Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1922/07.3TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: SEGURO DE VIDA
MÚTUO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.437, 455, 458 C COMERCIAL, 342 CC, DL Nº 94-B/98 DE 17/4, DL Nº 176/95 DE 26/7
Sumário: 1. O seguro de vida é o contrato pelo qual o segurador recebe do tomador do seguro (o segurado), por uma ou mais vezes, certa quantia (prémio) e promete pagar àquele ou a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de vida ou de morte de uma pessoa (pessoa segura).

2. No seguro de vida em caso de morte, o segurador recebe do tomador do seguro (o segurado), certa quantia (prémio) e promete pagar a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de morte de uma pessoa (pessoa segura).

3. Configura seguro de vida em caso de morte, na modalidade de seguro temporário, o seguro sobre a vida do mutuário que ocorre quando o segurador assume a obrigação de pagar ao credor do mutuário, caso este morra antes de o empréstimo se encontrar inteiramente por liquidar, uma soma igual ao capital por liquidar no momento da morte.

4. Neste tipo de contratos, o segurado e a pessoa segura podem ser a mesma, ou seja, uma única pessoa pode desempenhar os papéis de tomador, de segurado e de pessoa segura, sendo beneficiário um terceiro.

5. Convencionando-se nas condições gerais da apólice que “ estão excluídos do presente contrato os riscos decorrentes de acto criminoso do Segurado ou do Beneficiário, de que resulte a morte da Pessoa Segura “ – não fica coberto o risco de morte resultante de acidente de viação do segurado/pessoa segura, em virtude de acto criminoso por este cometido - prática do crime de condução em estado de embriaguez. ( 1,47 g/l).

6. O autor tem o ónus de alegar e provar a existência do seguro, o falecimento do segurado, que o beneficiário é a entidade mutuante e ter suportado determinados pagamentos a esta.

7. A Seguradora tem o ónus de alegar e provar que o segurado cometeu um acto criminoso de que resultou a morte da pessoa segura.

8. Uma vez feita esta prova, cabe ao autor provar que a taxa de álcool no sangue ( 1,47 g/l ) não foi a causa do acidente e da morte.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. J (…), residente em ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra A (…), com sede em ..., pedindo:

A) Seja admitido o chamamento do Banco (…);

B) Seja a ré condenada a pagar ao chamado Banco (…) o montante que se encontrar em divida na data da sentença, relativamente ao mútuo contraído pelo autor e pela falecida esposa;

C) Seja a ré condenada a indemnizar o A. no valor do montante pago pelo mesmo ao Banco (…), entre 31 de Outubro de 2004 e a presente data, no montante de 22.680 €, ou noutro que se apurar nos termos do disposto no artigo 569º do Código Civil;

D) Seja a ré condenada a indemnizar o A. no valor do montante pago pelo mesmo ao Banco (…) entre a presente data e até efectivo e integral pagamento pela ré ao Banco (…) do montante pedido em B), acrescido de quaisquer responsabilidades contingentes ao mesmo mútuo também pagas pelo autor (taxas, impostos, juros, etc.), em montante a liquidar a final;

E) Condenar-se a ré a indemnizar o A. no valor do montante pago pelo mesmo à própria ré desde a data do acidente até a presente data, no montante de 643,83 €;

F) Condenar-se a ré a indemnizar o autor no valor do montante pago pelo mesmo, a titulo de seguro de vida adstrito ao mútuo bancário, entre a presente data e a data da sentença, em valor a liquidar a final;

G) Ser a ré condenada a pagar ao autor os juros moratórios devidos sobre as quantias ilíquidas pedidas nas alíneas C) e D).

Alegou para tanto, e em suma, que: no ano 2000, e no âmbito de construção da casa onde reside actualmente com os seus filhos menores, nomeadamente por força do mútuo contraído perante o então Banco (…), S.A., (actualmente no Banco (…) e com o número ...) para essa mesma construção, o autor e a sua esposa contrataram duas apólices, ambas de seguro de vida; a apólice que aos autos importa, em que era segurado e pessoa segura a sua esposa R (…), foi celebrada por contrato outorgado em 19-01-2000, com o nº (...), e sempre foram pagos tempestivamente os respectivos prémios, sendo o capital seguro o montante de 99.759,58 €; o seguro de vida garante o pagamento ao beneficiário Banco (...) do montante que se encontrar em dívida à data do óbito ou invalidez absoluta e definitiva, por um período de 30 anos, devendo o remanescente ser pago ao autor e, na sua falta, aos filhos do casal; o Banco (…) foi adquirido pelo Banco (…) S.A., pelo que, actualmente, o (…) é o beneficiário de tal apólice; no dia 31 de Outubro de 2004, cerca das 03h00, o autor ficou a fechar o bar que explorava com a mulher, e a arrumar o mesmo, enquanto a sua falecida esposa, bem como uma amiga com quem estavam, C (…), saíram imediatamente para o local onde moram, (...), em ...; a estrada de ligação entre a (B...) e (...) é a E.N. 1, distando as localidades cerca de 2 km, e a estrada é, na sua maioria, uma recta, sendo que nos dias precedentes, foram realizadas obras de repavimentação nesse local, pelo que o piso estava muito alto comparativamente à berma da estrada; por razoes não apuradas, o veiculo conduzido pela falecida R (…), ao fim de poucas centenas de metros de ter iniciado a condução, terá resvalado para a berma do lado direito, no sentido de marcha em que seguia, o que a levou a mudar bruscamente de direcção, sendo que por força do piso estar muito molhado, o carro entrou em despiste e acabou por embater nos rails de protecção do lado contrário ao do seu sentido de marcha; o veículo capotou, imobilizou-se fora da faixa de rodagem, sendo que R (…) foi cuspida do automóvel e sofreu graves lesões na coluna e na cabeça, acabando por falecer no Hospital de (...), em (...), para onde foi transportada; o autor participou o acidente à ré, prestou a esta todas as informações, e a mesma informou o autor que não era sua intenção proceder ao pagamento da quantia segurada por haver um crime e se verificar a situação de exclusão prevista no artigo 3º das Condições Especiais; a apólice em questão, prevendo o pagamento da quantia, respeitante ao mútuo do (…), que se encontrasse em dívida na data do óbito da pessoa segura, assegurava àquele o ressarcimento integral do seu crédito, e ao autor e filhos, a desoneração da casa de morada de família e do pagamento mensal da prestação devida; a ré, ao não proceder ao pagamento dessa quantia, tem provocado danos ao autor, concretamente, tudo o que pagou e continua a pagar ao B (…), desde a data do óbito da esposa, a título de prestações do mútuo, as despesas contingentes a este (impostos, taxas diversas e juros), e o próprio seguro de vida do autor, também outorgado com a ré, com o mesmo fim e nas mesmas condições; desde a data do óbito da esposa, relativamente ao mútuo supra referido, encontrava-se em dívida a quantia de 102.984,75 €, sendo que o autor já pagou, até à presente data, quantia não inferior a 22.680 €, que nunca teria pago se a ré tivesse assumido as suas responsabilidades, e pagou ainda, relativamente ao seu seguro de vida, a quantia global de 643,83 €; o beneficiário designado no contrato de seguro de vida foi o Banco (…), pelo que sendo deferida a presente acção, é àquele que a ré terá que pagar o capital de indemnização, no que diz respeito ao seguro de vida, tendo aquela instituição bancária interesse no resultado da demanda.

A ré A (…) contestou, invocando, em síntese que: celebrou com R (…) um contrato de seguro de vida individual, com o número de apólice indicado e na data referida; a ré solicitou que lhe fosse remetido certificado de óbito, auto de ocorrência e declaração do credor hipotecário com valor em dívida à data do sinistro, sendo que lhe foi remetido o despacho de arquivamento de inquérito, do qual resulta que a análise toxicológica efectuada ao sangue da condutora do veículo e pessoa segura revelou uma taxa de alcoolemia de 1,47 g/l; a ré informou o autor que se verificava uma causa de exclusão do pagamento do capital segurado, em virtude da R (…) ter conduzido veículo em estado de embriaguez em via pública, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, o que consubstanciou, pelo simples perigo presumida de lesão, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal; o falecimento da R (…) resultou da prática de um acto criminoso pela própria, pelo que nos termos do artigo 3º das Condições Gerais do contrato, a cobertura de risco da morte da pessoa segura fica excluída, não estando a ré obrigada a efectuar o pagamento do capital seguro nem dos demais danos e respectivos juros moratórios reclamados pelo autor; no mais, a ré impugnou os factos alegados pelo autor e concluiu pela improcedência da acção.

Admitida a intervenção principal activa do Banco (…), o mesmo ofereceu o seu articulado e alegou, em síntese, que: tendo interesse na vigência das condições de capital e juros estipuladas no contrato de mútuo celebrado com o autor e que o interesse deste pressupõe exactamente a extinção daquele contrato, não pode o chamado intervir como associado do autor mas antes como associado da ré A (…); impugnou os factos deduzidos pelo autor na petição inicial, sendo que a dar-se como provado que a acidentada tinha ingerido álcool e que não se coibiu se aumentar exponencialmente o risco de acidente, a verificação de uma taxa de álcool no sangue superior à criminalmente estabelecida no artigo 292º do Código Penal constitui acto criminoso para efeitos de aplicação da cláusula terceira das condições especiais da apólice; concluiu pela improcedência da acção.

Na réplica, o autor veio sustentar que a ré A (…) teria que provar, se tivesse alegado factos nesse sentido, que a consequência morte e o próprio acidente foram causa directa e necessária de R (…) conduzir em estado de embriaguez, pelo que não o tendo feito não procede tal excepção.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

- Condenou a ré A (…) a pagar ao Banco (…) ou à instituição que o represente ou lhe tenha sucedido no referido contrato de mútuo) e com referência à apólice n.º (...)1, o valor de 99.759,58 €;

- Condenou a ré A (…) a pagar ao autor a totalidade dos valores por este liquidados ao Banco (…) S.A. a partir da data da concretização do risco previsto na apólice (31 de Outubro de 2004) acrescidos de juros legais, que vierem a ser liquidados.

No mais julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do demais peticionado.

*

2. A Ré Alico interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:

 (…)

3. Não houve contra-alegações.

II – Factos Provados

1. O autor foi casado com R (…), a qual faleceu em 31/10/2004, nos termos constantes do assento de óbito junto a fls. 22 dos autos e que se dá por reproduzido.

2. A ré é uma companhia de seguros.

3. No âmbito de construção da casa onde o autor reside actualmente, por força do contrato de mútuo contraído perante o Banco (…), S.A., actualmente no B (…) com o n.º ..., para essa mesma construção, o autor e R (…) contrataram duas apólices de seguro de vida.

4. Por escrito particular datado de 19/01/2000, que R (…) e a ré denominaram de seguro de vida individual, foi celebrada a apólice n.º (...), nos termos, com as condições gerais, especiais e particulares constantes de fls. 11 a 17, e que se dão por reproduzidas, com o capital seguro de € 99.759,58, o segurado e a pessoa segura R (…).

5. O autor e R (…) sempre pagaram tempestivamente os prémios, nomeadamente no ano de 2004.

6. O escrito indicado em 4. garante o pagamento, ao beneficiário Banco (…), S.A., do montante do capital em divida referente ao mútuo indicado em 3. à data do óbito ou invalidez absoluta e definitiva, por um período de 30 anos, devendo o remanescente ser pago ao autor e, na sua falta, aos filhos do casal.

7. O Banco (…), S.A. foi adquirido pelo Banco (…), S.A., actualmente B (…) tendo o último substituído o primeiro em todos os seus direitos e obrigações.

8. Por força da gravidade das lesões sofridas por R (…) na sequência de embate de viação ocorrido no dia 31/10/2004, R (…) foi levada para o Hospital de (...), em (...), onde acabou por falecer.

9. A GNR compareceu no local, tendo elaborado participação de acidente de viação nos termos constantes de fis. 24-27 dos autos e que se dão por reproduzidas.

10. Após o embate, o autor fez a participação à ré, a qual acabou por o informar que era sua intenção não proceder ao pagamento da quantia segurada em 4. por considerar haver um crime e se verificar a situação de exclusão prevista no artigo 3.º das Condições Especiais.

11. O autor paga ainda o próprio seguro de vida em que o autor é a pessoa segura, no valor anual de € 214,61, sendo os beneficiários o B (…) e, no caso da sua morte e haver algum remanescente, a falecida esposa e os filhos.

12. A 23/11/2004, a ré foi informada que a pessoa segura no contrato indicado em 4. havia sido vitima mortal de acidente de viação.

13. A ré, por cartas datadas de 23/11/2004 e 02/12/2004, solicitou que lhe fosse remetido certificado de óbito, auto de ocorrência e declaração do credor hipotecário com valor em divida a data do sinistro, nos termos constantes de fls. 68 e que se dá por reproduzida.

14. Em 31/01/2005, a SR – (…) e Lda. remeteu a ré o auto de ocorrência e a declaração do credor hipotecário com o valor em dívida à data do acidente, tendo diferido a entrega do certificado de óbito para momento posterior, por aquele não se encontrar disponível, nos termos constantes de fls. 70 a 75 e que se dão por reproduzidas.

15. Em 30/06/2005, a SR – (…) Lda. enviou a ré despacho de encerramento de inquérito, do qual constam as conclusões do relatório de autópsia, nos termos constantes de fls. 77 a 82 e que se dão por reproduzidas.

16. R (…), ao momento da morte, revelou uma taxa de alcoolemia de 1,47g/litro.

17. A faixa de rodagem tinha uma largura de cerca de 13,40 metros, apresentava um piso betuminoso em bom estado de conservação, tendo sido sujeita a obras de beneficiação e não tinha obstáculos que impedissem a livre circulação.

18. O autor e R (…) exploravam um estabelecimento de restauração e bebidas, site na (B...), denominado “ (TB...)”.

19. No dia 31 de Outubro de 2004, cerca das 03 horas, o autor ficou a fechar o bar e a arrumar o mesmo.

20. Enquanto R (…) e C (…) saíam para (...), em ....

21. Na ocasião, chovia.

22. E R (…) ia conduzir a amiga a casa.

23. Nos dias precedentes foram realizadas obras de repavimentação na E.N. 1, entre (B...) e (...).

24. Pelo que o piso estava mais alto comparativamente a berma da estrada.

25. Tal berma, do lado direito atento o sentido de marcha seguido pelo veículo automóvel conduzido por R (…) era estreita.

26. Ao chegar aproximadamente ao quilómetro 111,460 da Estrada Nacional n.º 1, o veiculo automóvel conduzido por R (…) entrou em despiste, atravessou a faixa de rodagem da direita para a esquerda e foi embater no rail de protecção lateral esquerdo (atento o sentido de marcha em que seguia), após o que capotou, imobilizando-se fora da faixa de rodagem. O piso estava então molhado.

27. No processo, R (…) foi cuspida do automóvel.

28. Tendo sofrido graves lesões na coluna e na cabeça.

29. Em datas posteriores a 31 de Outubro de 2004, houve outros acidentes de viação no referido local, causados por despiste.

30. O local onde ocorreu o acidente de viação supra referido é uma recta.

31. O Autor continuou a pagar as prestações mensais referentes ao mútuo identificado em 3., face ao não pagamento indicado em 10. Em 31 de Outubro de 2004, relativamente ao contrato de mútuo identificado em 3., estava em dívida o montante de € 101.917,45. Entre 31 de Outubro de 2004 e 26 de Outubro de 2007, no que respeita a tal contrato de mútuo, foram pagas as seguintes quantias globais: € 7.213,31 de amortização de capital; € 12.523,15 de juros.

32. A taxa de álcool indicada em 16. aumentou o risco de acidente na estrada.

33. R (…), face à taxa indicada em 16., viu reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas (arts.684º, nº 3 e 690º do CPC) apreciaremos, apenas, as questões ali elencadas.

Nesta conformidade as únicas questões a decidir são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Interpretação da cláusula contratual.

- Estabelecimento de nexo de causalidade entre a condução com álcool e a ocorrência do acidente.

- Desobrigação legal de pagamento do capital seguro.

- Medida da condenação da Ré.

2.

(…)

3. Na sentença recorrida escreveu-se que: “Como resulta da factualidade provada, R (…), por força da gravidade das lesões sofridas na sequência de embate de viação ocorrido em 31-10-2004, foi levada para o Hospital de (...), em (...), onde acabou por falecer.

Nos termos do artigo 3º das Condições Especiais do Seguro “A cobertura de risco de morte da Pessoa Segura será garantida com as seguintes reservas:

3.1. SUICÍDIO – O suicídio está coberto desde que ocorra a partir do final da segunda anuidade.

(…)

3.4 ACTO CRIMINOSO DO SEGURADO OU DO BENEFICIÁRIO – Estão excluídos do presente contrato os riscos decorrentes de acto criminoso do Segurado ou do Beneficiário, de que resulte a morte da Pessoa Segura.

No caso da morte da Pessoa Segura ser provocada por acto criminoso de um Beneficiário, as responsabilidades da Companhia subsistem relativamente aos restantes Beneficiários que forem estranhos à causa da morte, se os houver, reconhecendo-se-lhes o direito de acrescer.”.

Entende a ré/seguradora, que tendo a morte R (…) ocorrido por força de um acidente de viação, e resultando demonstrado que aquela conduzia o veículo com uma taxa de alcoolemia de 1,47 g/l, facto que constitui crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do artigo 292º, nº 1, do Código Penal, o falecimento da pessoa segura resultou da prática de acto criminoso pela própria, integrando a cláusula de exclusão prevista no artigo 3.º das Condições Especiais do contrato, não estando a ré obrigada a efectuar o pagamento do capital seguro nem dos demais danos sofridos pelo autor.

Considerando que o contrato de seguro, sendo um contrato de natureza formal, é inequivocamente um contrato de adesão, estando como tal sujeito ao regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 22 de Outubro (regime das cláusulas contratuais gerais), deveremos atender, no que respeita à interpretação e integração das suas cláusulas, ao disposto no artigo 10.º do diploma referido, nos termos do qual "as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam".

A primeira questão que pode colocar-se é a de saber se a cláusula 3.4 do artigo 3.º das Condições Especiais do Seguro é aplicável ao casos em que o segurado e a pessoa segura são a mesma pessoa, como ocorre no caso dos autos, relativamente à falecida R (…).

É que se considerarmos que a cláusula em análise se aplica à situação em que segurado e pessoa segura são a mesma pessoa, e que estão excluídos do contrato os casos em que a morte da pessoa segura resulte de acto criminoso praticado pela própria, não se alcança como é que, por um lado, se estabelece esta exclusão e, por outro lado, a morte da pessoa segura por suicídio (a partir do final da segunda anuidade) está coberta pelo seguro.

Não faz sentido, desta forma, que a cobertura de risco de morte da pessoa segura se mantenha no caso de esta se suicidar e já não no caso de a pessoa segura ser simultaneamente segurado e praticar um acto criminoso do qual sobrevenha a sua própria morte. Na verdade, nesta última hipótese, não se verificam os fundamentos que estão na base da estipulação da cláusula 3.4, e através da qual se visa prevenir a hipótese de o segurado ou o beneficiário, provocando a morte da pessoa segura através de acto qualificado como crime, consigam obter o pagamento do capital seguro” – fim de transcrição.

Como se vê pelo seu discurso, a sentença para chegar ao seu juízo conclusivo baseou-se em três argumentos: que segurado e pessoa segura não podem ser a mesma pessoa; que a entender-se que sim, e por isso excluídos da cobertura do contrato os casos em que a morte da pessoa segura resulte de acto criminoso praticado pela própria, não se compreende tal cobertura em caso de suicídio da mesma; que na hipótese em que a pessoa segura seja simultaneamente segurado e pratique um acto criminoso do qual sobrevenha a sua própria morte, não se verificam os fundamentos que estão na base da estipulação da cláusula 3.4, que são prevenir a hipótese de o segurado ou o beneficiário, provocando a morte da pessoa segura através de acto qualificado como crime, consigam obter o pagamento do capital seguro.

Não podemos acompanhar tal raciocínio e passamos a explicar porquê, em relação a cada uma das três razões apresentadas.

3.1. Nos termos do art. 124º, 1), a), do DL 94-B/98, de 17.4. (que regula a actividade seguradora) e art. 455º, do C. Comercial (aplicável no caso concreto, pois o DL 72/08, de 16.4, que estabeleceu o novo Regime do Contrato de Seguro, em vigor desde 1.1.2009 é inaplicável ao caso dos autos) podem existir contratos de seguro de vida, em caso de morte.

Neste seguro de vida em caso de morte, uma das suas relevantes modalidades é o seguro temporário, mediante o qual o segurador se compromete a entregar ao beneficiário ou aos herdeiros da pessoa segura um certo capital se esta falecer dentro de um determinado prazo. Decorrido o prazo, o segurador fica liberto, guardando os prémios recebidos.

Uma das manifestações desta espécie merece especial destaque, face à sua grande relevância prática: o seguro sobre a vida do mutuário, a favor do mutuante, que ocorre quando o segurador assume o encargo de pagar ao credor do mutuário, caso este morra antes de o empréstimo se encontrar inteiramente por liquidar, uma soma igual ao capital por liquidar no momento da morte (neste sentido M. Inês Oliveira Martins, O Seguro de Vida, Coimbra Editora, 2010, pág. 87/88).

É o que se verifica no caso dos autos, pois resultou provado que a falecida R (…) celebrou um contrato de seguro de vida, de forma individual, segundo o qual aquela era a segurada e simultaneamente pessoa segura, sendo beneficiário o Banco (…), no montante do capital em dívida relativo a um mútuo, sendo o remanescente pago ao A. seu cônjuge, e na falta deste aos filhos do casal. Ou seja, o seguro contratado garantia a liquidação do montante do capital em dívida, em caso de morte e invalidez absoluta ou definitiva, relativo a um contrato de mútuo contraído perante o Banco (…), para construção da habitação onde actualmente reside o autor.

Neste tipo de contratos o segurado e a pessoa segura podem ser a mesma, conforme decorre de razões contratuais, legais e ensinamentos doutrinais.

Assim, o próprio contrato celebrado entre as partes refere isso mesmo. De facto, nos termos do artigo 4º, nº1, das Condições Gerais, segurado é a pessoa que celebra o contrato com o segurador e assume perante ela a obrigação de pagar o prémio - no caso a R (…), nos termos do nº 2, do mesmo artigo, pessoa segura é a pessoa sujeita aos riscos, que nos termos acordados, foram objecto do contrato – no caso a vida da R (…), nos termos do respectivo nº 3, beneficiário, a pessoa em benefício de quem se celebra o contrato, isto é aquela pessoa à qual deverão ser pagas as importâncias seguras – no caso o Banco (…), podendo, nos termos do respectivo nº 4, reunir-se na mesma pessoa duas ou todas as qualidades de segurado, pessoa segura e beneficiário, salvo se a isso se opuser a natureza do seguro.

De modo que, face aos factos apurados, tendo em conta o contrato de seguro estipulado e os riscos que se pretendiam cobrir, resulta evidente face aos próprios termos contratuais que segurado e pessoa segura eram uma única e mesma pessoa, a R (…) (aliás é isso que expressamente consta da apólice de seguro, suas condições particulares, como decorre do doc. de fls.16, junto com a p.i.).

Não se vê, pois, face ao contratualizado, o primeiro obstáculo que a sentença ergueu.  

Por outro lado, o DL 176/95, de 26.7 (que estabeleceu regras de transparência para a actividade seguradora e disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro, aplicável no caso concreto, pois o DL 72/08, de 16.4, que estabeleceu o novo Regime do Contrato de Seguro, em vigor desde 1.1.2009 é inaplicável ao caso dos autos) estabeleceu, no seu art. 1º, b), que tomador de seguro é a entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora e é responsável pelo prémio – no caso a Regina, e na sua c), que segurado é a pessoa no interesse da qual o contrato é celebrado ou a pessoa (pessoa segura) cuja vida se segura – no caso a mesma Regina.

Por aqui, por razão legal, igualmente não se vislumbra o referido obstáculo que a sentença mencionou.

E o mesmo decorre dos ensinamentos da doutrina.

Diz A. Neto no seu C. Comercial Anotado, 14ª Ed., 1998, nota 2. ao art. 455º, pág. 381 (e citando Guerra da Mota, em O Contrato de Seguro Terrestre, 1º vol, págs. 165 e segs.), que o seguro de vida é o contrato pelo qual o segurador recebe do tomador do seguro (o segurado), por uma ou mais vezes, certa quantia (prémio) e promete pagar àquele ou a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de vida ou de morte de uma pessoa (pessoa segura). Isto é, no seguro de vida em caso de morte o segurador recebe do tomador do seguro (o segurado), certa quantia (prémio) e promete pagar a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de morte de uma pessoa (pessoa segura). Morte que pode ser do próprio segurado ou de outra pessoa. Logo segurado e pessoa segura podem ser os mesmos.

Também M. Inês Oliveira Martins vai no mesmo sentido (ob. cit., pág. 29/30) ao referir que no âmbito do seguro das pessoas, o sujeito em cuja esfera jurídica se poderá precipitar o evento aleatório surge referido como a pessoa segura. Podendo figurar-se hipóteses em que existe diferença entre a pessoa segura e o titular do interesse na vida da pessoa segura, acolhendo-se assim a possibilidade de o titular deste interesse ser sujeito diferente da pessoa segura, nomeadamente nos seguros sobre a vida de terceiro (ex: a sociedade, no seu próprio interesse e a seu favor faz um seguro de vida dos seus dirigentes; clube desportivo, no seu próprio interesse e a seu favor faz um seguro pela perda de vida de uma sua “estrela”, etc). Dissociando estas hipóteses, em que o segurado é o titular do interesse sobre a vida segura e o risco primário de vida é de outra pessoa segura, que não ele próprio, segurado e pessoa segura serão as mesmas. É o que se verifica nos autos. A falecida R (…) era a titular do interesse sobre a vida segura e era o risco da sua própria vida que estava seguro (embora seja conferido a terceiro o direito à prestação da seguradora)

Igualmente Margarida Lima Rego aponta no mesmo sentido (vide Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra Editora, 2010, pág. 599,603/604 e 606/608) ao enunciar a seguinte formulação. Uma única pessoa pode desempenhar os papéis de tomador, de segurado e de pessoa segura, sendo um beneficiário um terceiro. É o caso mais simples e comum. Imaginemos um progenitor que, preocupado com a família, segura a sua própria vida em benefício do cônjuge e sua descendência. É ele quem celebra o contrato: é ele o tomador. O seguro é feito sobre a sua própria vida: é ele a pessoa segura. Também lhe cabe o direito de designar o terceiro beneficiário: é ele o segurado. Os beneficiários são terceiros: o cônjuge e descendentes. O exemplo apontado pode ser perfeitamente trocado para o caso de empréstimo bancário e consequente garantia através de seguro de vida em caso de morte. Assim, a R (…) em benefício da entidade mutuante, segurou a sua própria vida, de modo a garantir o empréstimo daquela caso viesse a morrer no prazo previsto para o mesmo. Foi ela que celebrou o contrato, pelo que é ela a tomadora. O seguro foi feito sobre a sua própria vida, pelo que é ela a pessoa segura. Foi ela que indicou o terceiro beneficiário, pelo que é ela a pessoa segura. O beneficiário é terceiro, é a entidade mutuante.

Desta sorte, a primeira objecção que a sentença recorrida apontou para rejeitar a aplicabilidade da cláusula de exclusão convencionada no contrato de seguro em apreço nos autos, não tem verdadeiramente razão de ser. 

3.2. O facto de o suicídio estar coberto pelo seguro, desde que ocorra a partir do final da segunda anuidade, não tira a razão de ser à exclusão da cobertura para os casos em que os riscos da morte da pessoa segura resulte de acto criminoso praticado pela própria, como segurado.

São realidades diferentes, pois esta última pretende abarcar comportamentos de carácter criminoso do próprio segurado/pessoa segura, que contribuem para a sua morte, enquanto o suicídio, radica em comportamento não criminoso e com justificação económico-financeira bem demarcada para a seguradora, assuntora do risco. 

Repare-se que só o suicídio voluntário é razão legal para a seguradora se desobrigar do cumprimento da sua prestação, conforme previsão do art. 458º, nº1, do C. Comercial, mas não o suicídio involuntário ou inconsciente, e se o seguro for contratado por terceiro (parágrafo único do mesmo artigo) nem aquela restrição é aplicável (Cunha Gonçalves, citado por A. Neto, ob. cit., nota 1. ao mesmo artigo, pág. 386, distinguia conforme o suicídio se devesse atribuir a acto de loucura, forte acesso febril ou de delírio, embriaguez, intoxicação análoga ou de qualquer outra causa física, dos casos de desgosto, decepção ou a qualquer outra causa moral, entendendo que naquelas hipóteses o segurador continuava obrigado. Em linha semelhante vai Moitinho de Almeida, igualmente citado na sua obra por A. Neto, que defende que é de aceitar a doutrina que defende o suicídio involuntário, para os casos de obnubilação da vontade e das faculdades mentais, a perda da consciência do alcance moral do acto e das respectivas consequências, pois aqui o suicida é dominado por um impulso irracional e irresistível, de nada relevando neste quadro emocional a existência do seguro como factor decisivo da prática do acto. Se esta a razão de ser da exclusão do risco, pois ela deve actuar como limite do conceito de suicídio).

Dito de outro modo, o suicídio involuntário face ao direito positivo na altura vigente não desobriga a seguradora (e se o seguro for contratado por terceiro em nenhuma circunstância a seguradora fica desobrigada).

Nem se pode tirar argumento, em contra corrente, do art. 437º, nº 3, do C. Comercial, que dispõe que o seguro fica sem efeito se o sinistro tiver sido causado pelo segurado – obviamente haveria sempre que excluir os seguros obrigatórios, como o de responsabilidade civil automóvel – pois, como relembra M. Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª Ed., pág. 814, tal norma tem carácter supletivo, sob pena de invalidar seguros que admitam coberturas na hipótese de suicídio.

E mesmo hoje no actual regime jurídico do contrato de seguro (inaplicável ao caso dos autos) continua a permitir-se a cobertura dos casos de suicídio (tendo-se eliminado a distinção entre voluntário e involuntário), desde que a morte ocorra depois de um ano de vigência do contrato, salvo convenção em contrário, nos termos do art. 191º, nº 1, do referido DL 72/08).

Além da não proibição legal de casos de cobertura de suicídio, a mesma encontra fundamentos económicos justificados. Refere M. Inês Oliveira Martins (ob. cit., pág. 278/279) que dada a gravidade do acto para aquele que o comete, apenas em hipóteses de muito extremo desespero se logra imaginar que a contratação do seguro venha incentivar a respectiva prática, podendo, no entanto, em hipóteses quantitativamente quase tão raras lesar economicamente o segurador. Sob esta luz, apesar de tudo, não se gerando assim o aumento relevante de um risco para o bem jurídico “vida”, pela subscrição de seguros que cobrem o suicídio, entrega-se a ponderação relativamente à cobertura ou não desse risco sobretudo ao sujeito que, na hipótese, se pode ver lesada nos seus interesses económicos: o segurador.

Percebe-se assim que apenas a seguradora ré podia avaliar economicamente se valia ou não a pena cobrir o suicídio desde que ocorrido a partir do final da segunda anuidade, como consta do citado e transcrito art. 3.1 das Condições Especiais.

Somos, pois, levados a concluir que não pode estabelecer-se termo comparativo entre a cobertura do risco suicídio e a não cobertura de actos criminosos cometidos pelo próprio segurado/pessoa segura, para afastar a aplicabilidade desta exclusão, como se fez na decisão recorrida.

3.3. Finalmente quanto ao último argumento da sentença recorrida, não se verificarem os fundamentos que estão na base da estipulação da cláusula 3.4, que são prevenir a hipótese de o segurado ou o beneficiário, provocando a morte da pessoa segura através de acto qualificado como crime, conseguirem obter o pagamento do capital seguro, sendo o mesmo correcto, não é totalmente certo por não abarcar todas as hipótese que a estipulação cobre.

Como vimos, no caso concreto, o segurado era a pessoa segura. E não se vê que a exclusão da cobertura possa funcionar se for o próprio segurado a praticar acto criminoso que implique o resultado fatal que exclui a cobertura, a sua própria morte, como pessoa segura.

Na verdade, a cobertura de um risco poderá ser excluída por se revelar produtora de um desvalor jurídico. O que está em causa, assim, é a licitude da cobertura do risco.

A este propósito é perfeitamente natural que a legislação contenha um elenco de proibições do seguro de certos riscos, designadamente os que tenham de se mostrar compatíveis com a ordem pública do objecto negocial. Trata-se, no fundo, da negação de tutela jurídica a negócios cujos efeitos contrariam o sentido de outras normas ou mesmo do conjunto de princípios na base do ordenamento jurídico e que, por isso mesmo, não se podem considerar aptos a produzir efeitos de direito (nesta linha de exposição a citada autora M. Inês Oliveira Martins, ob. cit., pág. 275/276).

Assim se compreende, por exemplo a proibição de contratação de seguros que cubram a responsabilidade criminal do segurado.

Busquemos a legislação.

No C. Comercial, citado art. 458º, nº 1, a lei desobriga a seguradora de pagamento se a morte da pessoa, cuja vida se segurou, é resultado de crime ou delito cometido pelo segurado.

Nos termos do art. 192º, nº 3, a), do DL 94-B/98, de 17.4. (que regula a actividade seguradora), por razões de compatibilidade com a ordem pública (nº 1, do mesmo artigo), é proibido a coberturas de riscos de responsabilidade criminal e contra-ordenacional (no actual regime jurídico do contrato de seguro - inaplicável ao caso dos autos – proíbe-se a cobertura de tal responsabilidade, nos termos do art. 14º, nº 1, a), do referido DL 72/08). Aquele dispositivo nada mais é do que uma emanação particular, no sector dos seguros, do princípio geral estabelecido no art. 280º, nº 2, do Código Civil, que proíbe os negócios que contrariem a ordem pública.

Compreendida a razão de ser do regime legal, em matéria de seguros, e aceite a valia do argumento, melhor se compreenderá que é de aplaudir o entendimento de que a cláusula incluída nas Condições Gerais de um contrato de seguro, segundo a qual não são objecto de cobertura os riscos devidos a acção criminosa do segurado de que resulte a sua própria morte, como pessoa segura, se encontra em consonância, no que toca à condução sob o efeito do álcool, com normas legais prescritivas e de ordem pública definida pelo direito positivo português (vide neste sentido os Acds. do STJ, de 14.12.2004, CJ, T.3, pág. 146, e de 15.1.2008, Proc.07A4318, in www.dgsi.pt, referidos pela recorrente).

Ora é sabido, dos factos provados, que a falecida R (…) apresentava uma taxa de álcool de 1,47 g/l, e ademais que essa taxa aumentou o risco de acidente na estrada além de ter visto reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras. Verifica-se, pois, a comissão de um crime de condução em estado de embriaguez (ou seja, com mais de 1,2g/l de álcool no sangue), nos termos do art. 292º, nº 1, do C. Penal.

Como assim, em consequência, é de considerar, ao invés do defendido na sentença recorrida, que o artigo 3.4 das Condições Gerais do contrato de seguro, em apreço nos autos, exclui da sua cobertura os casos de acto criminoso - e a cláusula não distingue entre crime doloso e crime meramente negligente – do segurado de que resulte a sua própria morte, como pessoa segura.

3.4. Em suma, no caso dos autos, o contrato de seguro temporário para garantia de empréstimo, em que a ré seguradora se obrigou a pagar certo capital se a pessoa segura falecesse até determinada data, não cobre o risco de morte resultante de acidente de viação do segurado/pessoa segura (a R (…)), em virtude de acto criminoso por este cometido - prática do crime de condução em estado de embriaguez.       

4.1. Na mesma sentença, mais se escreveu que: ““Ainda que se entenda não ser este o sentido de interpretação da cláusula 3.4 do artigo 3.º das Condições Especiais do Seguro, e considerando que a mesma tem aplicação na hipótese de o segurado e a pessoa segura serem a mesma pessoa, importa analisar se a exclusão ali prevista resulta da factualidade provada.

Com interesse para apreciação desta questão, impõe-se considerar os seguintes factos dados como provados: - R (…) sofreu um acidente de viação no dia 31-10-2004, tendo sido levada para o hospital, onde veio a falecer, tendo revelado, no momento da morte, uma taxa de alcoolemia de 1,47g/litro. - O autor e R (…) exploravam um estabelecimento de restauração e bebidas, site na (B...), denominado “ (TB...)”, sendo que na data em causa (31 de Outubro de 2004), cerca das 03 horas, o autor ficou a fechar o bar e a arrumar o mesmo, enquanto R (…) e C (…) saíam para (...), em .... - A faixa de rodagem tinha uma largura de cerca de 13,40 metros, apresentava um piso betuminoso em bom estado de conservação, tendo sido sujeita a obras de beneficiação e não tinha obstáculos que impedissem a livre circulação. - Na ocasião, chovia e R (…) ia conduzir a amiga a casa. - Nos dias precedentes foram realizadas obras de repavimentação na E.N. 1, entre (B...) e (...), pelo que o piso estava mais alto comparativamente à berma da estrada, sendo que esta era estreita, do lado direito e atento o sentido de marcha seguido pelo veículo automóvel conduzido por R (…). - Ao chegar aproximadamente ao quilómetro 111,460 da Estrada Nacional n.° 1, o veiculo automóvel conduzido por R (…) entrou em despiste, atravessou a faixa de rodagem da direita para a esquerda e foi embater no rail de protecção lateral esquerdo (atento o sentido de marcha em que seguia), após o que capotou, imobilizando-se fora da faixa de rodagem. O piso estava então molhado. - No processo, R (…) foi cuspida do automóvel, tendo sofrido graves lesões na coluna e na cabeça. - Em datas posteriores a 31 de Outubro de 2004, houve outros acidentes de viação no referido local, causados por despiste. - O local onde ocorreu o acidente de viação supra referido é uma recta. - A taxa de álcool que R (…) apresentava aumentou o risco de acidente na estrada. – R (…), face à taxa de 1,47 g/l, viu reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras.

Ora, tendo em conta que R (…) sofreu um acidente de viação no dia 31-10-2004, do qual veio a resultar, no mesmo dia, a sua morte, bem como que era aquela que conduzia o veículo e que revelou uma taxa de alcoolemia de 1,47g/litro, a sua conduta é susceptível de integrar a prática de um facto que a lei qualifica como crime, concretamente o previsto no artigo 292.º do Código Penal, sob a epígrafe “Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópica”.

Contudo, o preenchimento da cláusula de exclusão a que vimos aludindo exige, no entendimento do tribunal, que o risco seja decorrente do acto criminoso, não bastando, por isso, que este acto se verifique para que a responsabilidade da seguradora seja excluída, na medida em que o uso da palavra “decorrente” não pode constituir uma presunção de que o evento ocorreu devido ao “acto criminoso”.

Não obstante se tenha apurado a referida taxa de alcoolemia e a condução de um veículo automóvel sob influência da mesma, sendo a conduta de R (…) susceptível de integrar a prática de um acto qualificável por lei como crime, dos factos provados não é possível concluir que foi por força de tal “acto criminoso” que se deu o despiste e o acidente de que sobreveio a morte.

Na verdade, o que se apurou foi que a taxa de álcool que R (…) apresentava aumentou o risco de acidente na estrada e que face àquela taxa R (…) viu reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras. Acresce que, é também decisiva a circunstância de se ter provado que posteriormente à data em que ocorreu o acidente que causou a morte a R (…), existiram outros acidentes de viação no referido local, causados por despiste, facto que vem infirmar a existência de nexo de causalidade entre a conduta assumida pela falecida (susceptível de constituir um “acto criminoso”) e o acidente que lhe veio a provocar a morte.

Assim, e do que vimos expondo, consideramos não estar verificada, no caso sub judice, a cláusula de exclusão prevista no ponto 3.4 do artigo 3.º das Condições Especiais do Seguro” – fim de transcrição.

Este discurso leva-nos à seguinte questão. O ónus de alegação e prova do nexo causal entre a TAS e o acidente cabe à ré seguradora, ou a falta desse nexo causal é ónus de alegação e prova do A.

O seguro aqui accionado não é um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas um seguro facultativo de vida. Consequentemente, a presente acção não é uma acção de regresso da seguradora que pagou uma indemnização ao abrigo de um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas uma acção de condenação da seguradora a pagar um seguro de vida. Por isso, não se trata aqui de uma acção de responsabilidade civil por facto ilícito, em que o lesado autor tenha de alegar e provar a culpa do lesante e o nexo causal entre o facto e o dano (arts. 483º, 487º, nº 1, e 499º, do CC).

Estamos, sim, perante um contrato de seguro de vida em que o A. pretende, com fundamento na morte do segurado, sua esposa, que a seguradora pague o capital seguro ao beneficiário, a entidade mutuante, assim se libertando da sua obrigação de pagamento do empréstimo à mesma entidade, bem como no pagamento ao próprio A. de outros montantes suportados por este, após a morte da esposa, para solver tal empréstimo.

A causa de pedir é assim totalmente diferente: não é o dano causado por facto ilícito mas a verificação do evento morte.

Por isso considerando que se trata apenas de receber o capital seguro num contrato de seguro de vida que cobre o risco morte, e observando a distribuição do ónus da prova estabelecido no art. 342º do CC, temos que:

a) O A. tem o ónus de alegar e provar a existência do seguro, o falecimento do segurado, que o beneficiário é a entidade mutuante e ter suportado determinados pagamentos a esta;

b) A Ré seguradora tem o ónus de alegar e provar que o segurado cometeu um acto criminoso de que resultou a sua morte, como pessoa segura, porque se trata, contratualmente, de um facto impeditivo do direito do A. (art. 342º, nº 2, do CC): a excepção à cobertura do risco seguro.

Provado isso, o A. para poder mesmo assim ter direito à sua pretensão, tem de provar que o acidente não se deveu a essa causa, mas a outra: fica então o A. com o ónus de alegar e provar que a taxa excessiva de álcool do sangue, no caso 1,47 g/l, integrante da prática de um crime pela falecida segurada Regina, não foi a causa do acidente e morte.

Por exemplo, porque apesar do segurado seguir alcoolizado pela sua mão de trânsito o acidente se deveu a culpa exclusiva de terceiro que nele veio embater circulando em contra-mão; porque apesar dessa circunstância as características da via, piso, largura, etc, levaram à ocorrência do acidente; por deficiência mecânica da viatura; e outros exemplos se podiam dar.

Isto por se tratar, assim, de um facto impeditivo do funcionamento da excepção, cujo ónus cabe, por isso, ao A.: art.342º, nº 1, do CC (o facto impeditivo da excepção obsta à excepção).

Isto é, provando o A. que o acidente e a morte não se deveram à taxa excessiva de álcool no sangue, e consequente prática do mencionado crime, mas a outra causa, não se prova a causa de exclusão do risco estabelecida no art. 3.4 das Condições Gerais, pelo que o risco fica coberto (vide neste sentido o referido Ac. do STJ, de 14.12.2004, que aqui acompanhamos).

Esta forma de articular o ónus da prova, que nos parece ser o que linearmente resulta da lei, leva no caso ao seguinte resultado.

O A., segundo decorre dos factos apurados, não provou causa alguma que exclua que o acidente e a morte da sua esposa não resultaram da taxa excessiva de álcool noo sangue que esta apresentava, e consequente comissão de um crime por condução em estado de embriaguez.

Na verdade, alegou na p.i. (arts. 19º a 21º) que o acidente ocorreu em virtude da viatura conduzida pela esposa, por razões não apuradas, ter resvalado para a berma do seu sentido de marcha; o que levou esta a mudar bruscamente de direcção, logrando retirar o veículo da berma para onde resvalava; no entanto, por o piso estar muito molhado, o carro entrou em despiste, acabando por embater no lado contrário ao do respectivo sentido de marcha, nos rails de protecção e capotado. Tal matéria foi levada à base instrutória (quesitos 9º a 17º). Mas recebeu apenas a resposta restritiva que faz hoje o facto provado 26.

Desta sorte, perante a apontada falta de prova, a pretensão do A, tem que inevitavelmente improceder.

4.2. Deixa-se, ainda, uma nota final, embora, necessariamente, resumida face ao que se acabou de explicitar e considerar.

Cremos que apesar de tudo o dito a decisão recorrida não se podia manter. Se atentarmos aos factos provados vemos que: -A faixa de rodagem tinha uma largura de cerca de 13,40 metros, apresentava um piso betuminoso em bom estado de conservação, tendo sido sujeita a obras de beneficiação e não tinha obstáculos que impedissem a livre circulação. -Nos dias precedentes foram realizadas obras de repavimentação na E.N. 1, entre (B...) e (...), pelo que o piso estava mais alto comparativamente a berma da estrada. -Tal berma era estreita. -Ao chegar aproximadamente ao quilómetro 111,460 da Estrada Nacional n.º 1, o veiculo automóvel conduzido por R (…) entrou em despiste, atravessou a faixa de rodagem da direita para a esquerda e foi embater no rail de protecção lateral esquerdo (atento o sentido de marcha em que seguia), após o que capotou, imobilizando-se fora da faixa de rodagem. O piso estava então molhado. -O local onde ocorreu o acidente de viação supra referido é uma recta. -A taxa de álcool indicada de 1,47 g/l, aumentou o risco de acidente na estrada. –R (…) face à taxa indicada viu reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras.

Perante esta matéria, e dada a inexplicabilidade do despiste, que significado tem a mesma senão a de que o acidente se deu por embriaguez da falecida, note-se com uma taxa três vezes superior ao mínimo legal permitido (0,5 g/l), por “face à taxa indicada a R (…) ter visto reduzidas as suas capacidades visuais, auditivas, de raciocínio e motoras”.

Não estando provada qualquer outra razão para o acidente, esta parece-nos óbvia.

5. Perante o ora considerado no ponto 4., torna-se desnecessário analisar as duas demais questões.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso da Ré, assim se revogando a sentença recorrida, indo a Ré absolvida.

*

Custas pelo A.

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João Moreira do Carmo ( Relator )
Alberto Ruço
Judite Pires