Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4931/18.3T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INJUNÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
TAXA DE JURO
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 21º, Nº 2, E 13º, D) DO DEC. LEI Nº 269/98, DE 01/09; DL Nº 32/2003, DE 17/02; ARTº 102º C. COMERCIAL
Sumário: I – O DL 32/2003 de 17/2, ao alterar o art 102º C. Com., não quis tocar no âmbito subjectivo da aplicabilidade deste preceito. Este continuou a ser aquele que resulta do C. Com. e, por isso, tal norma – com as alterações decorrentes desse mesmo DL - continua a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, como o são os que se estabelecem entre empresas e consumidores.

II - Nos actos de comércio unilaterais estabelecidos com consumidores, quando este resulte condenado, são devidos juros comerciais e não civis, na medida em que o DL 32/2003 – hoje substituído pelo DL 62/2013, de 10/5, que revogou aquele, excepto os seus arts 6º e 8º, mantendo-o ainda em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor - não teve como objectivo com a alteração a que procedeu no art 102º do C. Com. alterar o âmbito subjectivo de aplicação desta norma.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Nos autos de execução sumária que M..., SA move a P..., foi proferido o seguinte despacho:

«A exequente instaurou a presente acção executiva, com fundamento em injunção à qual foi aposta fórmula executória (não se trata de obrigação emergente de transacção comercial).

               Na parte da “Liquidação da Obrigação” do seu requerimento executivo, a exequente faz acrescer também ao seu pedido a condenação do executado no pagamento dos juros, à taxa legal comercial, sobre o capital de € 2.170,78, desde a data da instauração do requerimento injuntivo, ou seja, desde 23 de Outubro de 2017.

 Cumpre apreciar e decidir.

Quanto aos JUROS: o pedido a formular em requerimento de injunção, de acordo com o artigo 10º/ 2 al e) do Dec. Lei nº 269/98, de 1/09, poderá incluir o valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas. E o artigo 21º/ 2, do aludido Dec. Lei nº 269/98 de 01/09, dispõe que a execução fundada em injunção tem como limites as importâncias a que se refere a alínea d) do artigo 13º. O citado artigo 13º - preceituando sobre o conteúdo da notificação a efectuar ao requerido no procedimento de injunção – determina, na alínea d) do nº 1, que ela deve conter “A indicação de que, na falta de pagamento da quantia pedida e da taxa de justiça paga pelo requerente, são ainda devidos juros de mora desde a data da apresentação do requerimento e juros à taxa de 5% ao ano a contar da data da aposição da fórmula executória”.

 De acordo com o consignado no acórdão do T. R. Évora de 14/04/20101, o legislador terá pretendido que a obtenção de um título executivo de forma célere e  simplificada exigia que os quantitativos se tivessem, à partida, como líquidos e que, nessa medida, o requerente não pode peticionar juros vincendos. Neste sentido, Salvador da Costa, in “A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª edição, Actualizada e Ampliada” – 2005, pags. 191 e 192.

Assim, seguindo de perto o que defende o acórdão do T. R. Coimbra, de 11-10- 2017:

“I – Em face do disposto nos artigos 21º, nº 2, e 13º, d) do Dec. Lei nº 269/98, de 01/09, a execução baseada em requerimento de injunção apenas poderá abranger os valores que expressamente foram peticionados no requerimento de injunção, os juros de mora a partir da data da apresentação do requerimento e juros à taxa de 5% a contar da data da aposição da fórmula executória.

 II – Os referidos juros de mora desde a data da apresentação do requerimento – que se consideram abrangidos nos limites da execução baseada em requerimento de injunção – são os juros calculados à taxa legal e não os juros (sejam eles superiores ou inferiores) previstos no acto ou contrato que era invocado como causa de pedir da injunção.”.

Em conclusão, tendo presente que a exequente assinalou que a obrigação NÃO é emergente de transacção comercial, a execução baseada em requerimento de injunção com força executiva apenas poderá abranger os juros de mora à taxa legal de 4% ao ano a partir da data da apresentação do requerimento e juros à taxa de 5% a contar da data da aposição da fórmula executória.

Ou seja, os juros de mora, a contabilizar desde 23-10-2017 (data em que foi instaurado o requerimento injuntivo), sobre o capital de € 2.170,78, são os juros legais de 4% ao ano, o que ora se determina.

Toda a acção executiva tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva – cfr. Artº. 10, nº. 5, do Novo Código de Processo Civil.

Ao abrigo do disposto no artº 726, nº. 3, do Novo Código de Processo Civil, o juiz pode indeferir parcialmente o requerimento quanto à parte do pedido que exceder os limites constantes do título executivo, o que ainda se mostra possível de acordo com a norma do artº. 734, do CPC.

Em face do exposto, e nos termos do cit. artº. 726, nº. 3, indefiro parcialmente o requerimento executivo na parte em que peticiona – pedido de juros desde 23-10- 2017 à taxa legal comercial – o pagamento, com base em injunção com fórmula executória, de juros à taxa legal comercial, uma vez que foi assinalado pela exequente não se tratar de obrigação emergente de transacção comercial, devendo apenas ser cobrados os juros moratórios desde 23-10-2017 (data em que foi instaurado o requerimento injuntivo), sobre o capital de € 2.170,78 euros, até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano.

 Custas do incidente, que fixo em 1 UC e meia, a cargo da exequente – artigo 527.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, e artigo 7.º, nº. 4, e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique»

II – É desse despacho que a exequente apela, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:

1. Entendeu o douto Tribunal a quo indeferir parcial e liminarmente o requerimento executivo “tendo presente que a exequente assinalou que a obrigação NÃO é emergente de transacção comercial, a execução baseada em requerimento de injunção com força executiva apenas poderá abranger os juros de mora à taxa legal de 4% ao ano 9/12 a partir da data da apresentação do requerimento e juros à taxa de 5% a contar da data da aposição da fórmula executória. Condenando a Exequente nas custas pelo incidente, no montante de 1,5 UC.

2. Postula o artigo 7º do Decreto-lei 269/98, de 1 de Setembro (na redacção actual) que “Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.”

3. Os Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, assim como o Decreto-Lei 62/2013, de 10 de Maio (que revogou o anterior – vide artigo 13º), nos artigos 2º e 3º, excluem do seu âmbito de aplicação os contratos celebrados com os consumidores, e define transacção comercial como uma transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração.

4. O requerido (ora Executado) é uma pessoa singular, com a qual a requerente (ora Exequente) celebrou um contrato de prestação de serviços de telecomunicações, não sendo, por isso, nos termos das disposições dos diplomas vindos a mencionar, transacção comercial.

5. Termos em que, assinalou correctamente a ora Exequente, em sede de procedimento de injunção: Obrigação emergente de transacção comercial? NÃO, sendo que outra opção não lhe era permitida por lei.

6. Não obstante a obrigação objecto dos presentes autos não emergir de transacção comercial, encontra-se o cumprimento da referida obrigação sujeito à aplicação de taxa de juro de mora comercial (vide arestos do STJ de 04.06.2013, relator João Camilo e Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.10.2010, relator José Eusébio Almeida, disponíveis em www.dgsi.pt).

7. O Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, alterou a redacção do art. 102º do Cód. Comercial, mas deixou intocado o art. 99º do mesmo diploma legal onde se prevê que os actos comerciais que o sejam apenas em relação a uma das partes serão regulados pela lei comercial quanto a todos os contraentes.

8. Na falta de alteração do disposto no referido art. 99º, tem de se entender que o regime previsto no decreto-lei nº 32/2003 não é aplicável aos consumidores, mas o disposto no art. 102º do Cód. Comercial na nova redacção dada pelo mesmo diploma legal, que se aplica a todos os actos comerciais previstos em geral na lei comercial, em que se incluem as transacções em que uma das partes seja um consumidor.

9. Em face da redacção deficiente do texto do decreto-lei nº 32/2003, no aspecto de não mexer na redacção do art. 99º referido e dizer que o regime do mesmo se não aplica aos consumidores, a finalidade do legislador que justificou o referido diploma legal atrás exposta levaria a fazer uma interpretação restritiva daquele art. 2º, nº 2 al. a) no sentido de que o art. 102º mencionado continua a aplicar-se em geral aos actos comerciais e mesmo àqueles em que uma das partes reveste a natureza de consumidor.

10. Assim, o regime legal deste decreto-lei é aplicável às transacções comerciais elencadas nos seus arts. 2º e 3º, em que se não compreende as transacções celebradas com consumidores, mas a alteração do art. 102º do Cód. Comercial, também levada a cabo naquele decreto-lei, porém, aplica-se a todas as transacções comerciais, pois este art. 102º é aplicável a essa generalidade de transacções e não apenas às transacções previstas no referido decreto-lei.

11. Não adoptar esta interpretação, salvo o respeito devido a opiniões em contrário, implica violar a regra do art. 9º, nº 3 do Cód. Civil.

12. Além disso, aponta no mesmo sentido a razão de ser da existência de uma taxa de juros de mora especial para as actividades comerciais que consiste numa protecção do comerciante credor, mas nada tem a ver com a protecção do consumidor que entrando em mora, se vê na situação de qualquer devedor de actos comerciais, nos termos do art. 99º referido. O decreto-lei em apreço não visou proteger os consumidores, mas tão somente proteger os comerciantes em determinadas transacções comerciais - que se não estabelecem com consumidores -, mas sem ter qualquer intenção de adoptar meios proteccionistas dos consumidores inexistentes no regime legal anterior.

13. Também, a pequena diferença entre os juros comerciais e os juros civis aponta para a mesma interpretação.

14. Mas de qualquer modo, repete-se, não consta do relatório do citado decreto-lei nº 32/2003 ou da Directiva que aquele visou transpor para o nosso ordenamento jurídico, qualquer intenção de proteger os consumidores, mas tão somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais a que os consumidores são estranhos. Por via disso,

15. A douta decisão, violou, entre outros comandos que, V. Exas. Doutamente suprirão, os previstos nos artigos 7º do Decreto Lei 269/98, de 1 de Setembro, artigos 2º e 30º dos Decretos Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro e Decreto-Lei 62/2013, de 10 de Maio, art 13º Decreto-Lei 62/2013 de 10 de Maio, artigos 99º e 102º do Código Comercial, e artigo 9º, nº 3 do Código Civil, entre outros.

16. Revogando-se a douta decisão e admitindo-se liminarmente o requerimento executivo apresentado, inclusive na parte em que é peticionado o pagamento de juros de mora, à taxa legal para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, isto é à taxa comercial, absolvendo-se a Recorrente do pagamento das custas em que foi condenada, farão V. Exas., Srs. Desembargadores a costumada Justiça.

Citado o executado para os termos do recurso, bem como para os termos da causa, não apresentou contra-alegações.

III - São os seguintes os factos processuais a ter em consideração para a decisão do recurso:
1- Consta do Requerimento executivo, com interesse para o recurso:

Valor da execução - 2.338,37 €

Finalidade da execução – pagamento de quantia certa – dívida civil (execuções);

Título executivo – Injunção

Factos: No âmbito de um contrato de prestação de serviços de comunicações celebrado entre as partes, e, ainda de contrato de venda de equipamento a prestações, a Exequente apresentou ao Executado, para pagamento, as facturas descritas no título executivo acima identificado. Perante o não pagamento das aludidas facturas, a Exequente apresentou requerimento injuntivo junto do balcão nacional de injunções no Porto, o qual notificou legalmente o executado. Uma vez que este não efectuou o pagamento, nem apresentou oposição ao requerimento injuntivo, foi aposta fórmula executória nos termos do art 14º do dl 269-98 de 1-9, com a red dada pelo dl 107-2005 de 1-7 e do art 46º al d do CPC. Apesar do ora executado ter sido interpelado ao pagamento da quantia indicada no título executivo, o valor encontra-se á presente data, totalmente por regularizar, valor ao qual acrescem os juros de mora legais vencidos  desde a data da entrada da injunção e vincendos até efectivo e integral pagamento. Acresce também o valor da taxa de justiça já despendida pela ora Exequente.

Valor líquido – 2.338,37 €;

Valor dependente de simples cálculo aritmético  - 0,00 € ;

               Valor não dependente de simples cálculo aritmético – 0,00 €

O valor líquido corresponde ao valor da injunção, incluindo o capital, juros vencidos à data da apresentação da injunção e ao valor da taxa de justiça. Ao valor líquido acresce, por simples cálculo aritmético, o valor dos juros moratórios vencidos  desde a data da apresentação da injunção ate à presente data, nos termos indicados. A estes valores acrescem os juros moratórios vincendos e os fundados na al d) do art 13º do dl 269/98 de 1/9 à taxa de 5% ao ano desde a data em que foi conferida força executiva ao requerimento de injunção, até integral pagamento.

2 – Do requerimento de injunção dado como título executivo consta com interesse para a decisão do recurso:

Data de entrega - 23/10/2017

Obrigação emergente de transacção comercial (DL 32/2003 de 17/2)?- Não

Apresentar à distribuição no caso de frustração de notificação do requerido ? – Não

Os requerentes solicitam que sejam notificados os requeridos, no sentido de lhes ser paga a quantia de € 2.338,37 conforme discriminação e pela causa a seguir indicada.

Capital: € 2.170,78;

Juros de mora - € 91,09, à taxa de 7,00%, desde 18-8-2017 até à presente data;

Outras quantias - € 0,00;

Taxa de justiça paga - € 76,50;

Contrato: Fornecimento de bens ou serviços;

Data do contrato – 17/01/2012;

Período a que se refere –

Exposição dos factos que fundamentam a pretensão – A Requerente tem por objecto social a prestação de serviços de comunicações electrónicas e ou moveis (…) No exercício da sua actividade celebrou com o requerido um contrato de prestação de serviços de telecomunicações e outro de venda de equipamento a prestações, sem reserva de propriedade, (…). No âmbito do contrato de prestação de serviços e nas condições nele estabelecidas, o requerente obrigou-se a prestar os serviços acordados, de acordo com os tarifários escolhidos pelo requerido. Este por seu turno, obrigou-se pelo período de tempo acordado e identificado no contrato e efectuar o pagamento tempestivo do respectivo preço. Tendo sido acordado a vinculação das partes ao contrato por determinado tempo e verificando-se o incumprimento definitivo das obrigações contratuais por parte do requerido, a requerente teria direito a ser ressarcida pelo valor correspondente às vantagens e ofertas concedidas na data da celebração do contrato e que estão reflectidas no tarifário em vigor - valor da instalação e activação do serviço, equipamento e prestação mensal.

Ainda, no exercício da sua actividade, a pedido e solicitação do requerido, foi celebrado um contrato de compra e venda de equipamento a prestações  sem reserva de propriedade  através do qual aquele adquiriu o equipamento que lhe foi entregue; na factura então emitida está identificado o equipamento, bem como definidas as condições de pagamento acordadas, ou seja o nº das prestações, factura que foi emitida e entregue ao requerido e é do seu conhecimento. Ficou ainda estabelecido que na falta de pagamento atempado de qualquer uma das prestações mensais perdia o requerido o benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, conferindo-se à requerente o direito de exigir  de imediato o pagamento integral  de todas as prestações mensais em falta. Sendo que a falta de pagamento de uma das prestações em falta sempre implicaria o vencimento do total das prestações, por força do disposto no art 781º CC. Nos termos fixados nas condições contratuais estabelecidas entre as partes o valor das prestações correspondentes a aquisição de equipamento foi processado e mensalmente discriminado na factura relativa a conta da prestação de serviço de telecomunicações electrónicas contratada com a Requerente; Facturas que foram enviadas para o endereço por este indicado para o efeito - não tendo sido registada evidencia de correspondência devolvida e ou reclamada todas as facturas emitidas reflectem mensalidades, planos de preços, alugueres de equipamento, comunicações efectuadas, preço de equipamento com prestações pré-acordadas. Sucede que o requerido não pagou os valores devidos pelas prestações de serviços nem as prestações mensais que se foram vencendo relativas a aquisição de equipamento, montantes titulados e melhor identificados nas facturas infra discriminadas, nas datas dos respectivos vencimentos, não obstante ter sido interpelada varias vezes para o efeito. Assim quebrando os vínculos contratuais, facto que determinou a conversão da mora em incumprimento definitivo – arts 798º, 801º, 805º, 808º CC e em consequência originou a emissão de factura com os valores devidos pela cessação antecipada do contrato, por motivo imputável ao requerido, tendo ainda o incumprimento do plano prestacional referente a venda do equipamento a prestações determinado o vencimento integral das prestações vincendas.

Mantendo-se as facturas em dívida tem a requerente direito a indemnização correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa comercial em vigor, desde o seu vencimento até efectivo e integral pagamento, cuja liquidação ora se reclama  (…)». 

IV – Do confronto entre a decisão recorrida e as conclusões das alegações, há que decidir no presente recurso se na execução que tenha como título executivo injunção a que tenha sido aposta a fórmula executória e em que o seu requerente tenha excluído estar em causa obrigação emergente de transacção comercial, os juros de mora a que se reporta a al. d) do nº 1 do art 13º do DL 269/98, de 1/9, estando em causa  um acto unilateralmente comercial estabelecido com um consumidor, não são calculados em função da taxa aplicável aos créditos comerciais decorrente do art 102º do C. Com, mas à taxa de juros civis.

Pese embora não se desconheça a existência de decisões jurisprudenciais e doutrina no sentido defendido pelo despacho recorrido[1], como, aliás, disso dá noticia a apelante nas alegações de recurso, entende este tribunal que nos actos de comércio unilaterais estabelecidos com consumidores, quando este resulte condenado, são devidos juros comerciais e não civis, na medida em que o DL 32/2003 – hoje substituído pelo DL 62/2013 de 10/5, que revogou aquele, excepto os seus arts 6º e 8º, mantendo-o ainda em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor - não teve como objectivo com a alteração a que procedeu no art 102º do C Com alterar o âmbito subjectivo de aplicação desta norma[2].

Para assim se concluir dever-se-á atender em primeira linha às finalidades  pretendidas pelo legislador com o referido DL 32/2003, tais como as mesmas resultam do respectivo preâmbulo que na parte que releva para a questão em apreço, aqui se reproduz:

«Actualmente recaem sobre as empresas, particularmente as de pequena e média dimensão, encargos administrativos e financeiros em resultado de atrasos de pagamento e prazos excessivamente longos. Estes problemas são uma das principais causas de insolvência dessas empresas, ameaçando a sua sobrevivência e os postos de trabalho correspondentes.

A Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, veio estabelecer medidas de luta contra os atrasos de pagamento em transacções comerciais. Esta directiva regulamenta todas as transacções comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre pessoas colectivas privadas - a estas se equiparando os profissionais liberais - ou públicas, ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que estas últimas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas. Por conseguinte, regulamenta todas as transacções comerciais entre os principais adjudicantes e os seus fornecedores e subcontratantes.

Não se aplica, porém, às transacções com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguro.

O presente diploma visa transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/35/CE, não procedendo, contudo, à transposição de todas as disposições da directiva, pois muitas das suas soluções encontram-se já consagradas na legislação portuguesa, nomeadamente no Código Civil.

Nestes termos, estabelece-se um valor mínimo para a taxa de juros legais de mora, por forma a evitar que eventuais baixas tornem financeiramente atraente o incumprimento. Uma vez que os juros comerciais previstos na legislação portuguesa não se aplicam actualmente a todas as situações cobertas pelo âmbito da directiva, e para evitar a duplicação de regimes, opta-se por sujeitar todas estas transacções ao regime comercial, prevendo-se o referido limite mínimo de taxa de juro legal de mora no Código Comercial».

Para a obtenção destes objectivos o DL 32/2003 serviu-se essencialmente das já existentes injunções, procedendo, para o efeito, à alteração dos arts artigos 7º, 10º, 11º, 12º, 12º-A e 19º do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, em que avulta, à cabeça, para o que aqui releva, a alteração ao referido art 7º, que passou a estabelecer: «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro».

 Ao mesmo tempo alterou a al g) do art 10º daquele diploma, estabelecendo que no requerimento (de injunção) deve o requerente «indicar, quando for o caso, que se trata de transacção comercial abrangida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro», estabelecendo, correspondentemente, no art 11º do mesmo diploma, que o requerimento pode ser recusado se «o valor ultrapassar a alçada da 1.ª instância, sem que dele conste a indicação prevista na alínea g) do artigo anterior». Além de que, no respectivo art 7º/1 estabeleceu que o atraso de pagamento nas transacções comerciais, nos termos previstos no diploma em causa, confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

O âmbito objectivo de aplicação deste DL 32/2003 foi claramente explicitado no seu art 2º/1, ao referir que, «O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais», concretizando e definindo, após, o seu art 3º, o que se deve entender por transacções comerciais para efeitos da respectiva aplicação: «Para efeitos do presente diploma, entende-se por: a) «Transacção comercial» qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração; e por b) «Empresa» qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular»

Atenta a noção de transacções comerciais a que se quis aplicável, logo se vê que quis restringir a sua aplicação a actos comerciais que o sejam bilateralmente, deixando de fora os actos comerciais unilaterais a que se reporta o art 99º CCom – preceito este que não alterou - e que refere: «Embora o acto seja mercantil só em relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contraentes, salvas as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é comercial»

Não quis o legislador deste diploma deixar dúvidas relativamente nem ao seu campo de aplicação objectivo nem ao seu campo de aplicação subjectivo, e, por isso, pese embora já excluídos os contratos celebrados com consumidores  em função  do próprio conceito que utilizou para a definição das transacções comerciais a que se quis aplicável, disse-o expressamente na al a) do nº 2 do seu art 2º (que tem por epígrafe, “âmbito de aplicação”).

Assim, porque dúvidas não existirão de que nas relações jurídicas subjacentes à injunção que se estabeleceram entre a aqui apelante/M... e P..., referentes a um contrato de prestação de serviços de telecomunicações e outro de venda de equipamento a prestações, este, P..., se comporta como consumidor  - veja-se o art 2º da L 24/96, de 31/7, segundo a qual «considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caracter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios»  - bem andou a Requerente, aqui apelante, quando no requerimento de injunção negou que estivesse em causa uma “Obrigação emergente de transacção comercial (DL 32/2003 de 17/2)?” .



Retornando à questão objecto do recurso, há que saber se, atentos os objectivos do DL 32/2003, tal como resultam aflorados na parte transcrita do respectivo preâmbulo, fará sentido concluir, como o fez o despacho recorrido, que o legislador tenha querido com a exclusão da sua aplicação aos contratos celebrados com consumidores (cfr referido art 2º/2 al a)), que ficasse igualmente excluída a aplicação a esses contratos do disposto no art 102º C. Com., a cuja alteração procedeu.

O objecto do diploma em apreço foi, como resulta do seu art 1º, transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, a qual estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais.

Como o salienta Salvador da Costa [3] «esta Directiva foi essencialmente motivada, por um lado,  pelo facto de recaírem sobre as empresas, particularmente as de pequena e média dimensão, pesado encargos administrativos e financeiros em resultado de prazo de pagamento excessivamente longos e de atrasos de pagamento, e que de que isso constituía a principal causa de insolvência, ameaçando a sua sobrevivência e a perda de numerosos postos de trabalho. E por outro, pelo facto de os atrasos de pagamento constituírem incumprimento dos contratos, financeiramente atraente para os devedores, devido às baixas taxas de juro aplicáveis e à lentidão dos processos de indemnização».

 Tendo sido por isso que o diploma em apreço definiu com rigor a verificação “automática” da mora, no seu art 4º/2 [4], e como resulta do respectivo preâmbulo, estabeleceu «um valor mínimo para a taxa de juros legais de mora, por forma a evitar que eventuais baixas tornem financeiramente atraente o incumprimento». E, «uma vez que os juros comerciais previstos na legislação portuguesa não se aplicam actualmente a todas as situações cobertas pelo âmbito da directiva, e para evitar a duplicação de regimes, optou por sujeitar todas estas transacções ao regime comercial, prevendo-se o referido limite mínimo de taxa de juro legal de mora no Código Comercial».

O objectivo foi, pois, o de estabelecer uma melhor taxa de juros moratórios  para todas as transacções sujeitas ao regime comercial – e não apenas às que correspondessem às transacções comerciais tal como as definiu - para, desse modo, desencorajar os incumprimentos, e, por essa via, bem como com a da rapidez ínsita ao procedimento da injunção, proteger as empresas credoras.



Ora, se foi claramente este o propósito que se quis alcançar com a alteração da redacção do art 112º C Com. (em que, aqui, avulta a dos respectivos parágrafos 3 e 4, que se reportam aos juros moratórios [5]), não faria sentido a interpretação desta alteração nos termos em que o faz o despacho recorrido,  pois, o que se dava  com uma mão – desincentivar a mora dos devedores através das melhores taxas de juros – retirar-se-ia com a outra, já que aquele incentivo deixava de existir relativamente às mesmas empresas, bastando que se relacionassem comercialmente com consumidores, restringindo-as, nestas circunstâncias, à cobrança de meros  juros civis.

Uma interpretação congruente do DL 32/2003 no ponto em causa, implica que  se tenha presente que o seu objectivo é o de proteger as empresas e não o consumidor.

  Como se argumenta no Ac RC 19/10/2010 [6], a protecção do consumidor não se alcança com taxas de juros especialmente favoráveis, referindo-se em concreto: «Em nenhum diploma de defesa do consumidor se disciplina a questão dos juros moratórios: por definição, eles traduzem uma sanção (ou compensação ao credor) pela falta de cumprimento tempestivo. A defesa do consumidor tem cabal entendimento quando se refere a matérias como os deveres pré-contratuais, a formação do contrato, o conteúdo do contrato e os seus efeitos ou vicissitudes, como a responsabilidade do produtor ou o direito ao arrependimento. Porém a mora é “um atraso ilicitamente provocado pelo devedor”, é “uma violação voluntária de certa norma jurídica”, onde, salvo o devido respeito, mal se entenderá um regime de protecção». Acrescentando-se: «A razão de ser da existência de juros de moratórios comerciais nada tem a ver com o devedor, mas tem tudo a ver com o credor: seja o devedor consumidor ou não seja, a razão continua a ser a mesma, ou seja, num caso e noutro (mas já não quando, por exemplo, se trate de actos não comerciais praticados por comerciantes) radica na necessidade de “compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas o dinheiro tem um custo mais elevado do que geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua actividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo que recorrer ao crédito bancário. Em suma, e salvo melhor entendimento, a obrigação de pagamento de juros comerciais respeita a todos os actos comerciais e continua a ser independente da natureza da pessoa do obrigado».

Nesta lógica, o AC STJ 4/6/2013 [7] salienta que «o decreto lei em apreço não teve qualquer intenção de proteger os consumidores, mas tão somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais a que os consumidores são estranhos». Por isso se deve entender que «o DL 32/2003 não é aplicável aos consumidores, mas o disposto no art 102º do C. Com. na nova redacção dada pelo mesmo diploma legal se aplica a todos os actos comerciais previstos em geral na lei comercial, em que se incluem as transacções em que uma das partes seja um consumidor», e se deve concluir, como se concluiu nessa decisão: «O regime legal deste decreto lei é aplicável às transacções comerciais elencadas nos seus arts 2º e 3º, em que não se compreendem as transacções comerciais celebradas com consumidores, mas a alteração do art 102º CCom, também levada a cabo naquele decreto lei, porém, aplica-se a todas as transacções comerciais, pois este art 102º é aplicável a essa generalidade de transacções e não apenas às transacções previstas no referido decreto lei». 

Por outras palavras – o DL 32/2003, de 17/2, ao alterar o art 102º C. Com., não quis tocar no âmbito subjectivo da aplicabilidade deste preceito. Este continuou a ser aquele que resulta do C. Com. e, por isso, tal norma – com as alterações decorrentes desse mesmo DL - continua a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, como o são os que se estabelecem entre empresas e consumidores.

Entende-se, pois, que não assiste razão ao despacho recorrido que, por isso,  deve ser revogado, fazendo-se prosseguir a execução nos termos requeridos pelo exequente/apelante – incidindo juros, à taxa legal comercial, sobre o capital de € 2.170,78, desde a data da instauração do requerimento injuntivo, 23 de Outubro de 2017.

Em conclusão:

O DL 32/2003, de 17/2, ao alterar o art 102º C. Com., não quis tocar no âmbito subjectivo da aplicabilidade deste preceito. Este continuou a ser aquele que resulta do C. Com. e, por isso, tal norma – com as alterações decorrentes desse mesmo DL - continua a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, como o são os que se estabelecem entre empresas e consumidores.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, devendo a execução prosseguir nos termos requeridos pelo exequente.

Sem custas

Coimbra, 12 de Fevereiro de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)


[1]- Ac R P 6/10/2008 (Marques Pereira), Ac R P 16/12/2009 (Ana Lucinda Cabral); Ac R C 19/2/2006 (Virgílio Mateus) embora a questão surja aqui em termos laterais.
Ana Isabel da Costa Afonso, «A obrigação de juros comerciais depois das alterações introduzidas pelo DL nº 32/2003 de 17/2» em Separata da Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas “ nº 12, 2007, p 173 e ss, onde a p 196 refere : «Com efeito, se a transacção entre uma empresa comercial e um consumidor caía no domínio de aplicação do regime especial da lei comercial, fica hoje excluída daquele em virtude do disposto no art. 2, n.º 1 al. a) do Decreto-lei n.º 32/2003, e da intencionalidade que lhe está subjacente-_ a protecção do consumidor, tratado como parte mais fraca do contrato. A obrigação de pagamento do consumidor ao comerciante é remetida para o regime geral da lei civil, devendo o consumidor apenas pagar os juros de mora decorrentes do art. 559, CC, actualmente fixados em 4% pela Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril. Parece-nos, efectivamente, ser esta a intenção da Directiva consagrada pelo nosso diploma no art. 2, n.º 2 al. a)». 
José Engrácia Antunes, «O Regime…» págs. 265/266, onde refere: «A existir, a única particularidade que parece resultar da remissão legal reveste carácter indirecto, prendendo-se com a questão da articulação entre os âmbitos de aplicação do regime geral do CCom e o regime especial da LAP: com efeito, em face do elenco de exclusões previsto no artigo 2.º, n.º2 da LAP, é duvidoso se o regime juscomercial geral será aplicável aos juros moratórios relativos às obrigações pecuniárias emergentes de contratos celebrados entre comerciantes e consumidores» 
[2]- Neste sentido encontraram-se os Ac R C 6/7/2010 (Carlos Gil), e de 19/10/2010 (José Eusébio Almeida), o Ac R L 8/5/2012 (Pedro Brighton), Ac RL 21/6/2012 (Mª José Mouro, em que a aqui relatora interveio como 1ª Adjunta),  Ac R L  29/11/2012 (Aguiar Pereira), e o Ac STJ 4/6/2013 (João Camilo)
[3]- «A Injunção e as Conexas Acção e Execução» , 5ª ed , p 154 
[4]- A expressão é do Ac R C de 19/2/2006, acima referido
[5]- Os parágrafos 1 e 2 reportam-se aos juros remuneratórios, cfr Salvador da Costa, obra e lugares citados
Os parágrafos 3 e 4 têm o seguinte conteúdo respectivamente: «§ 3.º Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça; § 4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1.º dia de Janeiro ou Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais»-
[6]- Relator, José Eusébio Almeida, acórdão acessível em www.dgsi.pt
[7] - Relator, João Camilo, acórdão acessível em www.dgsi.pt