Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1507/09.0TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: NOVAÇÃO
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 857.º DO CC
Sumário: Para haver novação é necessário que haja uma manifestação expressa do animus novandi, pelo que a mera reforma de uma letra não se traduz numa novação da obrigação contida na letra reformada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... , deduziu oposição à execução contra si intentada, na comarca de Ourém, por B... S.A., para pagamento da quantia de € 14 235,49, onde a exequente apresentou como título executivo uma letra avalizada pela aqui oponente, com o valor de € 11 616,43.

Alega, em síntese, que foi avalista na letra dada à execução e que a exequente está a exigir "o pagamento de uma quantia que já se encontra paga"[1], referindo que houve "sucessivas reformas e amortizações efectuadas"[2] e que "é de considerar a existência" de "novação objectiva dado ser da própria operação de reforma da letra a substituição da obrigação cambiária constante da letra inicial pela obrigação cambiária constante da nova letra."[3]

Opôs-se ainda a que se contabilize os juros "à taxa comercial, como a exequente contabilizou", pois "os juros moratórios das obrigações cambiárias são os legais."[4]

A exequente não contestou.

A Meritíssima Juíza proferiu despacho "ao abrigo do disposto no art.º 508.º do CPC" convidando "a oponente a esclarecer, no prazo de 10 dias, quais os valores que foram pagos por conta da letra dada em execução."[5]

A oponente apresentou então um articulado em que descreve os vários pagamentos realizados e as várias letras que foram sendo emitidas.[6]

A exequente não respondeu.

Foi proferido despacho saneador-sentença em que se decidiu:

"Por todo o exposto, julgo a presente oposição parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

a) Declaro que a letra que constituiu título executivo foi sucessivamente reformada mostrando-se actualmente em dívida a quantia de € 4 000,00.

b) Determino a prossecução da execução para cobrança da quantia de € 4000,00.

c) Notifiquem-se as partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem acerca da indemnização por litigância de má fé."

Inconformada com tal decisão, a oponente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. A executada não concorda com a sentença que julgou a oposição à execução parcialmente procedente por provada ao declarar que a letra constitui título executivo e ao determinar a prossecução da execução para cobrança da quantia de 4.000,00 €;

2. Entendeu a Meritíssima Juiz a quo que a obrigação cambiária primitiva (letra dada à execução) é válida continuando válido o aval da opoente;

3. Entende a recorrente que a letra dada à execução não poderia ter sido usada como título executivo válido em face das reformas que foram sendo feitas, como ficou provado;

4. A letra inicial não constitui título executivo válido por já não integrar a obrigação que dela resulta, por ter sido substituída por sucessivas letras de reforma;

5. A operação de reforma de letra constitui a substituição da obrigação cambiária decorrente da letra inicial pela emergente da nova letra extinguindo-se a primeira por novação objectiva nos termos do artigo 857.º do Código Civil;

6. A reforma de uma letra antiga por uma nova em substituição daquela opera a novação da obrigação cambiária antiga pela nova, extinguindo-se aquela, que, assim, deixa de integrar qualquer obrigação, e, portanto de constituir título executivo;

7. Entende-se, na Doutrina e na Jurisprudência que a subscrição de uma letra não implica, em regra, novação da obrigação fundamental ou subjacente, dado o que se dispõe no artigo 859.º do Código Civil quanto à necessidade de ser expressamente manifestada a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga;

8. Estando em causa, não a obrigação fundamental mas obrigações cambiárias, as obrigações constantes da letra inicial e as constantes das letras de reforma, é de considerar a existência da referida novação objectiva dado ser da própria operação de reforma da letra a substituição da obrigação cambiária constante da letra inicial pela obrigação cambiária constante da nova letra;

9. A extinção da obrigação constante da letra inicial em virtude da sua reforma envolve a extinção da garantia do aval prestado pela ora recorrente à aceitante em tal letra;

10. Esta é a posição que resulta dos Acórdãos de 12/01/1984 e de 03/03/1998, do Supremo Tribunal de Justiça (o primeiro publicado em BMJ, n.º 333, de 1984, pág. 476 e o segundo em www.dgsi.pt);

11. A letra já não constitui título executivo válido para que possa servir de base à execução, considerando que as obrigações dela constantes já se encontrarem extintas, pela novação ocorrida;

12. Ficou provado que nas letras que reformaram a letra inicial não consta o aval da oponente;

13. Apesar de se apurar o valor actual em dívida da aceitante (C..., Lda) da letra inicial à Exequente, no valor de 4.000,00 €, a oposição à execução deveria ter sido julgada totalmente procedente por falta manifesta de título executivo;

14. A letra dada à execução, na data de entrada do requerimento executivo, já não expressava o valor em dívida por parte da C..., Lda à Exequente, pelo que já não poderia servir como título executivo;

15. Nos termos do disposto no artigo 45.º do Código de Processo Civil (CPC) toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução;

16. O requerimento executivo, para além de outros elementos necessários, deve ser acompanhado de título executivo (vide art. 810.º, n.º 6, do CPC);

17. O artigo 46.º do referido Código estabelece taxativamente a espécie de títulos executivos que podem servir de base à execução.

18. De acordo com a alínea c) do n.º 1 deste artigo podem servir de base à execução os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

19. A letra constitui documento particular;

20. No caso, a letra dada à execução não poderá ser considerado título executivo válido, em face daquela norma legal, uma vez que ficou provado que a dívida já não corresponde ao valor que consta da letra;

21. Por ter sido reformada e substituída por outras letras deveria a Exequente ter devolvido a letra à aceitante desta, como determinam as regras da boa-fé;

22. Se tal tivesse sucedido, a Exequente já não poderia ter vindo, manifestamente de má-fé, dar à execução uma letra cujo valor sabia já não se encontrar em dívida;

23. Tendo a acção executiva sido instaurada com um título executivo errado, pois que o respectivo valor já se encontrava parcialmente pago, o mesmo equivale para os devidos e legais efeitos, a que a acção executiva tenha sido instaurada sem título executivo válido;

24. O requerimento executivo deveria ter sido liminarmente rejeitado, atendendo à manifesta falta de título, como o impõe o preceituado no n.º 1, alínea a) do artigo 812º-E, do CPC.

25. Violou assim a Meritíssima Juiz a quo o preceituado nos artigos 45.º, 46.º, n.º 1, al. c), 810.º, n.º 6 e 812.º-E do CPC e 857.º e 858.º do Código Civil;

26. Acresce ainda que a Meritíssima Juiz a quo, não cumpriu correctamente o disposto no artigo 659.º do CPC;

27. A Meritíssima Juiz a quo não retirou as devidas conclusões derivadas da alegação feita pela Executada de nada dever à Exequente, sem que esta tenha respondido;

28. Tratando-se de uma excepção peremptória deveria ter dado lugar à absolvição do pedido;

29. Violou assim a Meritíssima Juiz a quo o disposto no artigo 659.º, n.º 3, do CPC;

30. A sentença é nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (vide artigo 668º, n.º 1, al. b));

31. Verifica-se também que os fundamentos da sentença estão em flagrante oposição com a decisão, pelo que também é nula por este motivo (vide artigo 668.º, n.º 1, al. c)) por se entender que a dívida inexiste relativamente à Opoente, ou pelo menos que é substancialmente inferior (4.000,00 €) ao valor que consta da letra (11.616,43 €) dada à execução;

32. A sentença sofre ainda de omissão de pronúncia, e por tal motivo è nula, (vide artigo 668.º, n.º 1, al. d)) por não ter apreciado a questão levantada pela opoente, da ilegal contabilização dos juros à taxa comercial, já que os juros, a serem devidos, deveriam ser contabilizados à taxa legal de 4% ao ano.

Termina pedindo que a sentença recorrida seja "revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente a oposição à execução declarando extinta a execução."

A exequente não contra alegou, mas apresentou requerimento, a propósito da sua eventual litigância de má-fé, em que afirma "que não litigou de má fé, admitiu o seu lapso na execução da letra, pois não contestou a oposição apresentada e nenhum prejuízo resultou da mesma para a Executada."[7]

A Meritíssima Juíza a quo pronunciou-se no sentido de que a sentença não tem as nulidades mencionadas pela opoente.

Proferiu-se despacho nos termos do artigo 3.º n.º 3 para as partes, querendo, tomarem posição quanto às questões aí mencionadas, relativas aos factos que devem ser tidos como provados.[8]

Pelas partes nada foi dito.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[9], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) sentença é nula face ao disposto no artigo 668.º n.º 1 b), c) e d);

b) em virtude do aval que deu na letra apresentada à execução, a opoente ainda é responsável pelo pagamento de algum valor.


II

1.º


Na sequência do despacho das folhas 79 e 80, proferido ao abrigo do disposto no artigo 3.º n.º 3, no âmbito do qual as partes não se pronunciaram, como aí se afirmou, a opoente alegou que a letra dada à execução já se encontra paga, em virtude de diversos pagamentos que foram realizados, acompanhados de sucessivas reformas desse título.

Na sentença recorrida a Meritíssima Juíza considerou que havia que dar como provado o alegado pela opoente em virtude da "prova documental junta aos autos e não impugnada, bem como do facto de terem sido admitidos pela parte contrária"[10]. Esse entendimento não foi atacado, pelo que tem que se ter por assente que a exequente, ao não contestar, confessou, os factos articulados pela opoente. Aliás, face ao teor do requerimento acima mencionado, que a exequente apresentou nos autos já depois de proferida a sentença agora em crise, ela parece aceitar tal entendimento e não, apenas, conformar-se com ele.

Desta forma, devem considerar-se provados os factos "admitidos pela parte contrária".

Ora, nos factos provados a Meritíssima Juíza fez constar, sob 4 que "a letra referida em 2) foi sucessivamente reformada por outras letras." Salvo melhor juízo, tendo presente o que a opoente afirma no articulado em que presta os esclarecimentos que lhe foram solicitados pela Meritíssima Juíza, satisfazendo dessa forma o convite que nesse sentido lhe tinha sido dirigido, tem que se concluir que esta frase não traduz, fielmente, o que aí foi alegado e que se deve ter por provado. O que se alegou é bastante mais do que aquilo que consta em 4 dos factos provados; o facto aqui dado como provado está aquém da realidade alegada.

Neste contexto, considerando também o disposto nos dos artigos 713.º n.º 2 e 659.º n.º 3 do Código de Processo Civil, deverá substituir-se esse facto pelos que se encontram nos artigo 5.º a 16.º desse articulado. E dado o que aí figura sob esse artigo 16.º torna-se inútil mencionar o facto que na sentença se encontra sob 6 dos factos provados, sob pena de se cair em repetição. Desses factos, conjugados com o alegado no artigo 5.º da petição inicial da oposição, resulta ainda provado que os pagamentos entretanto realizados se destinavam a saldar a dívida titulada pela letra dada à execução, facto que deve ser aditado aos factos provados.


2.º

Estão provados os seguintes factos:

1- “ B ..., SA”, intentou a acção executiva com o número 1507/09.0TBVNO, que corre os seus termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, à qual os presentes autos estão apensos, para pagamento da quantia de € 14 235,49, contra o executado, ora oponente, sendo € 11 616,43 decorrentes do valor constante do título executivo, € 2 593,56 relativos a juros vencidos e € 25,50 de taxa de justiça [Fls. 1 e ss. dos autos principais];

2 - No processo executivo referido em 1), a exequente apresentou à execução um documento escrito, vulgarmente designado como “letra” da qual consta como importância a quantia de “€ 11 616,43”; como data de vencimento “2007-12-14”; como sacador “ B ..., SA” ...”, como assinatura do subscritor, o carimbo da sociedade “ B ..., SA - A gerência”, seguido da assinatura D...; no verso, transversalmente, constam os seguintes dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”, seguidos da assinatura, entre outras, da executada/oponente [fls. 5 e 6 dos autos principais];

3- Foi a executada/oponente quem, pelo seu próprio punho, colocou a assinatura constante do título executivo.

4- Em 21/12/2007, a letra dada em execução, no valor de € 11 616,43, foi amortizada no valor de € 1 200,00, e reformada por uma outra (Aceite n.º 20070157) no valor de € 10 416,43.

5- Em 23/01/2008, a letra no valor de € 10 416,43, foi amortizada no valor de € 1 616,43, e reformada para o valor de € 8 800,00.

6- Em 27/02/2008, a letra no valor de € 8 800,00, foi amortizada no valor de € 1 200,00 e reformada para o valor de € 7 600,00.

7- Em 30/04/2008, a letra no valor de € 7 600,00 €, foi amortizada no valor de € 1 500,00 € e reformada para o valor de € 6 100,00.

8- Em 05/05/2008 foi aceite pela C... uma nova letra no valor de € 10 497,25 para liquidação do saldo em dívida da sua conta corrente para com a exequente.

9- Em 18/07/2008 foi aceite uma letra no valor de € 11 231, 45, correspondente de entre outros ao valor não pago da letra devolvida no valor de € 10 497,25.

10- Em 20/08/2008, a letra de € 11 231,45 é amortizada no valor de € 1 231,45 e reformada para o valor de € 10 000,00.

11- Em 26/09/2008, a letra de € 10 000,00 é amortizada no valor de € 300,00 e reformada para o valor de € 9 700,00.

12- Em 31/10/2008, a letra de € 9 700,00 é amortizada no valor de € 1 300,00 e reformada para o valor de € 8 400,00.

13- Em 31/12/2008, a letra de € 8 400,00 é amortizada no valor de € 1 600,00 e reformada para o valor de € 6 800,00.

14- Em 03/03/2009, a letra de € 6 800,00 é amortizada no valor de € 1 800,00 e reformada para o valor de € 5 000,00.

15- Em 11/05/2009, a letra de € 5 000,00 é amortizada no valor de € 1 000,00 e reformada para o valor de € 4 000,00.

16- Das letras que reformaram a letra inicial não consta o aval da oponente.

17- Os pagamentos realizados destinavam-se a pagar a dívida titulada pela letra mencionada em 1.


3.º

Segundo a opoente "a sentença é nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão."[11]

O artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República impõe que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei". Obedecendo a esse comando constitucional, o n.º 1 do artigo 158.º estabelece que "as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas", acrescentando o artigo 668.º n.º 1 b) que a sentença é nula "quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão".

A fundamentação consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decide de determinada forma. E, no que toca à fundamentação de direito, esta "contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador. (…) Não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão"[12].

Por outro lado, "vem sendo unanimemente entendido que apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui a nulidade prevista na al. b) do nº.1 do dito art. 668.º - cfr. Alberto dos Reis in CPC Anot. Vol. V. pág. 140, Prof. Castro Mendes in Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 806 e (…) os Acs. do STJ de 15-3-74, in BMJ 235-152, de 8-4-75, in BMJ 246-131, de 24-5-83, in BMJ 327-663 e de 4-11-93, in CJ - Acs, do STJ, Ano I, 3, 101."[13]

Ora, examinada a sentença recorrida, nela encontram-se os factos que foram tidos por provados e as razões de direito por que se chegou à decisão que aí figura.

É, portanto, evidente que a sentença está fundamentada, não havendo a esse nível qualquer nulidade. Se nela se decidiu bem é questão diversa.

A opoente também considera que a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 668.º n.º 1 c)[14].

Como é sabido, essa nulidade verifica-se quando "os fundamentos estejam em oposição com a decisão".

Nestes casos "há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença); a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente"[15], com efeito, se a decisão é "a conclusão de um raciocínio" a fundamentação são as "premissas de que ela emerge"[16]. Deste modo "a nulidade da sentença proveniente de os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão consubstancia um vício, puramente, lógico do discurso judicial e não um erro de julgamento, e consiste no facto de os fundamentos aduzidos pelo juiz para neles basear a sua decisão, constituindo o seu respectivo antecedente lógico, estarem em oposição com a mesma, conduzindo a um resultado oposto ao que está expresso nesta"[17].

Segundo a opoente essa nulidade ocorre "por se entender que a dívida inexiste relativamente à Opoente, ou pelo menos que é substancialmente inferior (4.000,00 €) ao valor que consta da letra (11.616,43 €) dada à execução".

O que a Meritíssima Juíza afirma é que "sendo válida a obrigação cambiária primitiva, continua igualmente válido o aval da Opoente, improcedendo a oposição à execução, com este fundamento. Sucede que veio a oponente alegar que após sucessivas reformas, a letra inicialmente emitida foi sendo amortizada mostrando-se actualmente em dívida o valor de € 4000,00. Tal facto não foi impugnado pela exequente pelo que foi considerado assente. Assim sendo, terá de julgar-se parcialmente procedente a presente oposição à execução uma vez que a quantia exequenda é manifestamente inferior à peticionada."

Não se vê que contradição possa existir quando se considera que a dívida não é do montante que foi reclamado, mas, sim, pelos motivos que se expõem, de valor bastante inferior àquele, o mesmo é dizer que não existe a nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º.

No capítulo das nulidades, a opoente considera, por último, que a sentença recorrida está igualmente ferida da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º, onde se dispõe que a sentença é nula quando "o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento", ou seja, o juiz deve "conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções que oficiosamente lhe cabe conhecer"[18].

Para o efeito diz que nela não se apreciou "a questão levantada pela opoente, da ilegal contabilização dos juros à taxa comercial, já que os juros, a serem devidos, deveriam ser contabilizados à taxa legal de 4% ao ano".[19]

Neste ponto assiste inteira razão à opoente, pois a decisão recorrida é de todo omissa relativamente a esta questão, quando quanto a ela tinha que tomar posição, visto que a opoente a suscitou nos artigos 15.º a 20.º da petição inicial desta oposição, leia-se, a sentença padece da apontada nulidade.

E, neste cenário, não se consegue compreender como pode a Meritíssima Juíza a quo, quando confrontada com esta nulidade, afirmar que "nenhuma questão suscitada ficou por apreciar".[20] Na melhor das hipóteses há aqui uma enorme distracção.

Vigorando entre nós o sistema de substituição, consagrado no artigo 715.º do Código de Processo Civil, "a regra é a do tribunal da relação substituir-se ao de 1.ª instância, quando tenha ocorrido alguma das nulidades do art. 668-1, alíneas b) a e)"[21]. Deve, assim, a relação "proceder à apreciação do objecto do recurso se dispuser dos elementos necessários,"[22] o que significa que, se concluir que a opoente é responsável pelo pagamento de alguma quantia à exequente, terá que se apurar se os respectivos juros são os reclamados por esta ou os indicados por aquela.


4.º

O artigo 45.º n.º 1 consagra o princípio de que "toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva".

No caso dos autos, o título dado à execução é uma letra, no valor de € 11 616,43, em que a exequente é subscritora e na qual a opoente deu o seu "aval à firma subscritora".

Essa letra foi objecto de inúmeras reformas e nas letras reformadas não consta o aval da oponente.

Esta sustenta que, face à reforma da letra aqui apresentada como título executivo "é de considerar a existência da referida novação objectiva dado ser da própria operação de reforma da letra a substituição da obrigação cambiária constante da letra inicial pela obrigação cambiária constante da nova letra."[23]

Como é sabido «a novação é uma forma de extinção das obrigações e tem lugar, no aspecto objectivo, quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (art.º 857.º do CC), o que pressupõe, em princípio, uma outra e diversa obrigação e não a simples alteração de algum dos elementos da obrigação existente.

Exige-se ainda, no artigo 859.º do CC, que a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada.

(…) "Quer isto dizer que a vontade de extinguir a obrigação anterior (animus novandi) deve ser declarada de modo directo, inequívoco ou terminante, não se tendo mesmo considerado suficiente a formulação proposta por Vaz Serra no sentido de essa vontade ser "claramente manifestada", pelo que não basta uma declaração tácita ou presumida (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., 237. 3).

"A exigência normativa de que a intenção de novar deva ser expressamente manifestada exclui a suficiência da declaração tácita nesse sentido, ou seja, da manifestação de vontade decorrente de factos susceptíveis de a revelar com toda ou elevada probabilidade (Cfr. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., p. 151).

Como, a propósito do art. 859.º CC citado, anotou o Prof. ANTUNES VARELA:

"Em consequência do disposto neste artigo, não pode ter-se necessariamente como novação a subscrição dum título de crédito, duma letra por ex., posteriormente à constituição da obrigação fundamental. Se for expressamente manifestada a vontade de novar, isto é, de substituir a obrigação antiga por uma nova, verifica-se uma dação em cumprimento ao lado da novação da dívida. Se não houver declaração expressa, presume-se uma datio pro solvendo, nos termos do n.º 2 do artigo 840.º: a dívida antiga só se extingue pela satisfação da dívida de novo contraída". (cfr. ob. cit., p. 151).

Da ausência de animus novandi - e este pressupõe manifestação de vontade expressa nesse sentido - decorre, pois, que a nova obrigação é apenas confirmatória da anterior mas sem extinguir esta, ficando o credor com a faculdade alternativa de exigir qualquer delas para solver a dívida.

Confirmatória da existência da anterior, mas não necessariamente do respectivo montante, porventura reduzido se se verificou, como no caso em apreço, qualquer pagamento ou amortização parcial.»[24]

Regressando ao caso dos autos, nada se encontra nos factos provados que, não obstante as muitas reformas da letra, corresponda a uma manifestação expressa do animus novandi[25], leia-se não há suporte factual que permita concluir que houve a alegada novação.


5.º

Importa, no entanto, não esquecer que a opoente alegou que a quantia titulada pela letra já se encontra paga[26].

Nesta parte, provou-se que a letra que constitui o título executivo apresentado pela exequente foi objecto de várias reformas e que, a dada altura, quando, por força daquela que era, nesse momento (30-4-2008), a última reforma, a letra reformada (já só) ascendia a € 6 100,00, foi, a 5 de Maio de 2008, aceite pela C... uma nova letra no valor de € 10 497,25 para "liquidação do saldo em dívida da sua conta corrente para com a exequente".

Assim, esta letra (a de 5-5-2008) constitui um misto de reforma, na parte em que abrange os € 6 100,00 da anterior letra, e de uma verdadeira nova letra, no que toca aos (mais) € 4 397,25 aí incluídos, pois pretendeu-se com esta letra abranger, não só a dívida que tinha ainda origem na letra inicial de € 11 616,43, e que era à data de € 6 100,00, como também uma outra dívida da aceitante C... de € 4 397,25.

Ora, a responsabilidade da opoente não se pode estender a estes (novos) € 4 397,25; ela tem como limite o que radica na letra onde havia dado o seu aval.

Tendo-se provado que os pagamentos realizados, que ascendem a € 12 747,88, se destinavam a pagar a dívida titulada pela letra que constitui aqui título executivo e estando agora por pagar (somente) € 4 000,00, temos que concluir que estes se referem aos (mais) € 4 397,25 que foram incluídos na letra emitida a 5 de Maio de 2008, pelos quais a opoente não responde.

Portanto, tal como esta sustenta, no que se refere à letra de € 11 616,43, onde a opoente tinha dado o seu aval, já nada está em dívida, o que significa que, a esse título, a exequente nada lhe pode exigir.

Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento da questão relativa à taxa de juros que é aplicável à obrigação cambiária que se pretendia executar.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso, bem como a presente oposição à execução, julgando-se esta extinta quanto à executada A ... e revogando-se a decisão recorrida.

Custas pela exequente.

                                      

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                                Nunes Ribeiro

                                                               Hélder Almeida


[1] Cfr. artigo 5.º da petição inicial da oposição.
[2] Cfr. artigo 14.º da petição inicial da oposição.
[3] Cfr. artigo 11.º da petição inicial da oposição.
[4] Cfr. artigos 15.º e 16.º da petição inicial da oposição.
[5] Cfr. folha 32.
[6] Cfr. folhas 34 a 36.
[7] Cfr. folha 51.
[8] Cfr. folhas 79 e 80.
[9] São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[10] Cfr. folha 40.
[11] Cfr. conclusão 30.ª.
[12] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 688.
[13] Ac. Rel. Coimbra de 3-11-94, Processo 9311, Ref. 9657/1994, www.colectaneade jurisprudência.com. Neste sentido pode também ver-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 687, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, Ac. STJ de 08-01-2009 no Proc. 08B3510, Ac. STJ de 18-03-2010 no Proc. 10908-C/1997.L1.S1 e Ac. Rel. Lisboa de 04-03-2010 no Proc. 7572/07.7TBCSC-B.L1-6, estes em www.gde.mj.pt.
[14] Cfr. conclusão 31.ª.
[15] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, pág. 690.
[16] Alberto dos Reis, Comentário, Vol. II, 1945, pág. 172 e 173.

[17] Ac. STJ de 20-10-09 Proc. 3763/06.6.YXLSB.S1, www.gde.mj.pt.
[18] Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, obra citada, 2.ª Edição, pág. 704.
[19] Cfr. conclusão 32.ª.
[20] Cfr. folha 75.
[21] Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, obra citada, pág. 131.
[22] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime, pág. 306.
[23] Cfr. conclusão 8.ª.
[24] Ac. STJ de 17-12-2009 no Proc. 1583/06, Ref. 8123/2009, em www.colectaneade jurisprudência.com. Neste sentido ver Ac. do STJ nos Proc. 087805, Proc. 98B033, Proc. 088003, Proc. 03A2320, Proc. 074992, em www.gde.mj.pt.
[25] O que, aliás, não chegou a ser alegado.
[26] Cfr. artigo 5.º da petição inicial da oposição.