Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
518/03.3TACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105.º, N.º 1, 120.º, N.º 1 E 121.º DO CPP
Sumário: 1. A deficiente gravação das declarações constitui nulidade, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 105.º, n.º 1, 120.º, n.º 1 e 121.º do CPP
2. Não sendo a nulidade em causa legalmente definida como insanável, tendo presente a disposição do artigo 120.º, n.º 1 do CPP, só pode ser tida como nulidade dependente de arguição, perante o tribunal de 1.ª instância, no prazo previsto no artigo 105.º do CPP, e, em geral, não na motivação do recurso interposto da sentença.
3. Quer se trate de julgamento com uma ou mais sessões, o prazo de 10 dias para arguição da nulidade só poderá ter início após a leitura da sentença.
4. O prazo de 10 dias para a arguição da nulidade apenas se inicia a partir do dia em que os suportes técnicos são disponibilizados pelo tribunal ao sujeito processual requerente, uma vez que só nessa data o mesmo poderá tomar conhecimento de omissão ou deficiência do registo de gravação da prova.
5. Mesmo em relação às nulidades dependentes de arguição, se ainda não se deverem considerar sanadas, podem ser fundamento de recurso, não sendo necessário arguir primeiro a nulidade e recorrer depois da decisão sobre a arguição.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Círculo Judicial de Castelo Branco, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido A…, casado, comerciante, com última residência conhecida na Rua …, actualmente preso no E.P. da Carregueira, sob imputação, na pronúncia de fls. 651/652, da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de falsificação de documento autêntico, p. e p. pelos artigos 256.º, n.ºs 1, al. b), e 3, e 255.º, al. a), e de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 202.º, al. b), todos do Código Penal.


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2. P…, constituído assistente, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia indemnizatória no valor global de € 40.358,61 (segundo alega, correspondente à desvalorização do veículo até à data da apresentação do pedido de indemnização, aos juros de um livrança que o demandante tencionava pagar com o produto da venda do veículo e ao valor de uma novo veículo que o demandante teve de comprar), acrescida da desvalorização do veículo ainda a verificar-se, montante a ser liquidado em execução de sentença, quantias a que acresceriam os juros legais, à taxa de 4,00% ao ano, desde a data da “venda” do veículo e até integral pagamento, a recair sobre o montante de € 53.400,00.

Para além destes pedidos, peticionou ainda o mesmo demandante declaração judicial no sentido de que o veículo de matrícula XXX... é sua propriedade única e exclusiva ou, caso assim não seja entendido, a condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 53.400,00, correspondente ao valor total do veículo à data da “venda” .


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3. De igual modo, M... deduziu pedido cível contra o arguido, impetrando a condenação deste no pagamento ao demandante da quantia de € 18.880,00, a título de dano pela privação do uso do veículo, valor a rever na data da prolação da sentença, acrescida do montante € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais, devendo ainda a viatura em causa ser devolvida ao demandante.

Subsidiariamente, para o caso de ser entendido não dever a viatura ser-lhe entregue, pediu o demandante a condenação do arguido no pagamento do montante de € 47.500,00, referente ao valor pago pela aquisição da viatura de matrícula XXX…, e ainda da quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, valores acrescidos de juros legais, a contar da data da citação do demandado até integral pagamento.

Todavia, no início da audiência de discussão e julgamento, o demandante M..., em face da sentença entretanto proferida nos autos de Acção Ordinária com o n.º 1594/06.2TBCTB, transitada em julgado, requereu fosse apenas considerado, nos presentes autos, o pedido subsidiário.


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4. Por acórdão de 6 de Janeiro de 2010, o tribunal colectivo proferiu decisão do seguinte teor:

A) julgou procedente, por provada, a pronúncia e, em consequência, condenou o arguido A…:

1. Pela prática de um crime de falsificação de documento autêntico, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.ºs 1, al. b), e 3, e 255.º, al. a), ambos do Código Penal, na pena 3 anos de prisão;

2. Pela prática de um crime de burla, p. e p. nos artigos 202.º, al. b), 217.º, n.º 1 e 218.º. n.º 2, al. a), todos do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão;

3. Operado o cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

B) Julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado por P… contra o arguido/demandado A… e, em consequência, condenou o demandado a pagar ao demandante a quantia de € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora que se vencerem desde a data do acórdão, por se mostrar actualizada tal quantia nesse momento, juros estes à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento.

C) Julgou procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado por M… contra o arguido/demandado A… e, em consequência, condenou o demandado a pagar ao demandante:

  - A quantia de € 47.500,00 referente ao valor pago pelo demandante pela aquisição da viatura de matrícula XXX…, a que acrescem juros desde a data da notificação ao arguido do pedido de indemnização civil, 25-09-2009, à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento;

  - A quantia de € 2.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros que se venham a vencer desde a data do acórdão, por se mostrar actualizada tal quantia nesse momento, à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento.


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5. Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – É ininteligível porque imperceptível a gravação relativa ao depoimento do Senhor arguido e testemunha, primo do ofendido, J... - acta do dia 9-12-09.

2.ª – Pelo que, sendo ininteligível a gravação relativa ao depoimento de uma testemunha e arguido, essa lacuna insuperável inviabiliza uma apreciação global da prova, tanto mais que o depoimento do arguido e da testemunha em apreço é fundamental na determinação da matéria de facto, mais concretamente para aferir da astúcia ou engano;

3.ª – Esta irregularidade - artigo 118.º, n.º 1, do CPP - afecta o valor do acto – artigo 123.º, n.º 2, do CPP, visto que a sua verificação é prejudicial para os direitos do recorrente e tem influência no exame e decisão da causa, pelo que deve ser ordenada a reparação da irregularidade, sob pena de violação dos direitos de defesa e ao recurso do arguido, vertidos no artigo 32.º da CRP.

4.ª – O Tribunal deu como provado que o arguido assinou o cheque e se intitulou patrão da B... para enganar o ofendido e levar a viatura sem pagar.

5.ª – Quanto à assinatura do cheque, baseou-se na prova indirecta, já que o arguido negou que assinara o cheque, e quanto às restantes testemunhas refere: “é certo que ninguém relatou ter visto o arguido a assinar o cheque”.

6.ª – O recorrente, apesar de ter admitido que preencheu o cheque, sempre negou tal assinatura, alegando que o mesmo lhe foi entregue pelo seu sócio, C..., para a realização da compra da viatura e como pagamento de uma dívida tida por este último para com o ora recorrente.

7.ª – Muito embora tal justificação não tenha sido acolhida pelo Tribunal recorrido e na falta de outras provas em contrário, não podia este concluir, como concluiu, que o cheque foi assinado pelo recorrente, em momento anterior à sua entrega ao ofendido.

8.ª – Aliás, não tendo o Tribunal conseguido descortinar o modo como foi assinado o cheque, mais não lhe restava, perante a dúvida, senão aplicar o princípio constitucional de in dubio pro reo e presunção de inocência do arguido.

9.ª – Por outro lado, a testemunha N... da Cletolar admitiu na audiência de 9 de Dezembro que o cheque lhe fora retirado provavelmente por um seu segurança que se dava com o C... que lhe foi dito que era sócio do arguido.

De facto, esse foi sócio do arguido na sociedade shop-car, onde este, através da sua companheira Marta, detinha uma quota.

10.ª – Face ao depoimento do arguido, em contradição com o do ofendido, e com fundamento no depoimento de N..., considerando a dúvida suscitada, impunha-se, de acordo com o princípio da descoberta da verdade material, que o Tribunal apurasse quem foi o verdadeiro autor da assinatura no cheque, sem ter que recorrer à tal prova indirecta, e ordenando de imediato o exame grafológico do cheque.

11.ª – Não o tendo feito, não deveria considerar-se como provada a referida falsificação pelo arguido, o que ao fazer-se viola, nesta parte, o disposto no artigo 340.º, n.º 1, do CPP, tendo havido, pois, omissão de uma diligência essencial para a descoberta da verdade material – artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, padecendo o acórdão do vício do artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

12.ª – O Tribunal não fez correcta apreciação da prova (incorreu em erro na apreciação da prova, o qual era facilmente perceptível e resulta do texto da decisão recorrida, enquadrando-se na al. c) do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, impondo-se, por isso, a realização de audiência onde tal exame seja feito.

13.ª – Por isso, o Tribunal não poderia ter dado como provado que o arguido assinou o cheque nos termos dos artigos 4.º e 23.º do texto decisório.

14.ª – Quanto ao engano, de acordo com as regras da experiência comum, nos termos do artigo 127.º do CPP, não faz sentido que:

a) Em momento anterior à sua deslocação a Castelo Branco para negociar o “jeep”, solicitou uma redução de preço ao ofendido e só após essa redução se deslocou àquela urbe no sentido de proceder às negociações tendentes à compra da mesma;

b) Mesmo depois de ver o veículo, e ponderada a sua aquisição, renegociou novamente o preço, oferecendo menos 3750 € em relação ao valor anteriormente acordado telefonicamente;

c) Facultou ao ofendido o seu Bilhete de Identidade e Cartão de Contribuinte, permitindo a este efectuar fotocópias desses documentos;

d) Já após se encontrar na posse do veículo e respectiva declaração de venda, telefonou ao ofendido a solicitar-lhe o NIB, pedindo-lhe para confirmar esse número pelo menos três vezes;

e) Contactou o ofendido, dando-lhe conta que não conseguia transferir o valor acordado na venda, na data combinada;

f) Se o recorrente pretendia de facto enganar o ofendido, porque apenas decidiu deslocar-se de Lisboa a Castelo Branco após conseguir, por telefone, uma redução do preço pedido pelo arguido no anúncio da venda do automóvel, em vez de esperar para fazer esse pedido quando se encontrassem pessoalmente se a sua intenção não era pagar?

g) E depois dessa redução substancial de preço, porque motivo voltou a renegociar uma nova baixa no valor de 3750 €, arriscando perder o negócio?

h) Porque é que facultou os seus documentos pessoais, autorizando que fossem os mesmos fotocopiados pelo ofendido, em vez de se limitar a que os seus dados de identificação fossem copiados desses documentos, sabendo, caso fosse intenção enganar o ofendido, que tal facto o comprometeria irremediavelmente?

i) Se o arguido apresentou, ao ofendido, um Bilhete de Identidade no qual a assinatura correspondia à constante do cheque, conforme foi considerado provado, porque motivo este, ao falsificar o seu B.I. para que tal assinatura correspondesse, se limitou a fazer constar desse documento uma assinatura que não lhe pertencia, mantendo, no entanto, todos os restantes elementos de identificação referentes à sua pessoa verídicos, o que facilmente faria com que o mesmo fosse identificado?

J) Por outro lado, não faz sentido que a assinatura que constava do B.I. apresentado fosse diferente daquela que consta do seu verdadeiro documento de identificação, mantendo-se, no entanto, nesse documento falseado todos os dados pessoais verdadeiros do recorrente.

15.ª – De onde concluir pela versão do arguido, de que a sua intenção era pagar, mas que foi confrontado com um outro pagamento que lhe alterou o seu plano de liquidez. Depois ausentou-se para o Brasil de onde voltou, foi preso e notificado deste processo. Todas estas declarações não se podem reproduzir porque imperceptíveis.

16.ª – O arguido nega que se tenha intitulado patrão da B..., referindo sim pertencer aquela a um sócio seu como lhe referira esse.

Temos as declarações do arguido contra as declarações do ofendido, a palavra de um contra a palavra do outro (sendo que o seu depoimento é um testemunho interessado), e dessa forma terá de ser valorado, sendo que, em caso de dúvida, essa favorece o arguido.

17.ª – Pelo que deveria ter sido dado como não provado o facto constante do artigo 23.º, de se ter intitulado como patrão da B....

18.ª – Pode o comportamento do recorrente não ter obedecido às regras da maior lisura em termos negociais. Todavia, a imputada encenação no sentido que o arguido não pretendia realizar negócio válido, visando exclusivamente locupletar-se à custa alheia, não se mostra sustentada de forma consistente pelos meios de prova carreados aos autos.

19.ª – A livre apreciação da prova pelo julgador pressupõe que exista prova, e a livre convicção do julgador não é igual ao arbítrio do julgador.

Pelo que, na ausência de outros meios de prova, carreados para os autos, nos termos do artigo 355.º, n.º 1, do CPP, restará a dúvida sobre a efectiva intenção do arguido.

Perante esta dúvida e porque o Tribunal não pode abster-se de julgar com fundamento em dúvida insanável – artigos 8.º, n.º 1, do CC, e 3.º, n.º 2, do EMJ, sob pena de denegação de justiça, dever-se-á decidir de acordo com o princípio in dubio pro reo.

20.ª – Pelo que, de acordo com esse princípio, não pode o Tribunal dar como provada a intenção enganosa por parte do arguido.

Concurso aparente:

21.ª – De acordo com a matéria dado como provada, contrariamente ao entendimento plasmado no Acórdão, entende o recorrente, salvo melhor opinião, que existiu uma única resolução criminosa, pois que a falsificação é feita como meio de praticar a burla, isto é, na óptica do Tribunal o recorrente munira-se daquele cheque para que o ofendido lhe desse a declaração de venda e a viatura.

22.ª – Teve, pois, de falsificar para burlar, pois que a burla não existiria se não fosse a falsificação.

Por isso deverá ser só condenado pelo crime de burla, apesar dos interesses juridicamente tutelados.

23.ª – Não tendo entendido desta forma, fez o Tribunal errada interpretação da norma contida no artigo 30.º, conjugada com as normas contidas nos artigos 217.º e 256.º, do CP, por violação do princípio constitucional – artigo 29.º, n.º 5, da CRP.

Medida da pena:

24.ª – O arguido não foi nenhum santo, errou e tentou redimir-se.

Não se pode concluir que quem faz um cesto faz um cento, porque cada caso é um caso e alguns são o aproveitamento de outros, levando por vezes a não acreditar nas verdades por mais verdades que sejam, mas que face a certos antecedentes criminais acarretam um efeito estigmatizante contra o arguido.

25.ª – Apesar de ter alguns antecedentes criminais nada abonatórios da sua pessoa, tem reparado integralmente os prejuízos até onde pode, o que fez nomeadamente no caso dos autos que correram pelas 6.ª e 8.ª Varas de Lisboa, e também no processo em que foi condenado em 2-4-04, proc. 510/02.5.GH.SNT de Coimbra e em Oeiras e Sintra.

26.ª – O seu arrependimento está plasmado agora nos seus actos, ao assumir as responsabilidades e reparar os danos.

Também neste processo o próprio arguido, que errou porque não pagou, apesar de referir que não teve intenção de burlar quem quer que fosse, já que se deveu a um problema de liquidez, e,

27.ª – que tudo foi como uma bola de neve, aumentando cada vez mais as dívidas, tudo isso teve o cuidado de explicar ao ofendido mal soube da existência deste processo, em Janeiro de 2009, enviando-lhe uma carta onde tudo refere e que se encontra junto aos autos, conforme acta de audiência de 21 de Dezembro.

28.ª – Várias vezes em audiência pediu desculpa pelos incómodos e prejuízos causados aos ofendidos pelo incumprimento negocial, obrigando-se a pagar como pudesse.

29.ª – Quanto às circunstâncias pessoais do arguido, apesar de este ter deposto sobre tal, o Acórdão é omisso.

O Tribunal não valorou as suas declarações neste aspecto porque também não acreditou nas mesmas?

30.ª – Se de facto não valorava as declarações do arguido quanto às condições pessoais, deveria, logo que se vislumbrava a aplicação da sanção, de ter, nos termos do artigo 369.º, n.º 1, do CPP, solicitado relatório social - artigo 370.º - para efeitos da aplicação de sanção – artigo 371.º do CPP.

31.ª – Ao não o ter feito, omitiu uma diligência essencial para aplicação da pena, mais concretamente para os efeitos da al. d) do n.º 2 do artigo 71.º do CP, o que ora se argui, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), o que provoca a nulidade da sentença, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º, do CPP, por falta de fundamentação – artigo 374.º, n.º 2, do CPP.

32.ª – Contudo, sempre se dirá que o arguido está inserido social e laboralmente, trabalhando no Estabelecimento Prisional na oficina de componentes eléctricos e como treinador de equipa de futebol.

Quando em liberdade, o mesmo já tem emprego assegurado.

33.ª – Tem óptimo comportamento prisional, interiorizou os factos pelos quais foi anteriormente condenado, ressarcindo os ofendidos, nos processos em que de facto errou e na medida do possível.

34.ª – Sem conceder, mas a entender-se, por mera cautela de patrocínio, que o comportamento do arguido teve contornos ilícitos e não só de foro meramente cível, atendendo nomeadamente à carta que o arguido enviou ao ofendido e posteriormente junta aos autos, se deverá concluir que os aspectos da prevenção geral e especial estão acautelados pelo que o arguido é credor que lhe seja aplicada uma pena próxima dos mínimos, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, do CP.

35.ª – Durante o tempo em que tem estado preso mereceu a confiança do sistema judiciário, tendo mantido uma postura correcta, e sem reparos, conforme lhe era exigido pela sociedade.

36.ª – Apesar de se entender que estamos meramente face a um incumprimento contratual, o arguido, a ser condenado em concurso real ou aparente de crimes, deveria ter sido nos mínimos legais e operando-se o cúmulo das penas, tendo em conta essa situação, no mínimo, sob pena de violação do preceituado nos artigos 70.º, 71.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 77.º, do CP.

37.ª – Nos termos do artigo 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP, deverá ser dado como não provado o artigo 1.º da matéria de facto dada como provada, por se considerar meras conclusões.

38.ª – Os artigos 4.º e 5.º dever-se-ão dar como provados.

A prova que impõe decisão diversa é:

Ausência de prova nesse sentido, sendo que as declarações do ofendido para cujo segmento de prova se remete para a motivação, sendo contrárias às do arguido, não mencionando o respectivo segmento de prova porque imperceptível, palavra de um contra o outro, de acordo com o princípio do in dubio pro reo, não deverão ser dadas como provadas.

39.ª – Os artigos 23.º, 24.º e 25.º da matéria de facto dada como provada deverão ser considerados como não provados quanto ao recorrente, de acordo com o princípio in dubio pro reo.

40.ª – Sendo certo que a demonstração feita a título exemplificativo, sem embargo de tudo quanto foi explanado nas alegações proferidas sobre matéria de direito, o que deve ser tomado em consideração, impõe que, perante os enunciados erros de apreciação, devam V. Exas., nos termos do artigo 431.º do CPP, proceder à necessária modificação da matéria de facto.

Deve ser dado provimento ao recurso.


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6. O Magistrado do Ministério junto da 1.ª instância, em curta resposta, pronunciou-se no sentido da manutenção, na íntegra, da decisão recorrida.
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7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto é de parecer que não deve ser concedido provimento ao recurso.
Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido e o assistente P… não apresentaram resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No vertente caso, as conclusões da motivação do recurso do arguido demandam para apreciação as questões que se passam a elencar:
A) Se se verifica irregularidade decorrente da imperceptibilidade da gravação das declarações do arguido e do depoimento da testemunha J... e seu efeito jurídico-processual;
B) Se o Tribunal Colectivo da 1.ª instância incumpriu o disposto no artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, omissão geradora da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d), daquele diploma legal, e, simultaneamente, consubstanciadora do vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º, ainda do mesmo corpo normativo;
C) Se, por não ter solicitado a elaboração do relatório social referido no artigo 370.º do Código de Processo Penal, o acórdão é nulo, nos termos conjugados do artigos 379.º, n.º 1, e 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal;  
D) Alterabilidade da matéria de facto;
E) Violação do princípio constitucional da presunção de inocência, na vertente processual do princípio in dubio pro reo;
F) Verificação de erro notório na apreciação da prova;
G) Se alterada a matéria de facto, em função dos desígnios do recorrente, este deve ser absolvido de ambos os crimes (falsificação e burla) que lhe estão imputados;
H) Concurso aparente entre os crimes de burla/falsificação;
I) Medida das penas, parcelares e única.


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2. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Na manhã do dia 5 de Outubro de 2003 - Domingo - o arguido encontrou-se com P…, na casa de morada deste nesta cidade e comarca de Castelo Branco, a fim de negociarem a compra e venda do “jeep” do último, de marca Mercedes e matrícula XXX…, com o firme propósito de o enganar no negócio, levando consigo e fazendo seu o veículo e não procedendo ao seu pagamento, por qualquer forma que fosse.

2. Em execução de tal plano e após verificar o estado do veículo, o arguido propôs-se efectivar a sua compra, acordando a mesma pelo preço de € 43.750,00.

3. O arguido propôs-se pagar tal valor por cheque, de imediato, e, na ocasião, por punho próprio, procedeu ao preenchimento do cheque número 9820470860, com local de emissão, data de 8 de Outubro de 2003, à ordem de “P…”, valor, em números e por extenso, titulado junto da conta número … da agência do Banco Internacional de Crédito, em Sacavém, pela sociedade comercial “B...”.

4. O cheque já se encontrava assinado pelo arguido, no local destinado ao titular da conta, e o ofendido confirmou que tal assinatura era coincidente com a aposta no bilhete de identidade, com a fotografia do arguido, que este exibiu na ocasião.

5. O arguido, intitulou-se perante o ofendido como patrão da “B... e, para credibilizar tal alegação, exibiu um outro módulo de cheque que não se encontrava nem assinado, nem preenchido.

6. Perante tal modo de pagamento disse-lhe P… que não emitiria a “declaração de venda” do veículo sem se certificar da provisão do cheque apresentado.

7. O arguido comprometeu-se, então, a proceder no dia seguinte - 2.ª Feira - à transferência do montante titulado pelo cheque para conta bancária de P… alegando ter absoluta necessidade de se fazer acompanhar da referida declaração de venda devidamente assinada e que estava de boa-fé no negócio.

8. Convencido da autenticidade de tal alegação e da consequente veracidade e legalidade da operação, o P… acedeu ao solicitado, recebendo o cheque e entregando ao arguido o veículo e a devida “declaração de venda”.

9. O arguido abandonou então o local, levando consigo o veículo e a dita “declaração de venda”.

10. No dia seguinte - 6 de Outubro de 2003, 2.ª Feira - o arguido telefonou a P... solicitando indicação do seu número de identificação bancária (NIB) para proceder à acordada transferência do montante titulado pelo cheque, o que este fez.

11. Cerca de meia hora depois, o arguido voltou a telefonar ao ofendido P..., afirmando não ter conseguido efectuar a transferência bancária, o que conseguiria no dia seguinte.

12. Neste seguinte dia seguinte - 7 de Outubro de 2003, 3.ª Feira - o arguido telefonou de novo a P... comunicando-lhe ter acabado de fazer a dita transferência e que o respectivo montante seria disponibilizado para a sua indicada conta bancária no prazo de 24 a 48 horas.

13. A seguir a tal telefonema e perante o que lhe havia dito o arguido, o ofendido emitiu ordem de cancelamento do “seguro automóvel” à respectiva seguradora.

14. O ofendido P..., contudo, veio a constatar junto da aludida conta bancária que a dita transferência não havia sido concretizada e, perante tal facto, iniciou tentativas de contacto telefónico com A…, o que não logrou até apelo menos ao dia de apresentação de queixa neste Tribunal, 14 de Outubro de 2003.

15. Nesse mesmo dia, receoso por consumado engano, P... contactou o gerente da agência bancária do cheque em apreço inteirando-o da situação, sendo que este lhe comunicou que o cheque em causa não tinha provisão, que a assinatura do cheque não correspondia à dos titulares da conta e que a “B...” já não existia e os “patrões” estavam no estrangeiro.

16. No dia 10 de Outubro de 2003 o legítimo titular da dita conta comunicou ao banco informação de extravio do cheque com o n.º número 9820470860.

17. Perante tais informações o demandante P... apresentou o dito cheque a pagamento aos balcões do Banco Atlântico nesta cidade, o qual veio a ser devolvido nos Serviços de Compensação do Banco de Portugal por motivo de “Chq. Rev. Extravio” no dia 14 de Novembro de 2002.

18. Uma vez na posse do dito veículo, e sempre em execução do plano delineado, o arguido, no mesmo dia 5 de Outubro de 2003 telefonou A… a G..., propondo-lhe a venda do veículo e abatimento na sua dívida para com este, ao que anuiu, no dia seguinte - 6 de Outubro de 2003, 2.ª Feira - concretizando o negócio pelo preço de € 35.000,00, mediante entrega dos respectivos documentos, “declaração de venda”incluída, e recebimento de cheque no valor de €  30.500,00 (operado o abatimento de dívida de € 4.500,00), que apresentou a pagamento recebendo o respectivo montante.

19. Nesse mesmo dia 6, o dito G..., procedeu à venda do veículo pelo preço de € 36.000,00 ao sócio-gerente do stand de automóveis “AP...” de Faro, F..., deixando os referidos documentos e tendo ficado o veículo em exibição no dito Stand, para venda.

20. Passado cerca de 1 mês o F... procedeu à venda do veículo pelo preço de € 47.500,00 a M…, o qual, munido dos ditos documentos, procedeu posteriormente ao registo da viatura a seu favor.

21. Expedidos mandados de apreensão do veículo automóvel veio o mesmo, com respectiva documentação, a ser apreendido por agentes da G.N.R. de Lagos no dia 10 de Dezembro de 2003 ao dito M... e a ser entregue a P....

22. O arguido despendeu em proveito próprio, não concretamente apurado, quantia de € 30.500,00 recebida de G..., mais beneficiando do abatimento de € 4.500,00 na sua dívida para com o mesmo, nada até a momento tendo entregue a título de ressarcimento dos prejuízos causados quer a P... quer a M....

23. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que o cheque assim preenchido e assinado e as circunstâncias em que o fazia, referidas nos pontos 1. a 5., intitulando-se o arguido de “patrão” da “B...” e tendo mostrado ao ofendido um outro cheque ainda por preencher, da mesma entidade, induzia o dono do veículo a entregar-lho acompanhado de “declaração de venda”, como efectivamente entregou, convencido da veracidade e legalidade da operação.

24. Mais sabia o arguido que, dessa forma, abalava a credibilidade e a fé pública inerentes ao cheque quando emitido por quem de legitimidade e que fazia seu bem que lhe não pertencia, sempre actuando em seu único e exclusivo proveito e contra a vontade, sem autorização e em prejuízo de terceiros e do Estado, este enquanto garante daquelas credibilidade e fé pública.

25. Sabia ainda o arguido que as suas condutas não eram permitidas por lei.

26. O veículo de matrícula XXX… tinha, à data dos factos, o valor comercial de € 53.400,00.

27. Em 09-12-2005 o veículo de matrícula XXX… tinha o valor comercial de € 35.200,00.

28. O veículo, desde a data da sua apreensão, esteve na posse do ofendido P... que, contudo, não o podia conduzir, já que os respectivos documentos se encontravam apreendidos à ordem deste processo.

29. O demandante P... tinha subscrito uma livrança junto do Banco Atlântico, em Castelo Branco.

30. Tal livrança venceu-se em 24-09-2003 tendo, em 12-12-2005, o valor de € 40.200,00.

31. Nessa data a dita livrança ainda não se encontrava paga, ao valor da mesma acrescendo juros à taxa de 4% e 10,75%.

32. À data dos factos o ofendido P... encontrava-se em situação económica difícil, contando com o dinheiro da venda para fazer face aos compromissos que tinha com o Banco.

33. O mesmo ofendido encontra-se profundamente desgastado com toda a situação descrita.   

34. O demandante M… comprou a viatura XXX… para se deslocar no âmbito da sua profissão de construtor civil, para passear com a família e amigos e utilizar no seu dia-a-dia.

35. O demandante apenas usou a viatura durante um mês.

36. O demandante comprou a viatura devido às características da mesma, que o satisfaziam, pensando que iria circular com a mesma durante alguns anos, sentindo-se satisfeito e realizado com tal compra.

37. Com a apreensão da viatura as expectativas do demandante e satisfação e realização que este sentia “caíram por terra”, tendo o mesmo ficado frustrado, desanimado e triste, tendo sentido uma forte desilusão.

38. O demandante vive em …, aldeia do concelho de Lagos.

39. A apreensão do veículo, pela GNR, foi efectuada à porta da residência do demandante, tendo a mesma sido presenciada por algumas pessoas da vizinhança.

40. Durante cerca de duas semanas, logo a seguir à apreensão da viatura, o demandante mal dormia, estava constantemente a pensar no jeep e no que lhe estava a acontecer.

41. Em 25-07-2008 foi proferida sentença no âmbito da Acção Ordinária n.º 1594/06.2TBCTB, que correu termos no 1.º Juízo deste Tribunal, transitada em julgado em 10-09-2008, intentada por P… contra A… e M..., em que foram chamados, através de incidente da intervenção principal provocada por este último deduzido para intervir do lado passivo, AP... Lda., F... e G..., na qual se decidiu:

“a) anular o negócio jurídico celebrado tendo como objecto o veículo automóvel  de marca Mercedes, com a matrícula XXX…, entre o autor e o réu A..., que veio a originar uma subsequente aquisição por parte do réu M...;

b) ordenar, em consequência, o cancelamento da inscrição feita, na Conservatória do Registo Automóvel do Porto, em nome do réu M...;

c) declarar que ao autor, face ao cancelamento do registo, assiste o direito de fazer inscrever definitivamente a seu favor, a propriedade do veículo automóvel;

d) condenar os réus a reconhecer o ora decidido.”

42. O arguido foi já condenado:

- Em 24-03-1998, por crime de desobediência cometido em 12-08-1997, na pena de 24.000$00 de multa;

- Em 22-01-1999, por crime de burla qualificada cometido em 15-10-1997, na pena de 15 meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 2 anos;

- Em 02-05-2000, por crime de coacção e falsidade de depoimento cometidos em Maio de 1998, na pena única de 11 meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 2 anos;

- Em 17-01-2001, decisão transitada em julgado em 05-11-2005, por crime de burla qualificada cometido em 1995, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 4 anos;

- Em 22-10-2002, por crime de emissão de cheque sem provisão, cometido em 09-03-1999, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 5,00;

- Em 02-04-2004, decisão transitada em julgado em 10-05-2004, por crime de burla qualificada cometido em 27-09-2002, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução se suspendeu, mediante condição, pelo período de 3 anos, suspensão esta que veio a ser revogada em 10-11-2005;

- Em 12-06-2006, decisão transitada em julgado em 11-02-2008, por crimes de burla qualificada e falsificação ou contrafacção de documento, cometidos em 27-01-2003, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão;

- Em 28-11-2006, decisão transitada em julgado em 31-03-2008, por 1 crime de burla qualificada e 2 crimes de burla simples, cometidos em 18-06-2004, na pena única de 6 anos e 10 meses de prisão;

- Em 10-05-2007, decisão transitada em julgado em 05-05-2008, por 1 crime de burla qualificada, cometido em 26-08-2002, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

- Em 12-02-2008, decisão transitada em julgado em 10-03-2008, por 1 crime de falsificação de documento e 2 crimes de burla qualificada, cometidos em 01-04-1999, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão;

- Em 16-06-2008, decisão transitada em julgado em 16-07-2008, por 1 crime falsificação ou contrafacção de documento cometido em 15-01-2004, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período de tempo;

- Em 28-05-2009, decisão transitada em julgado em 01-07-2009, por 1 crime de burla na forma tentada, cometido em Outubro de 2001, na pena de 3 anos de prisão.


*

3. Relativamente aos factos não provados, está referido no acórdão:

Para além dos factos que resultam logicamente excluídos da factualidade dada como provada e das meras conclusões ou alegações de direito, não se provou que:

1. O veículo de matrícula XXX… valia, à data dos factos, € 47.000,00.

2. Em virtude do facto descrito em 37., o ofendido P... teve de comprar um veículo automóvel bastante usado, marca Opel Corsa, tendo despendido, nessa compra, o montante de € 2.000,00.

3. O P... procedeu à “venda” do XXX… para poder realizar dinheiro para poder pagar a livrança que referida em 29. a 32.

4. Em virtude de os factos descritos, o ofendido P... se tenha visto praticamente sem casa e sem qualquer meio de subsistência, quer para si, quer para a sua esposa e dois filhos menores. 

5. Em …., como em todas as terras, sobretudo as pequenas, existe sempre alguém com pensamentos levianos e com a língua mais “afiada”.

6. As pessoas da vizinhança, e que têm a língua mais “afiada”, ao verem a GNR a levar o veículo, começaram logo a divulgar o sucedido pela aldeia e começou-se a constar comentários do género “não pagou o jeep e a Guarda veio buscá-lo”; “Só queria fazer vista num jeep Mercedes e não queria pagá-lo”; “A GNR veio buscar o jeep porque não tinha dinheiro para pagá-lo”; “Deve estar falido” e outras coisas do género.

7. Em virtude de tais comentários, o demandante M… sentiu-se incomodado, aborrecido, triste, humilhado e vexado.

8. Afectando os mesmos comentários o bem-estar do ofendido, a sua alegria de viver a sua sociabilidade e tratamento com os outros.

9. Devido à apreensão da viatura, o demandante, só para não lhe perguntarem e contar o que se tinha passado, nem para ouvir algum tipo de comentário desagradável do género dos acima referidos, não saiu de casa nem para ir ao café, durante cerca de duas semanas.       

*

4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado no acórdão:

A convicção do Tribunal fundou-se:

1. Nas declarações do arguido que confirmou os factos constantes da acusação com excepção do facto de ter sido ele a assinar o cheque que entregou ao ofendido P... para aquisição da viatura, referindo que o cheque lhe havia sido entregue por um indivíduo de nome C..., que se intitulava de gerente da B..., já assinado, sendo que aquele tinha uma dívida para com o arguido e combinaram que a regularização da mesma seria efectuada através da compra da viatura, com o cheque da B..., versão que não pode merecer qualquer resquício de credibilidade, quando é certo, desde logo, que o arguido se intitulou, junto do ofendido, contra a verdade, por si sabida, como “patrão” da “B...”, mostrando-lhe ainda outro cheque da mesma entidade, por preencher, cheque este que não seria, seguramente, para regularizar qualquer dívida, nada tendo, ademais, esclarecido o arguido, nada sobre o montante da dita dívida e, em concreto, como se faria a regularização da mesma; disse ainda o arguido que, não obstante, serem verdade os demais factos narrados na acusação, nunca pretendeu enganar o ofendido P... só não tendo efectuado a transferência bancária a favor deste, conforme o combinado, porque não conseguiu, visto ter, na altura, inúmeras dívidas que teve de solver, de imediato, com o dinheiro recebido da venda da viatura a G..., sempre tendo sido intenção proceder ao pagamento acordado, intenção esta que resulta manifestamente contrariada pela factualidade dada como provada;   

2. Nas declarações dos demandantes:

- P…, tendo confirmado que em Outubro de 2003 decidiu vender o seu veículo jeep, tendo procedido à avaliação do mesmo e colocado um anúncio no jornal para este efeito; no dia 3 de Outubro, recebeu um telefonema do arguido perguntando-lhe pelo preço da viatura e meia hora depois um outro telefonema onde aquele lhe pediu que fizesse um abatimento no preço, dizendo que comprava a viatura pelo valor de € 47.500,00; no Domingo seguinte, dia 5, o arguido deslocou-se à casa do ofendido e, tendo conversado ambos, ficou assente que a venda se realizaria pelo preço de € 43.750,00; o arguido manifestou, então, vontade de experimentar a viatura, o que fizeram; na altura de proceder ao pagamento o arguido preencheu um cheque da “B...”, com data de oito de Outubro, tendo-se intitulado de “patrão” dessa sociedade; na mesma ocasião mostrou-lhe o bilhete de identidade, tendo o ofendido confirmado que tal documento continha a fotografia do arguido e que a assinatura aposta neste documento coincidia com a assinatura aposta no cheque, o cartão de contribuinte e um outro cheque da “B...”, em branco, sendo que o ofendido ainda tentou tirar uma fotocópia de tais documentos mas não conseguiu porque a sua máquina estava avariada e, sendo Domingo, os estabelecimentos comerciais onde o poderiam fazer estavam fechados, tendo-se limitado a tirar notas dos elementos constantes do B.I. e do Cartão de Contribuinte; em face da intenção do arguido de proceder ao pagamento através de cheque, o ofendido disse-lhe que não lhe passaria a declaração de venda sem verificar se o cheque tinha provisão, o que suscitou alguma indignação por parte do arguido, que lhe disse então que na 2.ª Feira transferiria todo o dinheiro para a conta bancária do ofendido que, por sua vez, rasgaria o cheque; na 2.ª Feira o arguido telefonou-lhe várias vezes pedindo-lhe o NIB e na 3.ª Feira dizendo-lhe que já havia procedido à combinada transferência; na 4.ª Feira o demandante verificou que, ao contrário do que lhe tinha sido dito pelo arguido, o preço da venda não havia sido depositado, tendo, de imediato e por inúmeras vezes, tentado contactar o arguido, o que não mais veio a conseguir; confirmou ainda as diligências que efectuou junto do Banco para apurar da veracidade do cheque e devolução do mesmo, sem pagamento;         

- M..., tendo confirmado a compra da viatura XXX… a F..., pelo valor de € 47.500,00, tendo-o registado a seu favor e dando-lhe uso durante cerca de um mês, até o mesmo ter sido apreendido pela G.N.R.;

3. Nos depoimentos conjugadas das testemunhas:

L…, casada com o primeiro demandante, tendo confirmado os factos por este descritos, tendo assistido às negociações havidas entre o seu marido e o último reiterado, nomeadamente, que o arguido disse que o cheque era de uma sociedade que ele tinha com outro sócio; que o arguido mostrou ao marido o respectivo B.I. e que foi o arguido quem preencheu o cheque; mais referiu também que a combinada transferência bancária nunca se veio a concretizar, sendo que o marido decidiu vender a viatura porque “estava a ter problemas com o banco, com várias dívidas”; mais referiu que o marido reagiu muito mal face ao acontecido, tendo andado psicologicamente “muito em baixo” e ficado muito abalado;   

J…, primo do ofendido P…, encontrando-se presente, na casa deste, na altura em que o arguido e o ofendido negociaram a venda do veículo, tendo confirmado as declarações prestadas pelo seu primo e respectiva esposa; mais referiu que, enquanto o ofendido foi ao 1.º andar tentar tirar uma cópia do B.I. do arguido, ficou a conversar com este, que lhe disse que era dono de um stand de automóveis em Alvalade, stand este que, por acaso, a testemunha conhece e que tinha vendido um carro igual à mulher do futebolista Simão Sabrosa; disse ainda ter ficado bem impressionado com o arguido e convencido da seriedade das suas intenções e de que este era, efectivamente, negociante de automóveis; mais referiu que o primo, na altura dos factos, estava com dificuldades económicas e problemas junto do banco e que, por isso, decidiu vender a viatura em causa; disse ainda que o ofendido ficou muito abatido com o sucedido, telefonando à testemunha, muitas vezes, para falar do assunto;         

N…, tendo referido ser sócio gerente da “B...” e que o arguido nunca teve nada que ver com tal sociedade; disse que foram furtados alguns cheques da sociedade, desconhecendo a testemunha o uso que lhe foi dado; relativamente ao indivíduo mencionado pelo arguido, de nome C..., disse a testemunha que o mesmo nunca foi sócio gerente daquela sociedade e nunca manteve com ela qualquer relação, para além da circunstância de ser amigo de um segurança que trabalhou na sociedade, deslocando-se à mesma com alguma frequência, sendo que à testemunha foi dito que tal indivíduo era sócio do arguido; 

Luís Filipe Guerreiro, genro do ofendido M..., para quem trabalha desde 1991, tendo confirmado que o ofendido comprou um jeep, para seu uso, que lhe custou € 47.500,00, e que só o teve durante cerca de um mês porque a viatura, entretanto, foi apreendida pela G.N.R.; que o sogro, com quem conversa sobre todos os assuntos, ficou muito afectado com a apreensão da viatura, tendo dormido mal durante algum tempo, que passava a pensar sobre o sucedido;

D..., que trabalha há cerca de 10 anos para o mesmo ofendido, tendo confirmado que este só andou com a viatura durante um mês, até a GNR a ter apreendido à porta da casa daquele; que o ofendido, em virtude desse facto, ficou muito triste e abatido, lamentando-se com frequência sobre o sucedido;

H..., tendo trabalhado para o ofendido durante 7 anos e até há cerca de um ano atrás, confirmando os factos narrados pelas duas testemunhas anteriores;

F..., tendo referido que comprou o jeep referido nos autos ao G..., por € 36.000,00, através de cheque, teve-o no seu stand e vendeu-o ao demandante M..., que, para pagamento, lhe entregou uma carrinha BMW e uma determinada quantia em dinheiro, titulada por cheque, que a testemunha não soube precisar,  

salientando-se que os aludidos depoimentos, bem assim como as declarações dos ofendidos, se mostraram perfeitamente seguros, isentos e credíveis. 

4. Nos documentos de:

- fls. 6, 90 a 94 (fotografias do veículo 06-14-TA); no cheque em causa nos autos, constante de fls. 19; elementos bancários de fls. 175 a 182 (dos quais consta a assinatura de N…, representante da sociedade “B...”, bem como a informação por este prestada ao Banco Internacional de Crédito, de 10-10-2003, de que os cheques da “B... – Comércio de Automóveis, com os números 3310470878 e 9820470860 foram extraviados; auto de apreensão do veículo XXX…, marca Mercedes Benz, modelo ML-270 CDI e respectivos documentos fls. 65 e 66; fls. 67 a 71 (documentos do veículo); fls. 96 (termo de entrega do XXX… a P…, datado de 18-12-2003); no auto de exame directo e avaliação de fls. 88 e 89 do XXX…, efectuado em 18-12-2003; fls. 204 (cópia de “título de registo de propriedade” do XXX…, a favor de M...); nos documentos juntos com o pedido cível  apresentado por P..., constantes de fls. 380 a 383.

4. No Certificado de Registo Criminal do arguido, constante de fls. 740 a 751.

Conjugados e relacionados todos estes elementos de prova entre si, temos como certo e seguro que:

O arguido se apresentou perante o ofendido, desde logo, com a intenção de criar uma aparência de seriedade e de credibilidade, que, de todo, não tinha, com vista, não só, a lograr ultimar o negócio de compra e venda do veículo do ofendido, mas essencialmente, com o objectivo de lograr obter a declaração de venda assinada e com ela entrar na posse do veículo, deixando, nas mãos do ofendido, um cheque, que nada valia, que sabia de antemão não teria qualquer possibilidade de vir a ser pago, tendo ainda reforçado a sua imagem de comprador de boa fé - perante a exteriorização por parte do ofendido da vontade de não lhe entregar a declaração de venda, por si assinada, sem saber se o cheque tinha provisão – com a manifestação da vontade de no dia imediato, fazer a transferência do valor da transacção, o que nunca veio a acontecer, nem, desde logo, o arguido tinha intenção de o vir a fazer, o que de resto, sempre seria absolutamente incompatível e contraditório com a sua versão inicial, sobre a entrada na posse, legítima, do cheque.

Se é certo que ninguém relatou ter visto o arguido a assinar o cheque, não é menos certo que, apenas a si próprio interessava que o mesmo fosse assinado, com vista a ser utilizado como meio de pagamento da compra do veículo.

É certo, contudo, que poderia ter sido assinado por si, na mesma ocasião em que ocorreu o preenchimento dos restantes elementos, na presença do ofendido. Não aconteceu assim, por qualquer razão que não descortinamos, mas que se prenderá, porventura, com a estratégia definida pelo arguido para a sua actuação.

No entanto, o facto, confirmado pelo ofendido, de a assinatura coincidir com a que estava aposta no B.I., que o arguido exibiu e que ostentava a sua própria fotografia – elemento que não pode deixar de ter assumido relevo decisivo, no espírito do ofendido, no sentido de dissipar qualquer dúvida que pairasse – aliado à mentira sobre a sua qualidade de patrão da sociedade titular da conta bancária a que se reportava o cheque e cujo nome surgia impresso no cheque - elemento, também, este, a demonstrar a total falta de verosimilhança, por absoluta incompatibilidade, na versão da entrada na posse legítima do cheque, por o ter recebido das mãos de um dos sócios da dita sociedade – não podem deixar de constituir indícios sérios e seguros, com a virtualidade para, através de raciocínios e juízos de experiência comum e do próprio julgador, permitirem inferir outro(s) facto(s), sobre os quais não existe prova directa, in casu, a aposição da assinatura no cheque e a inerente actuação dolosa, quer da prática do crime-meio de falsificação, para atingir o crime-fim de burla, o que permite, então, que a prova indiciária, por si só, na ausência de prova directa, sirva para fundamentar uma condenação.


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  No que concerne à matéria de facto dada como não provada, fundou-se o Tribunal na inexistência de prova suficientemente consistente, firme e estruturada sobre os factos em causa, de modo a poder o Tribunal formar um juízo positivo isento de dúvida sobre os mesmos.

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5. Do mérito do recurso:

Por razões de precedência lógica e necessária, começamos por abordar a questão relativa à arguida irregularidade decorrente da invocada imperceptibilidade da gravação das declarações do ora recorrente e do depoimento da testemunha J....

O conhecimento, pelo Tribunal da Relação, da impugnação ampla em matéria de facto, pressupõe e exige que este tribunal de 2.ª instância tenha acesso à prova produzida em audiência de julgamento.

Efectivamente, com a gravação das declarações orais prestadas em julgamento e com a opção de facultar às partes cópia do respectivo registo, a lei pretendeu consagrar um efectivo 2.º grau de jurisdição em matéria de facto, a exercer junto do Tribunal da Relação.

Daí que, em resultado das alterações introduzidas à lei adjectiva penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a redacção então introduzida ao artigo 363.º tivesse imposto, no âmbito do julgamento em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, a documentação na acta das declarações orais naquele produzidas, excepto quando o tribunal não pudesse dispor dos respectivos meios técnicos idóneos.

Quanto ao processo comum singular, processo sumário e processo abreviado, outras eram as regras: no primeiro, haveria lugar à documentação, salvo se o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declarassem unanimemente para a acta que dela prescindiam (cfr. artigo 364.º); nos outros processos, a documentação dependia de requerimento (cfr. artigo 389.º, n.º 2, e 391.º-E, n.º 2).

Se o Acórdão do STJ n.º 5/2002 (DR, I Série-A, de 17 de Julho de 2002) pôs termo às divergências jurisprudências até então havidas a propósito do concreto vício - e seu regime - decorrente da falta de documentação da prova oralmente produzida contra o disposto no artigo 363.º[1], o mesmo não sucedeu quanto à possibilidade de conhecimento oficioso pelo tribunal da irregularidade traduzida na gravação deficiente, ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPP[2].

A alteração introduzida no artigo 363.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, consagrou a imperatividade da documentação da prova oralmente recolhida na audiência, alargada a todas as referidas formas de processo.

Dispõe esse normativo, inserido no Capítulo IV (Da documentação da audiência) do Título II do Livro VII do CPP, «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».

Com esta alteração legislativa caducou a jurisprudência fixada no citado Acórdão de STJ n.º 5/2002.

Assim legalmente definido o vício decorrente da omissão de documentação da prova oralmente prestada em audiência, a questão que de imediato se nos coloca consiste em saber se a nulidade decorre apenas e tão só da falta absoluta do acto de documentação ou se é também configurável nos casos em que a documentação se revela deficiente, ou seja, quando não permite ou impossibilita, porque inaudível ou incompreensível, a apreensão do sentido e alcance das palavras dos declarantes.

O texto da lei não é particularmente elucidativo neste contexto. Contudo, as amplas garantias de defesa do arguido, onde se inclui o exercício efectivo do recurso em matéria de facto - direito este a final também extensível ao Ministério Público e ao assistente -, não deixa espaço para grandes dúvidas. Se a falta de documentação corta cerce a faculdade/direito de recorrer em matéria de facto, o mesmo não deixará de suceder com a dificiente gravação dos depoimentos/declarações, a qual, podendo afectar, quer qualitativa quer quantitativamente, a essencialidade da prova registada, do mesmo modo inviabiliza o recurso na vertente considerada[3].

Assim, a deficiente gravação das declarações constitui nulidade, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 105.º, n.º 1, 120.º, n.º 1 e 121.º do CPP[4].

Efectivamente, o nosso Código de Processo Penal consagra um sistema de nulidades taxativas. O princípio está enunciado de forma inequívoca – artigo 118.º - e é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição.

Não sendo a nulidade em causa legalmente definida como insanável, tendo presente a disposição do artigo 120.º, n.º 1 do CPP, só pode ser tida como nulidade dependente de arguição, perante o tribunal de 1.ª instância, no prazo previsto no artigo 105.º do CPP, e, em geral, não na motivação do recurso interposto da sentença[5].

No recurso devem ser arguidas as nulidades de sentença previstas no n.º 1 do artigo 379.º do CPP, em conformidade com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, e outras nulidades insanáveis, e bem assim, como adiante melhor se verá, nulidades dependentes de arguição que não devam considerar-se sanadas (cfr. n.º 3 do artigo 410.º do CPP).

Sobre o prazo de 10 dias para arguição da nulidade, refere Paulo Pinto de Albuquerque que ele se inicia «a partir da audiência», havendo a acrescer «o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido». Acrescenta o referido autor: se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo deve ser contado a partir de cada sessão da audiência, com acréscimo nos referidos termos.

Não obstante os sujeitos processuais puderem ter acesso, no termo de cada sessão de julgamento, e no prazo de 48 horas após requerimento para o efeito, aos suportes técnicos de gravação da prova oralmente produzida, nos termos do disposto no artigo 101.º, n.º 3, do CPP, a posição acima exposta, quanto ao início do prazo reportado a cada sessão de julgamento, configura, afigura-se-nos, um ónus injustificado sobre o controlo da omissão ou deficiência da gravação.

Como referido no citado Ac. da Relação do Porto de 29-10-2008, deste modo «estar-se-ia a exigir ao sujeito processual, nos casos de audiências extensas e que ocupam o dia todo e várias semanas, senão meses, uma “super diligência” (na expressão do Ac. do STJ de 27/03/2006). Como ainda a coarctar de forma desproporcionada o direito ao duplo grau de jurisdição em sede de reapreciação da matéria de facto».

Além de que, na grande maioria das situações se revelaria um labor árduo mas  desnecessário, porquanto o acesso ao registo de gravação só se justifica em função do recurso que se pretende interpor em matéria de facto.

Assim, segundo a nossa perspectiva, quer se trate de julgamento com uma ou mais sessões, o prazo de 10 dias para arguição da nulidade só poderá ter início após a leitura da sentença.

Porém, não impondo a lei processual penal, nomeadamente o artigo 101.º, um prazo determinado para que o sujeito processual, tendo em vista a interposição de recurso visando matéria de facto, requeira a entrega de cópia do registo das gravações, entendemos que o prazo de 10 dias para a arguição da nulidade apenas se inicia a partir do dia em que os suportes técnicos são disponibilizados pelo tribunal ao sujeito processual requerente, uma vez que só nessa data o mesmo poderá tomar conhecimento de omissão ou deficiência do registo de gravação da prova.


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Volvendo ao caso dos autos, estão apontadas, no recurso, deficiências de documentação relativas a prova oralmente prestada na sessão de julgamento do dia 9 de Dezembro de 2009.

E efectivamente assim sucede, como passamos a explicitar.

Ouvido o CD que nos foi remetido, constatamos que o discurso da testemunha referida pelo recorrente, J…, não é, no seu todo, perceptível, em função, fundamentalmente, de um forte ruído de fundo contínuo.

No que respeita ao arguido, o ruído de fundo envolvente é ainda mais intenso, ao ponto de tornar absolutamente inaudível largas fases das suas declarações.

Contudo, as ditas deficiências não se verificam apenas quanto aos meios de prova indicados pelo recorrente.

O registo das declarações das testemunhas N… e M... é imprestável para o exercício efectivo de recurso em matéria de facto, porque inaudíveis e/ou imperceptíveis, na maior parte.

Por fim, o depoimento da testemunha L… também não é suficientemente audível, podendo suscitar erros de (rea)apreciação e valoração.

Feitas as devidas diligências, junto do tribunal a quo, sobre a efectiva deficiência do registo de gravação, obtivemos a seguinte informação: «Tenho a honra de informar (…) que compulsados os registos originais da gravação dos depoimentos gravados referentes às partes referidas no vosso ofício, verifico que o julgamento foi realizado em duas sessões e que, por motivos alheios à nossa vontade, a sessão gravada em 09-12-2009 não ficou nas melhores condições, padecendo efectivamente das deficiências por vós alegadas».

Assim, a situação suscitada pelo recorrente, não se reconduz à definição jurídica invocada: irregularidade; antes configura a nulidade prevista no artigo 363.º do CPP.


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Lido e depositado o acórdão, no dia 06-01-2010, o arguido/recorrente requereu em 08-01-2010 a entrega de cópia dos registos fonográficos das declarações/ depoimentos prestados em audiência de julgamento, o que foi deferido por despacho proferido em 12-01-2010. A Advogada do requerente foi notificada do deferimento da sua pretensão em 18-01-2010. Porém, nada consta nos autos sobre a data da efectiva entrega da cópia solicitada. O arguido interpôs recurso da sentença em 15-02-2010 (a solicitação do arguido, por despacho a fls. 910, foi concedida uma prorrogação do prazo para interposição de recurso de 10 dias).

Em face de todo o exposto, nesta data (15-02-2010), e naqueloutra correspondente ao último dia do prazo para interposição do recurso, ainda estava em curso o prazo de 10 dias para a arguição da nulidade.


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 O n.º 3 do artigo 410.º prevê também como fundamento do recurso a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deve considerar-se sanada.

Não são apenas fundamento do recurso as nulidades insanáveis, mas todas as que não devam considerar-se sanadas.

Quer isto significar que, mesmo em relação às nulidades dependentes de arguição, se ainda não se deverem considerar sanadas, podem ser fundamento de recurso, não sendo necessário arguir primeiro a nulidade e recorrer depois da decisão sobre a arguição; deve recorrer-se desde logo com fundamento na nulidade[6].

Consequentemente, a nulidade traduzida na deficiente gravação das declarações/depoimentos supra referidos (indevidamente rotulada de irregularidade pelo recorrente), porque ainda não está sanada, pode constituir fundamento do recurso.


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A nulidade que se verifica só pode ser reparada com a anulação parcial do julgamento, cabendo determinar a sua repetição com gravação das declarações do arguido e depoimentos das testemunhas L…, J…, N… e M....

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Em face do tratamento da questão processual nos termos supra enunciados mostra-se prejudicado o conhecimento das questões individualizadas nas alíneas B) a I) do ponto 1. da fundamentação deste acórdão.

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Havendo que repetir parcialmente o julgamento, justifica-se que o tribunal colectivo, adicionalmente, apure os elementos reveladores das condições pessoais, sociais e económicas do arguido (cfr. artigo 340.º do Código de Processo Penal), recorrendo aos meios de prova que julgue adequados, nomeadamente à elaboração dum relatório social pelos serviços competentes do IRS.

Deste modo, na hipótese de condenação do arguido, se evitará, no novo acórdão a proferir, uma eventual insuficiência da matéria de facto para a também eventual decisão relativa à determinação da medida das penas.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso e, em consequência, anulam parcialmente o julgamento e ordenam a sua repetição – com a participação do mesmo Tribunal Colectivo –, para que o arguido e as testemunhas L…, J…, N… e M... prestem novas declarações/depoimentos, devendo ser depois proferido, em conformidade, nova sentença.

A par, como acima referido, o Tribunal apurará as condições pessoais, sociais e económicas do arguido, a permitir, no caso de condenação, de modo seguro e rigoroso, escolher e dosear as penas.

Sem tributação.


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(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 23 de Junho de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)

  


[1] Foi fixada jurisprudência no sentido de que essa omissão constituía irregularidade, sujeita ao regime estabelecido  no artigo 123.º, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não podia conhecer.
[2] No sentido de que a imperceptibilidade do registo fonográfico constitui irregularidade dependente de arguição, vide, entre muitos, Acs. do STJ de 27-02-2003, proc. n.º 354/03-3.ª Secção, e de 13-09-2006, CJ, III, pág. 185. No sentido de que, no referido caso, a irregularidade pode ser oficiosamente conhecida, vide, a título meramente exemplificativo, Ac. da Relação de Coimbra de 09-07-03, CJ, IV, pág. 36, e Ac. da Relação de Évora de 21-06-05, CJ, III, 263.
[3] No sentido em que nos manifestamos, vide Acórdãos da Relação do Porto de 29-10-2008, proc. n.º 0844934; e da Relação Coimbra de 02-06-2009, proc. 9/05.8TAAND.C1, e de 21-10-2009, proc. n.º 298/07.3TAPBL.C1, todos publicados em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 02-06-2009, proc. 9/05.8TAAND.C1, e de 28-10-2009, proc. n.º 25/06.2GAFVN.C1. No segundo, intervim na qualidade de adjunto. No mesmo sentido, vejam-se ainda os Acs. da Relação do Porto de 29-10-2008 e 01-04-2009 (procs. 0844934 e 531/07.1TAESP.P1), ambos publicados no sítio www.dgsi.pt.
[5] Neste último sentido, vejam-se os Acs. da Relação de Coimbra de 21-10-2009 (proc. 298/07.3TAPBL.C1) e 10-03-2010 (proc. n.º 11/08.8PEFIG.C1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, págs. 342/343.