Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1606/20.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: ARRESTO
DEVEDOR INSOLVENTE
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PENDÊNCIA
Data do Acordão: 09/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 47, 88, 90, 128 CIRE, 604, 622 CC
Sumário: I – A pendência dum processo de insolvência interfere com o desenvolvimento dos pleitos judiciais em que o devedor/insolvente é réu, interferências que se manifestam desde a entrada em juízo do pedido de insolvência até ao encerramento do respetivo processo e que afetam tanto as execuções como as ações.

II – Durante a pendência do processo de insolvência, os créditos sobre o insolvente não podem ser exercidos senão nos termos do CIRE e todo o ativo tem que ser reunido no âmbito do processo de insolvência, não podendo um credor, durante a pendência do processo de insolvência, intentar procedimentos que visem fazer-se pagar só ele e em exclusivo por este ou aquele bem que não foi apreendido para o ativo.

III – Assim, não pode ser intentado, contra alguém que tem um processo de insolvência a correr termos, um arresto, que é preliminar duma ação que tem como fim útil fazer ingressar no património de tal insolvente bens que estão escondidos na esfera jurídica duma terceira pessoa (duma sociedade, cuja personalidade jurídica se pede que seja desconsiderada), tendo em vista executar tais bens e lograr o pagamento dos créditos que detém sobre o insolvente.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

F (…), Lda., com sede (…), (...) , intentou o presente procedimento cautelar de arresto contra R (…)  com residência (…) em (...) , e contra G (…), SA, com sede (…), (...) , peticionando que fosse decretado o arresto “(…) como preliminar de ação declarativa por desconsideração da personalidade jurídica e em consequência ser ordenado arresto sem audiência prévia dos requeridos (…)” sobre os móveis, imóveis e contas bancárias a aplicações financeiras que identifica.

Alegou, para tal, em síntese:

Forneceu, no âmbito do seu comércio, a S (…), Unipessoal, Lda., tendo, em 29/04/2029, celebrado com ela um acordo de pagamento, segundo o qual o preço dos fornecimentos efetuados pela requerente seria pago em 35 prestações sucessivas, as 34 primeiras no valor de € 15.000,00 e a última no valor de € 17.008,26, para o que foram entregues letras de câmbio (por cada uma das prestações) sacadas sobre a S (…) e avalizadas pelo 1.º requerido, gerente da S (…).

Não obstante tal acordo de pagamento, não foram efetuados, quer pela S (…), quer pelo 1.º requerido, quaisquer pagamentos, encontrando-se o montante global de tal dívida, de € 527.008,26, por liquidar; acrescendo despesas com a devolução das letras e de encargos bancários, o que, descontada uma nota de crédito de devolução de mercadoria, perfaz a quantia de € 529.787,93, a que se somam juros de € 9.449.09, ascendendo assim o valor global em dívida a € 539.237,02.

Assim – e tendo entretanto a S (…) sido declarada insolvente em 16/12/2019, no tribunal de comércio de Alcobaça, cifrando-se o seu passivo em € 59.023.242,59 e sendo parco o ativo/património para lhe fazer face – a requerente intentou execução (nos juízos de execução de Alcobaça) contra o 1.º requerido, tendo em vista o pagamento de tal quantia, no âmbito da qual também não obteve qualquer pagamento, sucedendo que entrementes também o 1.º requerido foi declarado insolvente, em 18/02/2020, em processo a correr termos nos juízos de comércio de Lisboa, processo em que, pese embora os créditos reclamados (incluindo o aqui referido) ascenderem a € 25.484.342,01, apenas foi identificado (e nem sequer apreendido), em termos de ativo, um veículo ciclomotor.

Sucede, segundo a requerente, que “o 1.º requerido detém património, contudo, por forma a ludibriar os credores, assim não cumprindo as obrigações a que se comprometeu, alocou o património na aqui 2.ª requerida[1]; que, ainda segundo a requerente, “é um mero instrumento para esconder o seu património e ludibriar os seus credores[2].

E, nesta linha de raciocínio, alega um conjunto de factos e circunstâncias que, a seu ver, devem conduzir, em termos jurídicos, à desconsideração da personalidade jurídica da 2.ª requerida, G (…) “(…) como meio de combate à fraude que presidiu à sua criação e ao objetivo da mesma, pelo que caído o biombo da personalidade jurídica, deve o seu administrador de facto ser responsabilizado ante os credores”[3]; afirmando que o património da 2.ª requerida se encontra, em termos meramente aparentes, na esfera jurídica desta, “sendo que que o único objetivo era que tal património não constasse da esfera do devedor e aqui 1.º requerido, por forma a obstar a que a credora e aqui requerente, obtenha a satisfação do seu crédito” e, concluindo, entre outras coisas, que “o património que está efetivamente, em nome do 1.º requerido, do qual é titular é inexistente, sendo que todo o seu restante património, se encontra na esfera jurídica da 2.ª requerida (…)”[4]


Conclusos autos, o Exmo. Juiz proferiu despacho de indeferimento liminar.
Tendo, na fundamentação, exposto o seguinte raciocínio jurídico:

(…) constato que a presente providência é intentada contra um cidadão que foi declarado insolvente, por decisão, já transitada, proferida no âmbito do processo 1913/20.9T8Lsb, e em cujo âmbito foram reclamados e reconhecidos os créditos aqui invocados; pretende-se o pagamento dos invocados créditos através de bens, alegadamente, próprios do requerido singular, simuladamente transferidos para a titularidade da requerida sociedade. (…)

O artigo 47º nº 1 do Decreto-lei nº 53/2004 de 18 de Março, código da insolvência e da recuperação de empresas dispõe que «declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio» - sendo os seus créditos considerados, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, como «créditos sobre a insolvência». Daqui decorre, desde logo, que, declarada a insolvência, os titulares de direitos de crédito sobre a insolvente deixam de ser credores do devedor insolvente, passando a ser credores da insolvência – ocorrendo, assim, desde logo, uma inutilidade, porquanto o devedor deixa de ser o réu/demandado, para passar a ser a massa insolvente.

Por outro lado, o artigo 90º do Decreto-lei nº 53/2004 de 18 de Março, conhecido como Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dispõe que «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos deste Código, durante a pendência do processo de insolvência» - o que impõe a obrigatoriedade dos credores da insolvente exercerem os seus direitos, durante a pendência do processo de insolvência, segundo os meios processuais regulados no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que, por seu turno, prefigura uma impossibilidade. O que, aliás, presidiu à jurisprudência obrigatória constante do acórdão nº 1/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no nº 39 de 25 de Fevereiro, do jornal oficial.

Sempre importaria acrescentar que se considera mas que – sempre ressalvando o respeito naturalmente devido por diferente ponto de vista – se não compreende a alegação segundo a qual “não estamos perante uma situação de resolução de atos conforme prevê o artigo 120º do C.I.R.E.”; outrossim, afigura-se-me que apenas a falta de conhecimento dos factos poderia levar o administrador a não lançar mão do referido preceito, em benefício da massa insolvente e, assim, da pluralidade dos seus credores, aí estando incluídas a aqui requerente, evidentemente, mas não podendo nem devendo vir a ser a única beneficiária. Nestes termos, e além do mais, importaria dar conhecimento das alegações da requerente ao administrador, para os fins que ele mesmo entendesse adequados.

Assim, inútil e / ou impossível que se torne a demanda do aqui requerido, inconsequente igualmente se verifica ser a presente, enquanto providência conservativa dos bens sobre os quais iria ser exercida essa demanda.

Nestes termos, ocorreria uma extinção da instância, por impossibilidade ou inutilidade da lide.

A demanda da sociedade que, segundo as alegações da requerente, é uma mera criação do requerido individual, agindo em abuso de direito e ou com desconsideração dos preceitos inerentes à personalidade coletiva, não se mostra, a meu ver, justificada, pois que, sendo insubsistentes os atos pelos quais a mesma veio a ser – apenas formalmente – titular dos bens a arrestar, estes pertencem, única e efetivamente, ao requerido individual, como visto, insolvente. Ou seja, suspensa que será a execução, para que os créditos sejam reclamados no processo de insolvência – como foram – aí deverá ocorrer, sob direção do administrador, toda a atividade necessária à recuperação dos bens pela massa. Caso, diferentemente, se venha a entender que os bens, afinal, estão validamente na titularidade da sociedade aqui requerida, então, contra ela, não procede o arresto, pois que, confessadamente, a mesma não é devedora da empresa aqui requerente.

Assim, e por via do disposto nos art.ºs 226º nº 4 alínea b) e 590º nº 1 do código de processo civil, e também por esta via, importa proferir decisão indeferindo liminarmente a presente providência. (…)”


Inconformada com tal decisão, interpõe a requerente o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “ordene que os autos sigam os seus ulteriores termos, com as demais consequências legais.”
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

iv. Atendendo ao exarado no Requerimento inicial de interposição da providencia cautelar, somos do entendimento que, atendendo ao exarado no requerimento de providência cautelar, se encontram preenchidos todos os requisitos exigidos legalmente para que a mesma seja decretada;

v. O Tribunal a quo, como supra alegado, fundamentou, também, o indeferimento liminar da providência, com o artigo 47.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante designado por C.I.R.E, que “declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”;

vi. No entanto, no passado dia 04/06/2020, no âmbito do processo n.º 1913/20.9T8LSL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 6, foi proferido despacho de proposta de declaração de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente;

vii. Sendo a proposta do Administrador de Insolvência, conforme resulta do Relatório do 155.º do C.I.R.E, que adiante se junta como Doc. 1 e cujo teor se dá integralmente por reproduzido para os devidos efeitos legais, pelo Encerramento do Processo por Insuficiência e pela Exoneração do Passivo Restante;

viii. Estatui o n.º 1, do artigo 233.º do C.I.R.E, que: “1 - Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência:

a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte;

b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência;

c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;

d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.”

ix. O desfecho que este processo de Insolvência aguarda é o encerramento por Insuficiência de massa, deste modo, não é plausível que à aqui Apelante seja vedado o direito de ver satisfeito o seu crédito;

x. Com o Encerramento do processo por insuficiência de massa, a verdade é que o administrador de insolvência, não detém de competência para aplicar o instituto da Resolução em benefício da massa insolvente, previsto nos artigos 120.º e seguintes do C.I.R.E;

xi. O encerramento do processo de Insolvência a determina a ineficácia das resoluções em benefício da massa insolvente;

Debrucemo-nos acerca do sequente:

xii. Consta no artigo 127.º, n.º 1 que é vedada aos credores a instauração de novas ações de impugnação pauliana de atos praticados pelo devedor cuja resolução tenha sido declarada pelo administrador de insolvência;

xiii. A contraio sensu, o legislador permite aos credores instaurar novas ações de impugnação pauliana dos atos praticados pelo devedor, mas que não tenham sido resolvidos em benefício da massa insolvente;

xiv. In casu, a prática dos atos por parte do Apelado já não se encontram abrangidos sobre o “período suspeito” do C.I.R.E, nem pelos prazos da impugnação pauliana;

xv. A Apelante não tem ao seu alcance nenhuma outra forma para salvaguardar e recuperar o seu crédito, a não ser pela Presente Providencia Cautelar e consequente ação principal;

xvi. Pelo que, sendo declarado o Encerramento do Processo de Insolvência pode aqui Apelante exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições;

xvii. Não pode o Tribunal permitir que o Apelado, use o véu da insolvência para prejudicar a aqui Apelante, continuando a usufruir de todo o património que ardilosamente colocou sobre a alçada da aqui Apelada;

xviii. Pelo que a única decisão que cumpria ao Tribunal a quo proferir, salvo melhor entendimento, seria ordenar que os autos prosseguissem os seus ulteriores termos, cfr. o previsto pelos artigos 365.º e seguintes, do C.P.C, e, consequentemente, para a fase de produção de prova;

DA (IN)JUSTIFICADA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

xix. Está demonstrado pelo Requerimento Inicial que, o Apelado – (…) – desde a criação da sociedade G (…), aqui Apelada, tem vindo a transmitir património a seu favor;

xx. A verdade é que o Apelado não é Administrador de direito da Apelada, mas como está demonstrado pelos documentos, em concreto documento 88 junto com o Requerimento Inicial, o mesmo comporta-se como Administrador de facto e como dono e legitimo possuidor dos bens que estão na esfera jurídica da Apelada;

xxi. Como já ficou demonstrado no Requerimento Inicial o modus operandi do Apelado e o facto de utilizar sociedades comerciais como forma de esconder património são reveladores do seu intuito de não proceder ao pagamento de qualquer quantia à Apelante, e, bem assim, de obstar por todos os meios possíveis a que esse pagamento venha ocorrer;

xxii. O Apelado pode, a qualquer momento, fazer com que a Apelada G (…) aliene o seu património;

xxiii. Deste modo, urge arrestar os bens da Apelada, garantindo assim, com a sua apreensão judicial, que os mesmo não serão dissipados e que podem vir a responder pela dívida do Apelado, assegurando o efeito útil da ação a propor para esse efeito;

xxiv. A desconsideração colhe o seu fundamento na figura do abuso de direito, prevista no artigo 334.º do Código Civil, na medida em que assenta na constatação de que existiu um exercício inadequado de uma faculdade que ultrapassou manifestamente o seu “fim social ou económico”;

xxv. Neste sentido, o Acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 07 de novembro de 2017, proferido no âmbito do processo 919/14.4T8PNF.P1.S1:

“I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.

II - Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam”.

xxvi. Essas situações tratam-se, como in casu, de um determinado agente (o Apelado R (...) ) usa indevidamente em seu benefício a personalidade jurídica coletiva atribuída a uma determinada entidade (a Apelada G (…)) para prosseguir finalidades inaceitáveis (ocultar património), assim utilizando abusivamente esses conceitos e defraudando simultaneamente a lei;

xxvii. No caso sub júdice, verificam-se todos os requisitos do instituto da desconsideração;

xxviii. A aplicação da figura da desconsideração é a única medida possível para que o património da Apelada G (...) , que na verdade pertence ao Apelado R (...) , responda pelas dívidas à Apelante;

xxix. Seguindo os ensinamento de ABRANTES GERALDES: “Diversa de todas as situações referenciadas é aquela em que só na aparência se verifica uma autonomia jurídica entre o devedor e o titular dos bens, como ocorre em situações em que a doutrina e a jurisprudência qualificam como de “desconsideração da personalidade jurídica. Apurados os factos integrantes da situação de abuso de direito de personalidade jurídica, pode o credor requerer o arresto de bens para garantia do crédito de pessoa singular, ainda que formalmente se encontrem inscritos na esfera jurídica de uma sociedade oportunamente constituída para iludir os credores”;

xxx. Com o decretamento da Providencia Cautelar, pretende a Apelante atacar o património que se encontra na esfera jurídica da Apelada – G(…),

xxxi. Por forma a que esse património responda pelo crédito da aqui Apelante;

xxxii. Como supra dito, a Apelada é uma marioneta do Apelado, servindo unicamente para deter e ocultar património;

xxxiii. Com a providencia de Arresto e posterior ação principal, pretende a Apelante que seja desconsiderada a personalidade da sociedade e com fundamento nesta, condenar o Apelada – G (...) , ao pagamento do crédito em dívida à Apelante;

xxxiv. Pelo que, neste caso, é indiferente que o requerido (…) esteja ou não insolvente e lhe tenha sido, ou não, deferido o pedido de exoneração do passivo restante,

xxxv. À imagem do que se verifica no instituto da impugnação pauliana em que a declaração de insolvência não afeta a prossecução ou instauração de tal ação.

Dos requisitos para o decretamento do arresto e da aplicação do artigo 362.º, n.º 4 do C.P.C:

xxxvi. Nos termos do n.º 1 do artigo 391.º do CPC “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”;

xxxvii. O primeiro requisito, o crédito da Apelante encontra-se provado e reconhecido;

xxxviii. O segundo requisito, tendo em conta o que já foi descrito no Requerimento Inicial, não se deixará de concluir que o Apelado (…), tudo fez e fará para frustrar qualquer possibilidade de ressarcimento da Apelante, pelo que, na sua qualidade de Administrador de facto da Apelada, poderá, a qualquer momento, promover à dissipação de património;

xxxix. In casu, o justo receio de perda da garantia patrimonial é fundamentado em primeira linha pelo comportamento de carácter nocivo, deliberado e propositado por parte do Apelado R (...) , que transferiu para a esfera jurídica da Apelada G (…) parte do seu património pessoal, com o intuito de pôr a salvo os seus bens pessoais, em claro prejuízo dos credores;

xl. Relativamente às “dúvidas” do Tribunal a quo do disposto no artigo 362.º, n.º 4 do C.P.C, as mesmas não se afiguram razoáveis;

xli. Nos autos foram invocados novos factos para a justificação do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito da apelante;

xlii. Deste modo, não existirá repetição de providencia cautelar, uma vez que a Apelante se limitou a intentar uma outra providencia alegando factos novos por forma a suprir a insuficiência da alegação inicial, por forma a que esses novos factos integrem a respetiva causa de pedir;

xliii. Neste sentido, veja-se o seguinte excerto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de janeiro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 3589/08.2YYLSB-G.L1.S1:

I - Tendo o procedimento cautelar de arresto, inicialmente intentado, sido indeferido por falta de prova de um dos requisitos – justo receio de perda patrimonial –, não tem aplicação o art. 362.º, n.º 4, do CPC, na parte em que estatui que «não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado».

II - Não existe repetição de providência quando o requerente se limita a intentar uma outra alegando factos novos a integrar a respectiva causa de pedir, suprindo a insuficiência da alegação inicial.

Por tudo o exposto,

xliv. A douta Sentença, da qual se recorre e que judiciou pelo indeferimento liminar da providencia cautelar de Arresto, proferida pelo Tribunal a quo, assenta num incorreto julgamento do artigo 90.º do C.I.R.E, porquanto, o processo de insolvência será encerrado por insuficiência de massa;

xlv. Mal andou, também, o Tribunal a quo, ao lançar duvidas acerca da possível aplicação do artigo 362.º, n.º 2 do C.P.C, porquanto, neste novo requerimento Inicial são alegados novos factos por forma a justificar o justo receio;

xlvi. E por fim, mais uma vez, decidiu mal o Tribunal a quo, ao considerar que não se encontram justificados o abuso de direito e a desconsideração da personalidade jurídica, porquanto se encontram verificados os requisitos do instituto da desconsideração;

xlvii. Desta forma, em face do supra alegado, deverão V. Exas, mediante a reapreciação do requerimento inaugural, tudo no mais alto e ponderado critério, revogar a douta Sentença, da qual ora se recorre, fazendo-a substituir por uma decisão que ordene que os autos prossigam os seus ulteriores termos, (cfr. artigos 365.º e seguintes, do C.P.C), e, consequentemente, se prossiga para a fase de produção de prova;

(…)”

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

A – Os factos pertinentes são os que já emergem do relatório precedente.

B – Quanto ao direito:

Afirma a requerente/apelante, na sua conclusão XVI, que, “sendo declarado o encerramento do processo de insolvência (do aqui 1.º requerido), pode a aqui apelante exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições”.

É exatamente assim e faz sentido fazer uma tal afirmação (a partir e com base no que se dispõe no art. 233.º/1/c) do CIRE) por até ali – até ser declarado o encerramento do processo de insolvência – os credores terem restrições no exercício dos seus direitos contra o devedor/insolvente.

Ou seja – não estando ainda encerrado o processo de insolvência pendente contra o 1.º requerido[5] – o que se afirma na conclusão XVI denuncia a resposta, em sentido diverso do pretendido pela apelante, à questão que constitui o objeto da apelação.

Expliquemo-nos:

Começando por referir que não está em causa – não faz parte do objeto da apelação – a bondade da construção jurídico-substantiva desenhada pela requerente/apelante.

Ao contrário do que se refere na conclusão IV, não está aqui (na apelação) em causa apurar se, “(…) atendendo ao exarado no requerimento de providência cautelar, se encontram preenchidos (em termos de alegação) todos os requisitos exigidos legalmente para que a mesma seja decretada”.

A questão que constitui o objeto da apelação situa-se num momento anterior – não exige que entremos e nos pronunciemos (seja em que sentido for) sobre a substância da providência cautelar – e traduz-se em saber se, contra alguém que tem um processo de insolvência a correr termos, pode ser intentado um arresto, que é/será preliminar duma ação que tem como fim útil fazer ingressar no património de tal insolvente bens que estão escondidos na esfera jurídica duma terceira pessoa (duma sociedade, cuja personalidade jurídica se pede que seja desconsiderada), tendo em vista, naturalmente, executar tais bens[6] e assim lograr o pagamento dos créditos que se detém sobre o insolvente (e que não é verosímil que venham a obter pagamento através do ativo que lhe foi apreendido no processo de insolvência).

Como resulta do relato inicial, é isto, fora de qualquer dúvida, que é o presente arresto, a ação principal e a consequente execução: como supra se transcreveu, a requerente/apelante alega, por várias vezes e de várias maneiras, que o património da 2.ª requerida se encontra, em termos meramente aparentes, na esfera jurídica desta, “sendo que que o único objetivo era que tal património não constasse da esfera do devedor e aqui 1.º requerido, por forma a obstar a que a credora e aqui requerente, obtenha a satisfação do seu crédito”; ou seja, o que a requerente/apelante pretende é que o tal património que está escondido na esfera jurídica da 2.ª requerida responda pelas dívidas do insolvente, ou seja, satisfaça os seus créditos sobre o 1.º requerido e insolvente.

Trata-se de pretensão – sem entrar, repete-se, na bondade/substância da providência cautelar – perfeitamente legítima, mas que, enquanto o processo de insolvência do 1.º requerido não estiver encerrado, apenas pode ser lograda no âmbito do processo de insolvência a correr contra o mesmo.

É o que resulta do art. 90.º do CIRE, segundo o qual “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.

Importa ter bem presente que o processo de insolvência interfere no desenvolvimento dos pleitos judiciais em que o devedor/insolvente é parte, interferências que se manifestam desde a entrada em juízo do pedido de insolvência até ao encerramento do respetivo processo; que decorrem e têm subjacente o princípio da “par conditio creditorum” (art. 604.º/1 do C. Civil), que se destina a assegurar que os credores concorrem em condições de igualdade[7] ao pagamento dos seus créditos através da liquidação do ativo do insolvente; e que afetam tanto as execuções como os ações.

Efetivamente, não é por o CIRE não regular de forma sistematizada – ao contrário do que faz com as execuções, no art. 88.º do CIRE – os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações declarativas em que o insolvente é réu que as ações declarativas não são afetadas (como aliás resulta do Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2014, de 25-02, respeitante, é certo, às ações intentadas antes do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência, em que pacificamente se reconhece a interferência[8] que o processo de insolvência causa nas ações declarativas pendentes destinadas a obter o reconhecimento dum crédito sobre o devedor/insolvente).

É que, no âmbito do processo de insolvência, é atribuído aos credores o poder de interferir na verificação do passivo, através do apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos e das ações de verificação ulterior de créditos[9]; assim como lhes é permitido interferir no apuramento do ativo e na liquidação de bens; tudo dentro da vocação universalista do processo de insolvência e do princípio da plenitude da instância falimentar.

Por outras palavras, durante a pendência do processo de insolvência, os créditos sobre o insolvente não podem ser exercidos senão nos termos do CIRE e todo o ativo (que há-de responder pelo passivo resultante dos créditos reclamados) tem que ser reunido no âmbito do processo de insolvência, não podendo um credor, durante a pendência do processo de insolvência, intentar procedimentos que visem fazer-se pagar só ele e em exclusivo por este ou aquele bem que não foi apreendido para o ativo [10].

Ora, no fundo e em síntese, é justamente isto que a requerente/apelante visa com o arresto, a ação principal e a consequente exequente: ser só ela a fazer-se pagar pelos bens que diz estarem só na aparência no património da 2.ª requerida, uma vez que fazem parte do património do 1.º requerido, ou seja, quer ser só ela a fazer-se pagar por um ativo que diz ser do 1.º requerido/insolvente, ativo que, segundo o referido princípio da “par conditio creditorum”, se destina a assegurar o pagamento de todos os credores do 1.º requerido.

Ademais, um arresto, para além de ser instrumental dum processo executivo, é já de per si um “ato/diligência executiva”, uma vez que consiste numa preventiva apreensão judicial (a que são aplicáveis as disposições relativas à penhora - 391.º/2 do CPC) de bens do devedor (o 1.º requerido), capaz de antecipar os efeitos derivados da penhora (art. 622.º do C. Civil), tendo em vista garantir o efeito útil que o credor (a aqui requerente) procura obter através da execução da sentença condenatória proferida na ação declarativa

Mas, claro está, dos art. 88.º e 90.º do CIRE (e também do art. 128.º/5) apenas decorre que o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período da pendência do processo de insolvência se tem que fazer “em conformidade com os preceitos do CIRE”, mas não se confina o exercício desses direitos a esse período, nem regula tal exercício antes ou depois daquele período[11].

Significa isto que não se está a vedar à apelante, ao contrário do que argumenta nas suas conclusões, o direito de ver satisfeito o seu crédito, apenas se diz que a mesma está impossibilitada de o fazer por este meio processual – arresto, seguido de ação principal e execução – enquanto, como é o caso, o processo de insolvência contra o 1.º requerido não estiver encerrado.

Em síntese, a nosso ver e com todo o respeito por opinião diversa, a requerente/apelante precipitou-se ao intentar o presente arresto: devia ter aguardado pelo encerramento do processo de insolvência contra o 1.º requerido[12].

Configura pois o que se acaba de expor uma exceção dilatória (art. 278.º/1/e) do CPC)[13] que, na fase liminar em que nos encontramos, conduz ao indeferimento liminar[14].

Improcede pois “in totum” o que a apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam.


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III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação interposta e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


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Coimbra, 21/09/2020

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 26.º da PI.
[2] Art. 39.º da PI.
[3] Art. 92.º da PI
[4] Arts. 105.º e 106.º da PI.

[5] Nem no momento da produção das alegações recursivas – como se refere na conclusão IX, há ainda apenas proposta de encerramento do AI, por insuficiência da massa insolvente – e muito menos na data da propositura do arresto.
[6] Ou seja, executar o devedor/insolvente.

[7] Sem prejuízo, claro está, dos que gozem de causas de preferência.
[8] A divergência que suscitou a fixação de jurisprudência teve apenas a ver com o momento a partir do qual a instância de tais ações deve ser julgada extinta.

[9] Segundo o atual art. 128.º/5 do CIRE, “mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”; mesmo uma sentença a reconhecer um crédito contra o devedor/insolvente não tem força executiva no processo de insolvência (só a sentença que, neste processo, julgar verificado esse crédito terá essa força), ou seja, o legislador quis conferir a todos os credores a possibilidade de discutir o passivo do insolvente, na medida em que a verificação deste acaba por interferir com o grau de satisfação de cada um dos créditos. Em contrapartida, as decisões proferidas no processo de insolvência têm força executiva dentro e fora deste processo, como resulta do art. 233.º/1/c) do CIRE.

[10] A única exceção que o CIRE estabelece a esta regra é para a impugnação pauliana (art. 127.º do CIRE), o que, face à ineficácia relativa dos seus efeitos (cfr. Ac. desta Relação de Coimbra de 11/04/2019, confirmado por Ac. STJ de 17/12/2019, ambos in ITIJ) se compreende, porém, mesmo aqui, caso haja sido instaurada resolução em benefício da massa por parte do AI, o CIRE condiciona-a/veda-a. E não é por uma ação (no caso, a principal) não ser uma resolução em benefício da massa que se pode dizer (como faz a requerente) que não se lhe aplica o exercício “nos termos do CIRE”.

[11] De tais preceitos não decorre que a não reclamação do crédito no processo de insolvência se traduza numa renúncia ao seu exercício, tal como não decorre que, após o encerramento da insolvência, os credores não possam acionar/executar os créditos não reclamados (tal possibilidade está até pressuposta no art. 217.º/1 do CIRE). Sem prejuízo de, sendo o devedor uma sociedade e seguindo o processo de insolvência para liquidação, isso implicar a extinção do devedor (cfr. 234.º/3 do CIRE).

[12] Assim como deve – sendo verdade tudo o que alega no presente arresto – começar por procurar evitar que seja concedida e exoneração do passivo restante ao 1.º requerido (pedido de exoneração que é referida no relatório do AI que junta), uma vez que, se tal acontecer, pode um meio processual como o presente vir a revelar-se totalmente inútil: além de, nos termos do art. 242.º/1 do CIRE, não poder executar o devedor durante o período da cessão, sendo esta concedida, o seu crédito extingue-se, nos termos do art. 245.º/1 do CIRE.

[13] A “impossibilidade da lide” não é superveniente (é sim inicial), não sendo assim enquadrável no art. 277.º/e) do CPC.

[14] Exceção que se estende à 2.ª requerida, uma vez que os bens a arrestar/penhorar são, na tese da requerente, do 1.º requerido e devedor/insolvente.