão recorrida, concluindo que:

I. No caso dos autos não foi excedido o intervalo de trinta dias entre as várias sessões da audiência.

II. Num primeiro momento, realizou-se a audiência e, finda a produção de prova, efetuadas as alegações orais e dada ao arguido a oportunidade para fazer as últimas declarações, foi designada data para a leitura da sentença, após o que foi declarada encerrada a audiência, como determina o n.º 2 do artigo 361.º do Código de Processo Penal.

III. Sucede que, o arguido suscitou a inaudibilidade dos depoimentos prestados aquando da acareação realizada, e em deferimento desta pretensão, foi designada nova data para repetição daquele ato e proferida douta sentença, porquanto o Tribunal a quo não considerou que tivesse havido perda de eficácia da prova produzida, e andou bem, pois não houve adiamento da audiência.

IV. É nosso parecer que na hipótese dos autos, de necessidade de repetição de prova oralmente produzida devido a deficiente gravação que a torna imperceptível, não se aplica o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 11/2008, de 29.10.2008 (publicado no Diário da Republica, I, 11.12.2008), por se tratar de um caso de reabertura da audiência (para repetir os depoimentos deficientemente gravados), e aquele visar apenas as situações de adiamento.

V. Tal como dispõe a segunda parte do n.º 6 do artigo 328.º do Código de Processo Penal, a audiência que foi adiada, retoma-se, a que foi encerrada reabre-se, em obediência ao disposto nos artigos 371.º e 371.º – A, ambos do Código de Processo Penal.

VI. Eleger um meio de prova como sendo mais credível do que outro é a manifestação pura da apreciação da prova, que no caso foi realizada atendendo às regras da lógica, da razoabilidade e princípios da experiência.

VII. O elenco dos factos dados como historicamente verificados merece a nossa adesão e bem assim a motivação da decisão recorrida, por ser clara, suficiente, objetiva e assente numa valoração racional e coerente da prova produzida.

VIII. Do texto da decisão recorrida não se vislumbra qualquer incoerência factual ou lógica, antes evidenciando racionalidade, uma vez que as conclusões estão fundamentadas com recurso à utilização de meios de prova legais e às regras da experiência comum.

IX. Também o dever de fundamentação foi cumprido, em termos que indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção sobre a matéria de facto e justificando a razão dessa convicção, permitiu conhecer das razões do decisor.

X. Tudo ponderado, a douta decisão não violou os artigos 328.º, n.º 6 e 410.º, n.º 2, alínea c), ambos do Código de Processo Penal.

4 - O assistente apresentou a resposta à Motivação de Recurso, advogando a falta de razão do Recorrente.

5 - A Digna Procuradora-Geral Adjunta, nesta Relação, no parecer de fls. 301 e 302, acolhe os argumentos aduzidos em 3 e bem assim os do Acórdão de Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.22011, para pugnar pela improcedência do Recurso.

6 - Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal[1]., proferiu a Relatora decisão sumária, julgando o recurso manifestamente improcedente.

7 - Desta decisão reclama o Recorrente para a Conferência, nos termos 417º, nº 8, do Código de Processo Penal, requerendo que o seu recurso seja reapreciado em conferência, reiterando as conclusões supra mencionadas em supra 2.

8 – Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso e da reclamação.  

 

II – DA SENTENÇA RECORRIDA

A primeira instância julgou a matéria de facto da seguinte forma:

Deu como Provados os seguintes Factos

1. No dia 17 de Novembro de 2012, cerca das 14,00 horas, o assistente encontrava-se num terreno pertença do INAG e cedido à Junta de Freguesia da Carapinheira, localizada junto à residência do arguido, sita na Rua X..., Montemor-o-Velho, quando aí surgiu este que, dirigindo-se ao assistente, de viva voz, lhe chamou “cabrão”, “filho da puta“, caloteiro de merda”, dizendo-lhe ainda para pagar o que lhe devia.

2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dirigiu-se ao assistente, de viva voz, de forma séria e determinada, disse-lhe que se voltasse a trazer para ali as máquinas às duas da manhã lhe pregava um tiro, que lhe fazia a folha.

3. No dia 11 de Dezembro de 2012, cerca das 11.00 horas, na sequência de um acidente de viação em que o assistente foi interveniente, ao aproximar-se da viatura da GNR que tomou conta da ocorrência e que se encontrava estacionada na serventia de acesso à residência do arguido, sita na Rua de X..., Montemor-o-Velho, o arguido, dirigindo-se ao assistente, de viva voz, disse-lhe: “vai lá para fora que lá é que é para os cães; és um caloteiro, paga o que me deves”.

4. O arguido sabia que ao proferir as expressões acima descritas em 1 e 3 ofendia a honra, a dignidade e a consideração do assistente, o que efectivamente conseguiu.

5. O arguido sabia que as expressões que proferiu dirigidas ao assistente e supra referidas em 2. eram adequadas a causar medo e inquietação ao assistente, o que quis e conseguiu, uma vez que o assistente sentiu medo e inquietação pela sua vida e integridade física, receando que o arguido concretizasse a ameaça e o matasse.

6. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

7. Em consequência das expressões referidas em 1. e 3. o assistente sentiu-se vexado.

8. Em consequência das expressões referidas em 2. supra, e forma  como o arguido as proferiu, o assistente sentiu receio e insegurança por temer que a invocada ameaça se possa concretizar.

9. A conduta do arguido referida em 2. supra, tem condicionado o modo de vivência do assistente, evitando este frequentar locais onde eventualmente se possa encontrar com o arguido, gerando-lhe ansiedade, revolta e perturbação.

10. O arguido encontra-se reformado auferindo uma pensão de reforma no montante mensal de € 750,00.

11. O arguido vive com a mulher, em casa própria, técnica de farmácia, a qual aufere vencimento não concretamente apurado.

12. Tem uma filha maior, estudante, a cargo, suportando o arguido as propinas e demais despesas da filha, cujo montante em concreto não se apurou.

13. O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

14. É considerado no meio social em que se insere.

15. Não tem antecedentes criminais.    

E, não Provados

1.1. No dia 17 de Novembro de 2012, cerca das 14.00, quando o arguido proferiu dirigido ao assistente as expressões referidas em 1. e 2. dos factos provados, o mesmo e o arguido encontravam-se junto da Junta de Freguesia da Carapinheira, Montemor-o-Velho.

 1.2. As expressões proferidas pelo arguido supra referidas em 1. e 3. dos factos provados estigmatizaram a reputação do assistente/demandante, dando ele uma imagem totalmente desfocada da pessoa séria, honesta e correcta que é na sua vida social e profissional.

1.3 – Em consequência da actuação do arguido supra descrita em 1. e 3. dos factos provados, o assistente/demandante foi submetido a forte desgosto, perturbação e revolta, em consequência da humilhação de que foi alvo.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

- Nulidade insanável: descontinuidade da audiência

- Impugnação da matéria de facto

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Nulidade insanável: descontinuidade da audiência

Alega o Recorrente que entre 26 de Junho de 2013, data em ocorreu a segunda sessão de julgamento e a data em que se repetiu a acareação (16.09.2013), decorreram mais de 30 dias, perdendo, assim, eficácia a prova anteriormente produzida, em consequência do que dispõe o art. 328º.

Mas, salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão.

O princípio da continuidade da audiência inserto no art. 328º, nº 1, sem interrupções ou adiamentos, visa de um lado, assegurar o principio da concentração, «segundo o qual, todos os termos e actos processuais, consoante as respectivas fases do processo, se devem desenvolver unitária e continuadamente, concentradamente, no espaço e no tempo, o que significa relativamente à audiência, uma tramitação unitária, continuada e no menor espaço de tempo, em que toda a prova, oral e directamente produzida, seja apreciada o mais próximo possível dos factos, em conjunto e enquanto bem presente na memória do julgador» e, de outro, a «celeridade, sem a qual a administração da justiça perde a eficácia, valor consagrado na Constituição (artigo 20º, nº 5), através da imposição de que a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais deve ser legalmente assegurada, mediante procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, bem como da concessão do direito à decisão em prazo razoável (artigo 20º, nº 4), direito este também previsto no artigo 6º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[2]».        

De todo o modo este princípio não é absoluto, permitindo o legislador, interrupções e adiamentos da audiência, quando se verifique, respectivamente,  uma das situações previstas nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito e diploma.

Interrupção e adiamento da audiência são dois institutos jurídicos diferentes que, como tal são reconhecidos pelo legislador, no mesmo preceito[3].

Para o adiamento da audiência, preveniu, o legislador, um limite de prazo e cominação para a inobservância do mesmo.

 De acordo com o nº 6, do citado art. 328º, aquele adiamento não pode exceder os 30 dias e, não sendo possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.

A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Acórdão Fixação de Jurisprudência nº 11/08, publicado no DR, I Série, nº 239, de 11 de Dezembro de 2008, com o seguinte teor:

«Nos termos do art. 328º, nº 6 do CPP, o adiamento de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda de eficácia da prova produzida com sujeição do princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o art. 363º do mesmo diploma».

Com resulta da expressão literal do preceito, o limite do prazo de 30 dias só foi considerado para os casos de adiamento de audiência.

A audiência a que se reporta este preceito é, no contexto sistemático em que se insere, a fase do julgamento regulada entre os artigos 321º a 364º (Titulo II, do Livro VII, da Parte II do Código de Processo Penal).

«O julgamento e audiência de julgamento são, à face do novo Código, termos que perderam a incindibilidade que os caracterizava no Direito anterior, onde a expressão audiência de julgamento denominava a totalidade da fase que presentemente o legislador do novo Código entendeu que ficava melhor caracterizado sob o nome de julgamento, compreendendo duas sub-fases: a audiência propriamente dita e a sentença[4]».

O mesmo é dizer que, quando uma audiência termina e vem a ser reaberta, por algum motivo posterior, que a justifique, não está sujeita àquele limite de prazo.

Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros,

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Outubro de 2007, que, acolhendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[5],  que decidiu:

«O prazo referido no n.º 6 do art. 328.º do CPP não se aplica a audiências já terminadas (às da leitura da sentença), pois o prazo para esta é preenchido precisamente na apreciação da prova e redução a escrito das sentenças, isto é, não constitui intervalo morto, em que os fins pretendidos pelos princípios da imediação e da concentração (manutenção das impressões e recordações colhidas e unidade, decorrente da continuidade da audiência e decisão) deixam de se verificar.

O prazo estabelecido no art. 373.º do CPP (para leitura da sentença) tem natureza meramente ordenacional e a sua ultrapassagem não acarreta irregularidade e muito menos qualquer nulidade».

O Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Junho de 2011, proferido no processo nº 737/07.3PLSB.L1 em que afastou a aplicabilidade do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/08, de 29.10.2008, ao caso de reabertura de audiência, para repetição parcial da prova oralmente produzida, devido a deficiente gravação que a torna imperceptível.

O Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Novembro de 2009, no processo nº 79/05.GBVNG, onde se lê:

«Em caso de reabertura da audiência de julgamento determinada em decisão proferida por tribunal de recurso não tem aplicação a norma do nº 6 do art. 328º, do CPP».

No caso dos autos, constata-se que a audiência de julgamento começou e acabou sem qualquer adiamento (fls. 129 a 132), tendo sido proferida sentença condenatória do arguido.

  Posteriormente, constatando-se que a gravação de um dos meios de prova – a acareação – não se mostrava audível, foi ordenada a sua repetição e elaborada nova sentença.

Ou seja, a audiência que se encontrava terminada foi reaberta por força da irregularidade do registo documental de um dos meios de prova que, atempadamente foi arguida e decidida.

Nestes casos e pelos motivos supra expostos, não há que observar o prazo a que alude o art. 328º, nº 6 citado.

Não assiste, pois, razão ao Recorrente.

2. Impugnação da matéria de facto

O sistema processual penal vigente consagra, como já se afirmou, um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto (cf. art. 410º, 412º, nº 3 e 431º).

Porém, a garantia do duplo grau de jurisdição, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[6] «não significa que tenha de se proceder a um novo julgamento, em toda a sua extensão, tal como ocorrera em primeira instância», onde a oralidade e a imediação da produção da prova se fazem sentir cf. art. 355º.

A este propósito, pronuncia-se Germano Marques da Silva[7], da seguinte forma:

«(…) A oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens».

Também, Figueiredo Dias[8],  ensinava que:

«Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (…). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais».

Ou seja, o recurso da matéria de facto, não tem como objectivo afastar o princípio da livre apreciação da prova, exarado no art.º 127.º do Código Processo Penal, segundo o qual -  salvo quando a lei dispuser diferentemente - a prova  é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

 “ (…) A «livre» ou «íntima» convicção do juiz, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável (…). A convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal — até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais —, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros[9] ”.

A livre convicção que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira[10] «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade».

A liberdade que aqui importa, afirma Germano Marques da Silva[11]:

 « (..) é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva».

Trouxeram-se à colação estes ensinamentos para concluir que aos tribunais de recurso, a quem está vedada a imediação e oralidade em toda a sua extensão – mesmo quando se põe em causa a matéria de facto e se cumprem todos os procedimentos do nº 3 e 4 do art. 412º - só podem afastar-se do juízo feito pela primeira instância naquilo que não se tiver operado em consonância com os princípios acima referidos.

«É evidente  que a valoração da prova por declarações depende, para além do conteúdo destas, do modo com as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que revelam, para além da postura e comportamento global do declarante, para efeitos de determinação de credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, carácter e da probidade de quem depõe[12]».

Daqui que a reapreciação da matéria de facto baseada em prova oral, deva, salvo em casos de excepções, adoptar, o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

No caso dos autos, constatamos que decisão sindicada assenta, no seu todo, na livre convicção do julgador da primeira instância, que explica de forma clara, compreensível e sem deixar qualquer dúvida, quais os passos que deu para, em função da prova testemunhal produzida, conjugada as regras da experiência comum, chegar à conclusão que foi o arguido proferiu actuou nos dias 17 de Novembro de 2012 e 11 de Dezembro do mesmo mês.

Como indica os motivos pelos quais acreditou na versão apresentada pelo assistente e não na versão do arguido, após uma apreciação global, conjugada e articulada dos meios probatórios.

Ou seja, não se vislumbra na sentença, qualquer desrespeito pelas regras  probatórias supra descritas, nem o recorrente fornece fundamento para os colocar em causa.

Vejamos, agora, as pretensões concretas do Recorrente.

Defende este – conclusões 11ª a 16ª, 21ª, 22ª e 23ª - numa análise parcial e compartimentada, que as declarações do arguido e da testemunha, C..., deveriam ter sido credibilizadas em detrimento das declarações prestadas pelo assistente e pelo filho, porquanto o depoimento dos primeiros foi firme, convicto, e credível

O mesmo é dizer, que não aponta ao processo de formação da convicção do juiz, erros claros de julgamento – v.g violações de regras e princípios probatórios -  antes, discorda do resultado da avaliação que foi feita da prova  produzida.

Antes, pretende substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, credibilizando a testemunha descredibilizada e descredibilizando as  declarações credibilizadas.

Ora, o modo de valoração das provas e o juízo dessa mesma valoração, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e consequências que daí derivam, não traduz qualquer erro de julgamento.

Donde, está este tribunal impedido de apreciar a matéria inserta nas conclusões do Recorrente nºs 11 a 16º, 21ª, 22ª e 23ª.

A matéria que o Recorrente traz à colação nas conclusões 17ª a 20ª é, de todo, imperceptível, se tivermos em consideração que não se aponta na sentença recorrida qualquer contradição entre as declarações do arguido e da esposa.

Pelo contrário, nela se afirma que a testemunha C... confirmou as declarações do arguido (fls. 210).

Por outro lado, a acareação entre o assistente e as testemunhas, B... e C..., não teve como fundamento a contradição entre os depoimentos do arguido e da esposa, mas sim entre as declarações do assistente e do filho de um lado e de C... (fls. 131).

No que respeita às declarações do assistente, D..., os fundamentos invocados pelo Recorrente nas conclusões 24ª a 26ª, são  manifestamente insuficientes para se poder extrair qualquer erro de julgamento, tanto mais, que não se vislumbra qualquer contradição entre as declarações descritas em 25ª e 26ª.

Acresce que, a circunstância de B... estar a uma distância de 10 ou 15 metros (ou nem tanto, como se refere, na conclusão 27º), não descredibiliza, por si só, o depoimento desta testemunha, até porque, como ele refere, o arguido falava em voz alta e exaltado (cf. fls. 268).

Esta testemunha prestou declarações «de forma clara, segura, coerente e consistente, relatando os factos que presenciou, concretizando as circunstâncias de tempo e lugar da ocorrência dos factos perpetrados pelo arguido na pessoa do assistente, concretizando as expressões que aquele dirigiu a este, o modo como o fez, e a dinâmica dos factos».

Também, aqui, se evidencia a improcedência desta pretensão do Recorrente.

 Por último, diga-se que, os argumentos aduzidos pelo Recorrente nas conclusões 29ª a 31ª, são notoriamente exíguos para que possam abalar a convicção do julgador da primeira instância.

Na verdade, a circunstância do assistente ter esperado cerca de mês para apresentar queixa pelos factos ocorridos em 17 de Novembro, não constitui, por si só, qualquer presunção ou regra de experiência comum de que aquele não sentiu medo, receio, temor ou insegurança.

Bastaria pensar-se que foi precisamente o medo que o impediu de apresentar queixa mais cedo.

Em face do tudo o que se acaba de enunciar, podemos concluir que o Tribunal a quo - tal como consta no texto da sentença -  apreciou, global, conjugada e criticamente, todas as provas, não merecendo qualquer censura, revelando-se o recurso manifestamente improcedente.

V – DECISÃO

Por todo o exposto, acordam as juízes da Secção Criminal desta Relação em indeferir a Reclamação e julgar não provido o recurso interposto por A....

Custas pelo Reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 2 UCS, de acordo com a Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Coimbra, 8 de Outubro de 2014

 (Alcina da Costa Ribeiro - relatora)

(Cacilda Sena - adjunta)


[1] Diploma a que, de ora em diante, nos referiremos sem menção do contrário.
[2] Oliveira, Mendes (2014) Código de Processo Penal Comentado, pág. 1061.
[3] Em sentido contrário, cf. Acórdão desta Relação de 4 de Novembro de 2009, advogando que o «termo “adiamento” é utilizado em sentido amplo, compreendendo o adiamento em sentido técnico-jurídico e a interrupção
[4] José António Barreiros, in Manual de Processo Penal, edição da Universidade Lusíada, 1989, pág. 459.
[5] Ac. do STJ, de 11-01-2006, (doc. SJ200601110043013), relator Consº SORETO DE BARROS, citando, ainda, Ac. do STJ, de 06-11-96, in CJ, Ano IV, Tomo III, pág. 195.
[6] De 17.04.2013 (Relator: Pires da Graça), acessível www.dgsi.pt
[7] Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 68.
[8] Direito Processual Penal, Vol. I,  1974, páginas 233 a 234
[9] Figueiredo Dias, ob. citada, páginas 203 a 205.
[10] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 30.
[11] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 131.
[12] Acórdão proferido nesta Relação no processo nº 1063/10.GPAVR.C2, Relatora: Cacilda Sena.