Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1110/14.2TBFIG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
VALOR
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - INST. CENTRAL DE COIMBRA/ SEC. COMÉRCIO/J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 239º, Nº 3, B), I) DO CIRE
Sumário: I – Constituindo a exoneração do passivo restante um benefício para o devedor – na medida em que lhe permite desonerar-se do pagamento de algumas dívidas – que representa, simultaneamente e na mesma medida, um prejuízo para os credores, mas sem deixar de ter em conta que o sacrifício emergente da insolvência deverá ser suportado, antes de mais, pelo devedor, importará reduzir ao mínimo o prejuízo dos credores que é inerente à concessão daquele benefício, afectando ao pagamento dos créditos o máximo de rendimento que seja possível sem pôr em causa a sobrevivência condigna do devedor e respectivo agregado familiar.

II – Assim, o valor a excluir, ao abrigo do disposto no art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE, para efeitos de apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, deverá compreender apenas o valor indispensável para prover ao sustento, com o mínimo de dignidade, do devedor e respectivo agregado familiar, tendo em conta as suas características e as suas concretas necessidades, podendo e devendo ser imposto ao devedor que reduza as suas despesas até ao patamar do mínimo que seja indispensável à sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade e que suporte o sacrifício inerente a tal redução.

III – O valor da retribuição mínima mensal garantida – que foi fixado pelo legislador como sendo o mínimo a pagar pela remuneração do trabalho – corresponde, por regra, ao rendimento que, em termos de razoabilidade, é necessário para assegurar a sobrevivência, em condições mínimas de dignidade, de uma pessoa sem qualquer agregado e sem quaisquer necessidades específicas ou anormais que exijam a realização de despesas relevantes que ultrapassem aquelas que, normal e usualmente, são efectuadas por qualquer pessoa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., melhor identificada nos autos, veio requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, alegando, na parte que ora nos interessa, que: trabalha na Câmara Municipal (...) , auferindo a quantia ilíquida de 683,13€; tal valor comporta uma penhora de vencimento no valor de 183,65€, pelo que, à data da petição, apenas auferia a quantia de 481,62€, tendo vários processos de execução pendente a aguardar a penhora do vencimento; na sequência da venda judicial da casa de morada de família, reside presentemente em casa arrendada pela qual paga a renda de 300,00€ mensais; despende cerca de 75,00€ mensais com água, gás e electricidade; com alimentação e vestuário despende mensalmente 200,00€, gastando ainda mensalmente 40,00€ em despesas médicas e medicamentosas e necessitando, por isso, do valor de 615,00€ para prover ao seu sustento.

Tendo sido declarada a insolvência, veio posteriormente a ser proferida decisão que, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinou que ficaria excluído do rendimento disponível o valor equivalente ao salário mínimo nacional (485,00€) que se considerou razoável para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade.

Discordando dessa decisão, a Insolvente veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1º Entende a recorrente que o tribunal a quo, fez errada aplicação do direito, por isso não pode concordar com o despacho em apreço, nem com a fundamentação nele invocada.

2º O presente recurso cinge-se à matéria de direito, e tem o seu fundamento no erro da aplicação da norma constante no 239 nº 3 do CIRE.

3º A recorrente, no confronto com legítimos interesses dos credores, considera como mínimo necessário ao seu sustento digno a quantia de 645,00€.

4º Qualquer valor fixado abaixo do supra mencionado não respeitará a dignidade da pessoa humana protegida pela CRP, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

5º O tribunal a quo deveria ter interpretado a referida norma no sentido de fixar à recorrente, pelo menos, o rendimento disponível de 645,00€, por ser esta a quantia mínima indispensável ao seu sustento com dignidade, tendo em conta a sua situação frágil de saúde, e de acordo com o relatório devidamente apresentado e documentado pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência.

Nestes termos, conclui, deve ser dado provimento ao presente recurso, e ser o despacho proferido pelo tribunal a quo, na parte em que decidiu que “ que o rendimento disponível é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer titulo á devedora, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115 cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz e do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, cifrando-se o mesmo no montante equivalente ao salário mínimo nacional, e que, atualmente, ascende a 485,00€”,substituído por outro que, fazendo uma acertada aplicação do direito, fixe o rendimento disponível à recorrente em valor não inferior a 645,00€ mensais,

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber qual é o valor que, razoavelmente, é necessário para o sustento minimamente digno da devedora/Apelante e que, como tal, se deve considerar excluído do rendimento disponível em conformidade com o disposto no art. 239º, nº 3, b), i), do CIRE.


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III.

Na 1ª instância, foi fixada a seguinte matéria de facto:

1. A requerente apresentou-se à insolvência em 27 de Maio de 2014

2. Por sentença proferida em 28 de Maio 2014, foi decretada a insolvência da requerente.

3. A requerente é divorciada.

4. Trabalha na Câmara Municipal (...) , tendo a categoria profissional de assistente técnica, integrando o mapa e pessoal desde 2002.

5. Por mês aufere a quantia ilíquida de €808,11, incluindo salário base, subsídio de alimentação e duodécimo do subsídio de Natal.

6. É doente, tem tido diversos internamentos e padece da síndrome depressiva ou reactivo.

7. Em 26/03/2002, o ex-casal adquiriu um prédio para habitação própria permanente.

8. Em 2004, porém, o seu ex-marido, que trabalhava no sector da mediação imobiliária, começou a ter falta de trabalho, com a consequente quebra de rendimentos.

9. Durante o casamento recorreu a diversos créditos na perspectiva de, em conjunto com o seu ex-marido, melhorar a situação financeira e aumentar o fundo do património do casal.

10. Vive em casa arrendada pela qual despende mensalmente a quantia de €300,00.

11. Por mês gasta ainda €75,00 com a electricidade, água e gás.

12. Em despesas médicas e medicamentosas despende por mês €40,00.

13. De acordo com as reclamações de créditos deduzidas e os créditos reconhecidos, o montante total da dívida ascende a €200.735,23.

14. À data da apresentação à insolvência, encontravam-se pendentes contra a insolvente as seguintes acções executivas:

- Processo n.º 1790/07.5TBFIG – 1º juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz: exequente – (...) Instituição de crédito SA – no valor de 4644.68€;

- Processo n.º 1930/09.0TBFIG – 2º Juízo – Tribunal Judicial da Figueira da Foz: exequente - Banco Espirito Santo, SA – no valor de 14.056.34€;

- Processo n.º 16371/06.2YYLSB – 3º Juízo – 3ª Secção Geral de Execuções – Lisboa: exequente - Banco BPI, SA - com o valor que ascende a 3900.00€;

- Processo n.º 16769/06.6YYLSB – Juízos de execução – 3º juízo - 3º Secção - Secretaria Geral – Tribunal Judicial de Lisboa: exequente BMW Renting (Portugal), Lda. No valor de 4654.42€;

- Processo n.º 2041/05.2TBCBR – 2º Secção das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra: exequente Banco Santander Totta, S.A. - valor que ascende a 33.186.35€.

15. Não foram apreendidos bens para a massa insolvente.

16. A insolvente não tem condenações averbadas ao seu certificado do registo criminal.

17. Por força do incumprimento do crédito contraído junto do BES, teve este credor de constituir a provisão imposta pelo Banco de Portugal.


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IV.

Segundo dispõe o nº 2 do art. 239º do CIRE, o despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo “…determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.

De acordo com o disposto no nº 3 da mesma disposição legal, “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

(…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

(…)”.

Em cumprimento da norma citada, a decisão recorrida excluiu do rendimento disponível o valor equivalente ao salário mínimo nacional (que, à data, se encontrava fixado em 485,00€), considerando a Apelante que esse valor não é suficiente para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade e que, para o efeito, é necessário o valor de 645,00€.

Tal como se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.

Na concretização desse objectivo, entendeu o legislador que, para poder usufruir daquela exoneração, o devedor ficaria sujeito durante um determinado período – o período da cessão que corresponde aos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência –, a um conjunto de obrigações, entre as quais se incluem a de ceder o seu rendimento disponível com vista ao pagamento das despesas e, na medida do possível, ao pagamento dos credores. Mas, sem deixar de ponderar o interesse e princípio fundamental do ressarcimento dos credores (e por isso estabelecendo que, durante um determinado período, o devedor teria que ceder o seu rendimento disponível), o legislador não deixou de atender também ao princípio, igualmente fundamental, da sobrevivência condigna do devedor e respectivo agregado familiar e, conciliando esses interesses, determinou que o património do devedor ficaria afectado à satisfação daqueles créditos, com ressalva da quantia necessária ao sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado.

Atendendo ao disposto na norma em questão e atendendo ao espírito do legislador e aos objectivos que pretendeu atingir, afigura-se-nos claro que a quantia a reservar para o devedor – e, como tal, excluída do rendimento disponível – há-de ser determinada, casuisticamente, em função das necessidades concretas do devedor e respectivo agregado, de forma a que, sendo assegurada a sua sobrevivência condigna, todo o rendimento que não seja necessário para esse efeito possa reverter em benefício dos credores.

E tal como referimos noutras decisões – cfr. o Acórdão de 25/03/2014 proferido no processo nº 3248/13.4TBVIS-C.C1[1] – para o apuramento desse valor não relevam as concretas despesas que o devedor alega suportar, mas sim aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento – e do agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo – com o mínimo de dignidade, sem prejuízo de deverem ser consideradas as concretas despesas que, razoavelmente, se devam ter como indispensáveis para fazer face a quaisquer necessidades específicas do agregado familiar.

Com efeito, tal como escrevemos no citado acórdão, “…o que está aqui em causa não é assegurar ao devedor o padrão de vida que tinha antes da insolvência, mas apenas garantir que disponha da quantia necessária para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que, como é evidente, não seria admissível que o devedor – que incorreu em situação de insolvência – pudesse beneficiar da exoneração do passivo restante e, ao mesmo tempo, ver assegurado, à custa dos credores, o padrão de vida que tinha antes. A satisfação dos direitos dos credores por via do património do devedor apenas pode e deve ceder perante a necessidade de satisfação das necessidades básicas do devedor, não sendo legítimo pretender que os credores devam sofrer o prejuízo inerente à impossibilidade de satisfação dos créditos (por não ser possível utilizar, para esse efeito, uma larga fatia do rendimento do devedor), apenas para que o devedor pudesse continuar a usufruir de um determinado padrão de vida que tinha antes da insolvência (que até poderia ser muito elevado e que, eventualmente, até poderia corresponder a um padrão de vida muito acima das reais possibilidades do devedor)”.

No caso sub judice, não há qualquer indicação da existência de qualquer agregado familiar a cargo da Apelante e, portanto, importará apurar o rendimento necessário para prover ao sustento minimamente digno de uma pessoa.

Ora, parece que nada autoriza a afirmação de que o valor equivalente à retribuição mínima mensal garantida não seja suficiente para assegurar a sobrevivência condigna de uma única pessoa que não tenha quaisquer necessidades específicas e que imponham a realização de despesas que extravasam aquilo que é normal e usual. Com efeito, se foi esse o valor que o legislador fixou como sendo o mínimo a pagar pela remuneração do trabalho – para o que não terá deixado de ponderar aquilo que considera razoável para fazer face às necessidades básicas do trabalhador – será difícil admitir que esse valor não seja, à luz do actual quadro legal, suficiente para assegurar a sobrevivência condigna de uma pessoa.

E a verdade é que não resulta da matéria de facto que a Apelante tenha qualquer necessidade específica que importe a realização de despesas que extravasem aquilo que é normal e usual. Provou-se, de facto, que é doente, padecendo de síndrome depressivo ou reactivo, mas nada se provou que permita afirmar que tal situação clínica demande consultas ou tratamentos dispendiosos, sendo que a Apelante apenas gasta, em despesas médicas e medicamentosas, cerca de 40,00€ mensais.

É certo que, além desses 40,00€ mensais (que, de alguma forma, pode ser considerada uma despesa anormal), a Apelante suporta uma renda de casa no valor de 300,00€. Importa referir, no entanto, que a despesa com a renda de casa é uma despesa normal que, por regra, qualquer agregado tem que suportar e que não deixará de ter sido ponderada pelo legislador quando fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida. Assim sendo, cada pessoa ou agregado terá que procurar uma habitação cuja renda seja compatível com os seus rendimentos e, portanto, a Apelante pode e deve ponderar a possibilidade de procurar uma outra habitação cuja renda se inclua dentro dos valores que os seus rendimentos lhe permitam pagar. Admitimos, no entanto, que, no actual contexto sócio económico, possa não ser fácil encontrar outra casa por renda inferior; de qualquer forma, ainda que se considere essa despesa de 300,00€ como efectivamente necessária para garantir o seu direito à habitação, ainda lhe restam 205,00€ (já que a retribuição mínima mensal garantida foi, entretanto, aumentada para 505,00€ - cfr. Dec. Lei nº 144/2014, de 30/09).

É certo que tal valor é diminuto e não ignoramos as dificuldades e a contenção que serão necessárias para, com esse valor, fazer face às despesas necessárias ao sustento da Apelante (dificuldades que, aliás, são sentidas pelas inúmeras pessoas que apenas auferem o salário mínimo nacional e, por vezes, nem isso). Mas, a verdade é que a Apelante está em situação de insolvência e, portanto, não está em condições de poder usufruir de uma vida desafogada e sem preocupações de carácter económico; a Apelante pode e deve suportar alguns sacrifícios e privações, desde que ressalvada a sua subsistência com um mínimo de dignidade e, como tal, terá que reduzir os seus gastos até ao patamar do mínimo indispensável à sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade.

Refira-se que, segundo alega a própria Apelante, antes de ser decretada a sua insolvência, apenas recebia o valor de 481,62€, já que uma parte do seu vencimento estava penhorada, não se justificando, na nossa perspectiva, que após a declaração de insolvência, a Apelante deva beneficiar de uma situação mais desafogada.

E não se diga – como diz a Apelante – que a fixação de um valor inferior não respeita a dignidade da pessoa humana protegida pela CRP, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O valor equivalente ao salário mínimo nacional – actualmente fixado em 505,00€ – é, evidentemente, um valor reduzido; é um valor que exige muito esforço, sacrifício e contenção, mas que, ainda assim, permite assegurar a sobrevivência de uma única pessoa em condições mínimas de dignidade e que, como tal, respeita os princípios e normas constitucionais referentes a essa matéria.

Relembre-se que a exoneração do passivo restante implica sacrifício para os credores, importando estabelecer um equilíbrio entre esse sacrifício e aquele que pode e deve ser imposto ao devedor. O sacrifício emergente da insolvência deverá ser suportado, antes de mais, pelo próprio devedor, importando apenas ressalvar a sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade, sem que seja legítimo pretender manter, à custa e com o sacrifício dos credores, um determinado rendimento quando é certo que pode assegurar a sua sobrevivência com um rendimento inferior.

Ora, o valor equivalente à retribuição mínima mensal garantida é, em princípio e ressalvando situações excepcionais, suficiente para prover ao sustento digno de uma única pessoa (assim o entendeu o legislador ao fixar o valor dessa retribuição).

Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2010[2] – que é citado pela Apelante e com o qual afirma concordar – “…para encontrar os rendimentos com que os requerentes se hão-de governar cumpre partir do valor do salário mínimo nacional, que é o mínimo previsto por lei para viver ainda com dignidade, e acrescentar-lhe o que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada face às características do agregado em questão”. Considera-se, portanto, nesse acórdão – tal como nós consideramos – que o valor correspondente ao salário mínimo nacional é, em regra, o valor que o Estado (o legislador) entende ser o mínimo necessário para a sobrevivência digna do trabalhador e, como tal, o valor a excluir do rendimento disponível, em caso de exoneração do passivo, deverá tendencialmente corresponder a esse valor, embora lhe deva ser acrescentado aquilo que for necessário para que tal dignidade não seja quebrada face às características e necessidades específicas do agregado familiar em questão.

Sucede que, no caso sub judice, não existem quaisquer necessidades específicas que ultrapassem aquilo que é normal em qualquer agregado familiar – a Apelante tem que se alimentar, vestir e calçar, como qualquer outra pessoa; a Apelante tem que pagar renda de casa, como qualquer outra pessoa, por regra, terá que pagar; a Apelante tem que pagar água, luz e gás, como qualquer outra pessoa e tem algumas despesas médicas e medicamentosas em valor que também não ultrapassa, de forma relevante, as despesas que, a esse nível, são efectuadas em qualquer agregado – e, como tal, não se justifica que lhe seja concedido um valor superior ao da retribuição mínima mensal garantida.  

E, como bem se refere na decisão recorrida, conceder à Apelante um valor superior a esse “…significaria desequilibrar o balanceamento que aqui é preciso fazer entre as necessidades do insolvente e os direitos dos credores em verem satisfeitos, na medida do possível, os seus créditos, impondo-se ainda à insolvente que, em face da sua nova condição, reajuste algumas despesas que possui, nomeadamente com a habitação (vivendo sozinha certamente poderá arrendar uma casa por um valor inferior que não absorva parte significativa dos seus rendimentos mensais)”.

Assim, porque a Apelante não tem qualquer pessoa a seu cargo e porque não emerge da matéria de facto que tenha qualquer necessidade específica ou anormal que demande a necessidade de efectuar despesas relevantes e que ultrapassem aquilo que é normal e usual em qualquer agregado familiar, entendemos – como entendeu a decisão recorrida – que o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida é suficiente para assegurar o sustento minimamente digno da Apelante.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Constituindo a exoneração do passivo restante um benefício para o devedor – na medida em que lhe permite desonerar-se do pagamento de algumas dívidas – que representa, simultaneamente e na mesma medida, um prejuízo para os credores, mas sem deixar de ter em conta que o sacrifício emergente da insolvência deverá ser suportado, antes de mais, pelo devedor, importará reduzir ao mínimo o prejuízo dos credores que é inerente à concessão daquele benefício, afectando ao pagamento dos créditos o máximo de rendimento que seja possível sem pôr em causa a sobrevivência condigna do devedor e respectivo agregado familiar.

II – Assim, o valor a excluir, ao abrigo do disposto no art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE, para efeitos de apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, deverá compreender apenas o valor indispensável para prover ao sustento, com o mínimo de dignidade, do devedor e respectivo agregado familiar, tendo em conta as suas características e as suas concretas necessidades, podendo e devendo ser imposto ao devedor que reduza as suas despesas até ao patamar do mínimo que seja indispensável à sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade e que suporte o sacrifício inerente a tal redução.

 III – O valor da retribuição mínima mensal garantida – que foi fixado pelo legislador como sendo o mínimo a pagar pela remuneração do trabalho – corresponde, por regra, ao rendimento que, em termos de razoabilidade, é necessário para assegurar a sobrevivência, em condições mínimas de dignidade, de uma pessoa sem qualquer agregado e sem quaisquer necessidades específicas ou anormais que exijam a realização de despesas relevantes que ultrapassem aquelas que, normal e usualmente, são efectuadas por qualquer pessoa.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Proferido no processo nº 1826/09.5T2AVR-C.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.