Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
191/14.3GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
SENTENÇA ESCRITA
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 389-A, N.º 5, DO CPP
Sumário: I - Em julgamento realizado sob a forma de processo sumário, em que é aplicada uma pena de 6 (seis) meses de prisão e determinado que esta pena deve ser cumprida em regime de semidetenção nos termos do artigo 46º do Código Penal, a sentença tem que ser elaborada por escrito e deve proceder-se à sua leitura, ao abrigo do artigo 389º-A do Cód. Proc. Penal.

II - Tendo sido proferida oralmente, verifica-se uma irregularidade que deve ser sanada nos termos do artigo 123º, nº2, do Cód. Proc. Penal, com a remessa dos autos ao tribunal recorrido para a redução a escrito da sentença e respectiva leitura.

Decisão Texto Integral:
I

            1. Nos autos de processo sumário nº 191/14.3GAACB do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça – agora da comarca de Leiria, em que é arguido

A..., melhor id. nos autos,

Foi o mesmo julgado e condenado, por decisão de 8.7.2014, pela prática de um crime de violação de proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

Mais foi determinado que esta pena deve ser cumprida pelo arguido em regime de semidetenção nos termos do artigo 46º do Código Penal com início ao dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença.

2. Desta decisão recorre o arguido.

Alega o mesmo, em síntese, que a pena de prisão aplicada deve ser cumprida em regime de prisão por dias livres em substituição do regime de  semidetenção.

3. O Ministério Público respondeu dizendo em síntese,

que a decisão sob recurso deve manter-se porquanto a pena aplicada salvaguarda a reinserção social do arguido e não foi violado o disposto no artigo 71º, do Código Penal.

            4. Nesta Relação, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer dizendo que a sentença não merece qualquer censura pelo que o recurso não merece provimento.


II

            Entende-se, todavia, que existe uma circunstância que obsta ao conhecimento imediato do objecto do recurso pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 6 do art. 417º do Cód. Proc. Penal, profere-se decisão sumária.

III

1. Conforme resulta do processo, o arguido/recorrente foi julgado em processo sumário, tendo a sentença sido proferida oralmente e o dispositivo ditado para a acta – v. fls. 65 a 69 -, vindo o mesmo a ser condenado pela prática de um crime de violação de proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão e determinado que esta pena deve ser cumprida pelo arguido em regime de semidetenção nos termos do artigo 46º do Código Penal.

            Ora, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 389º-A do Cód. Proc. Penal, em processo sumário, a sentença é logo proferida oralmente e o dispositivo é sempre ditado para a acta.

            Mas logo excepciona o nº 5 do mesmo preceito que, se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura”.

            O que significa que, mesmo em processo sumário, sempre ou desde que seja aplicada pena privativa da liberdade, a sentença deixa de poder ser proferida oralmente, devendo ser elaborada, obrigatoriamente, por escrito e proceder-se à sua leitura.

            Conforme se decide no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.4.2013, proferido no proc. nº 299/12.0PTAMD.L1-5, a génese ou ratio “da diferenciação estabelecida por aquele nº 5 está no facto de que uma sentença que seja oralmente ditada basta-se com a indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas; exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão; e, em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada (cfr. as alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 389ºA do Cód. Proc. Penal). E a punição em pena de prisão tem que ser fundamentada de forma que não seja sucinta…”.

É certo que, apesar de a pena aplicada ser de seis meses de prisão, foi determinado que a mesma deve ser cumprida pelo arguido em regime de semidetenção nos termos do artigo 46º do Código Penal.

            Conforme dispõe o nº 2 do artigo 46º do Código Penal,

            “ O regime de semidetenção consiste numa privação da liberdade que permita ao condenado prosseguir a sua actividade profissional normal, a sua formação profissional ou os seus estudos, por força de saídas estritamente limitadas ao cumprimento das suas obrigações”.

            Assim, este regime de semidetenção como forma de cumprimento da pena de prisão, sendo uma pena designada de substituição, não deixa de ser ou não perde a natureza de uma pena privativa da liberdade para os efeitos e exigências do nº 5 do art. 389ºA do Cód. Proc. Penal.

            A pena continua a ser de privação da liberdade. Apenas o seu cumprimento ou modo de cumprimento passa a ser diferente, de modo a salvaguardar a actividade profissional normal, a formação profissional ou os estudos do condenado. Trata-se de uma pena de substituição mas igualmente detentiva da liberdade do arguido.

            2. No presente caso, apesar de ter sido aplicada ao arguido / recorrente pena de prisão, substituída pelo seu cumprimento em regime de semidetenção, a sentença não foi elaborada por escrito e lida em audiência de julgamento.

            Este cumprimento em regime de semidetenção não deixa de ter, em nosso entender, a natureza de uma pena privativa da liberdade. Esta mantém-se, o que difere é tão simplesmente o seu modo de execução, nos termos já expostos.

            E mesmo para este modo de execução ou cumprimento da pena, os pressupostos que justificam que a sentença seja escrita e lida em audiência, mantêm-se na sua plenitude.

            Como se decidiu no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 18-05-2011, proferido no proc. n.º 137/10.8GASBC.C1 “sendo aplicada pena privativa de liberdade, é necessário ter em consideração no programa de execução subsequente todo o condicionalismo que o tribunal ponderou, nomeadamente, algumas das razões que sustentam o processo justificativo que consubstancia a fundamentação e que determinaram a aplicação dessa pena”.

            Faz todo o sentido que assim seja.

            Com o cumprimento da pena privativa da liberdade, o arguido vai permanecer no Estabelecimento Prisional e quer este quer os Serviços de Reinserção Social, devem ter conhecimento e acesso, ao teor da sentença, de modo a promover a reinserção social do arguido. Caso assim não fosse ou assim não se processe, significaria que o arguido estaria a cumprir uma pena, sem qualquer finalidade de reintegração no meio da sociedade ou familiar, que é precisamente uma das finalidades da aplicação de uma pena – v. art. 40º, nº 1, do Código Penal.

            3. Aqui chegados, verificando-se um vício notório na elaboração desta sentença sob recurso, cumpre agora averiguar da exacta natureza deste vício: mera irregularidade, nulidade, inexistência jurídica?

           

            No ac. supra citado do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.4.2013, entendeu-se que este vício constitui uma irregularidade, aí se entendendo que nos termos do art. 118º do Cód. Proc. Penal, “a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal apenas determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, tornando o acto irregular nos outros casos – repare-se que o caso da omissão escrita da sentença em processo sumário não é cominada como nulidade da sentença na alínea a) do nº 1 do art. 379º do Cód. Proc. Penal”.

            De todo o modo, esta irregularidade, que está prevista no art. 123º do Cód. Proc. Penal, segundo o teor do nº 2 daquele preceito[1], a omissão da elaboração escrita da sentença em que é aplicada uma pena privativa da liberdade constitui uma irregularidade que afecta, sem dúvida, o valor do acto praticado.

            E, desse modo, tal “omissão da elaboração por escrito da sentença que aplica pena de prisão constitui uma irregularidade de conhecimento oficioso (por afectar o valor do acto praticado), que determina a remessa dos autos ao tribunal recorrido para sanação do vício com redução a escrito da sentença” – cit. ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 23.4.2013.

            4. Por sua vez, no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 28.9.2011, proferido no processo nº 71/11.4GAACB.C1, a questão foi colocada entre tratar-se de uma situação de “inexistência jurídica” e “nulidade insanável”.

            A situação de inexistência jurídica foi afastada nos fundamentos daquele acórdão -Tribunal da Relação de Coimbra de 28.9.2011 – nestes termos:

            “No âmbito material, em princípio, a distinção entre inexistência e nulidade apresenta-se assim: se o acto contém o mínimo de elementos ou de requisitos indispensáveis para a sua existência jurídica, mas está inquinado de vícios de formação, estamos perante a figura da nulidade; se falta esse mínimo, estamos perante a figura da inexistência jurídica (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Coimbra, 1952, vol. V, pág. 117). Ou, segundo refere, com maior completude, João Conde Correia (ob. cit.), a inexistência consiste numa imperfeição da fattispecie. O acto praticado, embora se identifique com determinado modelo legal, não lhe corresponde na íntegra, faltando-lhe, pelo menos, um dos seus elementos. Apesar de ter existência jurídica o direito não o considera válido. Por seu turno, no caso de inexistência, nem sequer se pode falar em imperfeição da fattispecie. A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica. Nas nulidades absolutas o acto, ainda que imperfeito, é idóneo para produzir os efeitos jurídicos que a lei lhe atribui. Na existência jurídica o acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos, não os devendo, em caso algum produzir”.

            Entende-se que efectivamente não estamos perante uma situação de inexistência jurídica. O acto em si, a sentença, existe. Simplesmente, em vez de ter sido escrita e lida, foi proferida oralmente. Mas encontra-se registada no suporte magnético onde se dão os factos como provados – embora por remissão ao abrigo do nº 1, alínea a) do artigo 389-A, do CPP, quanto aos factos da acusação -, incluindo os factos pessoais, antecedentes criminais do arguido, a qualificação e fundamentação jurídicas, quer quanto à opção pela espécie da pena quer quanto à pena de substituição de semidetenção em detrimento de outras.

            5. A violação que existe é na verdade o não cumprimento do disposto no artigo 389.º-A, n.º 5, do CPP, por a sentença não ter sido elaborada, em todos os seus termos, por escrito.
            Pelo tribunal
a quo foi seguido o modelo geral, tendo documentado a sentença nos termos dos artigos 363.º e 364.º do CPP e ditado para a acta a parte do dispositivo, conforme dispõe o nº 1 e 2, daquele preceito (389º-A).

            Pelo que em nosso entender, a questão a dirimir consiste em saber se o vício de que sofre este acto – a sentença oral – é de mera irregularidade[2], ou de nulidade, conforme se decidiu no ac. deste TRC 28.9.2011.

            Na verdade, neste aresto decidiu-se a propósito desta matéria:

            “A sentença padece de nulidade, (cfr. artigo 389.º-A e 379.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CPP, uma vez que, sem margem para qualquer dúvida, não contém, na forma prevista na lei, os elementos estruturantes referidos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do primeiro dos referidos artigos.
            Esse vício é de conhecimento oficioso, como actualmente decorre com suficiente clareza do inciso, que sublinharemos a
bold, contido no n.º 2 do artigo 379.º: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º» (neste sentido, v.g., Acórdãos do STJ de 31-05-2001, proferido no Proc. n.º 260/01; 08-11-01 (Proc. n.º 3130/01) e 14-05-03 (Proc. n.º 518/03), todos publicados, em sumário, no Boletim Interno do STJ, n.ºs 51, 55 e 71, respectivamente; 02/02/2005, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pág. 188; 18-01-2007 (06P4806); 12-09-2007 (07P2583); e 17-10-2007 (07P3399), in www.dgsi.pt.)”.

            6. Em termos práticos e de resultado final, a solução acaba por ser a mesma:

            Remessa do processo para o tribunal de primeira instância a fim de ser suprido o vício, ou seja, reduzir a escrito e proceder à sua leitura, a respectiva sentença.

            Mas, na verdade, a lei não comina de nulidade, esta falta de redução a escrito da sentença. Quando o deveria ter sido, tendo esta sido proferida oralmente.

            E como já se deixou explícito, para além do dispositivo ditado para a acta, exigido pelo artigo 389º-A, nº 2, do CPP, a sentença, apesar de oral, contém os requisitos do nº 1, alíneas a), b), c) e d), daquele preceito.

            Pelo que vemos com dificuldade a existência de uma nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CPP, pois que a sentença contém esses requisitos. Apenas não estão reduzidos a escrito.

            Este vício não está expressamente cominado como nulidade. Mas que a sentença deveria ser reduzida a escrito e não proferida oralmente como o foi, também é incontornável, sobretudo como já se apontou, o que tal redução a escrito significa na própria execução da pena.

            Nestes termos, entendemos que estamos perante uma irregularidade que, ao abrigo do artigo 123º, nº 2, do CPP, este Tribunal tem o poder/dever de ordenar oficiosamente a reparação desta irregularidade, na medida em que ela afecta o valor do acto praticado.

IV

Decisão

            Por todo o exposto, nos termos da alínea a) do nº 6 do art. 417º e 123º, nº2, ambos do Cód. Proc. Penal, por haver circunstância – irregularidade que afecta a validade do acto - que obsta ao conhecimento do recurso, decide-se julgar a sua verificação e determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para sanação do vício, devendo ser reduzida a escrito a sentença e proceder-se à sua leitura.

            Sem custas.

Coimbra, 3 de Dezembro de 2014

                (Luís Teixeira - relator)


[1] Com a seguinte redacção:
2, “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado”.
[2] Conforme decidido no ac. do TRL supra citado.