Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
579/11.1TBVIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 18, 186, 236, 237, 238 CIRE
Sumário: 1. No caso de atraso na apresentação à insolvência, o simples avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora sobre o capital em dívida não integra a causação de prejuízo aos credores para os efeitos previstos na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

2. O deferimento inicial do requerimento para exoneração do passivo restante depende não apenas da não verificação dos fundamentos de indeferimento previstos no artigo 238º do CIRE, mas também, numa interpretação teleológica e em conformidade com a Constituição, da verificação da satisfação de um mínimo do passivo existente, mediante a liquidação do activo existente e pela cessão do rendimento disponível durante cinco anos.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 23 de Fevereiro de 2011, no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono e atribuição de agente de execução, GN (…) e RN (…) vieram apresentar-se à insolvência requerendo que ambos sejam declarados insolventes e bem assim a exoneração do passivo restante.

            Em síntese, para fundamentarem as suas pretensões, os requerentes alegaram que são casados um com o outro no regime da comunhão geral de bens, sendo ambos reformados, não tendo outras fontes de rendimentos além das suas pensões de reforma, auferindo o requerente uma pensão mensal no montante de € 246,36, enquanto a requerente aufere uma pensão no montante mensal de € 274,79, suportando uma renda de casa no valor mensal de € 190,10, bem como despesas com água, electricidade e gás no montante global mensal de € 80,00. Alegaram também que se constituíram fiadores e garantes pessoais de vários empréstimos contraídos pelo filho de ambos, bem como de uma sociedade detida por este, ascendendo as suas responsabilidades ao montante global de € 152.955,08, tendo como único bens um veículo do ano de 1972 e dez imóveis a que atribuíram o valor global de € 3.910,00.

            A 24 de Fevereiro de 2011, foi proferida sentença que declarou a insolvência de GN (…) e RN (…), declarando-se, além do mais, aberto incidente pleno de qualificação da insolvência e designando-se data para realização de assembleia de credores para apreciação do relatório.

            Realizou-se a assembleia de credores deliberando-se a liquidação imediata do activo, opondo-se o Banco (…) ao deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante.

            Após a realização de algumas diligências instrutórias, a 07 de Julho de 2011, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento para exoneração do passivo restante, por considerar verificado o condicionalismo previsto no artigo 238º, nº 1, alínea d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1].

            Inconformados com o indeferimento da pretensão de exoneração do passivo restante, GN (…) e RN (…) interpuseram recurso de apelação contra essa decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Por despacho de 07.07.11, foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado na P.I.;

2. Entendem os recorrentes que o decidido fez uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto no nº 1, alínea d) do art. 238º do CIRE;

3. O ónus de prova das causas constantes das alíneas a) a g) do nº 1 do art. 238º do CIRE, enquanto impeditivas da pretensão dos insolventes, não lhes cabe – n 2 do art. 342º do Cód. Civil;

4. Pelo que, devem ser cariados pelo Tribunal para os autos todos os elementos de prova que lhe permitem julgar procedentes qualquer uma das causas constantes das alíneas a) a g) do nº 1 do art. 238º do CIRE;

5. Sendo que, no caso sub Júdice não constam dos autos factos provados subsumíveis á aplicação da alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE;

6. A verificação da situação constante da alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, pressupõe a verificação cumulativa das seguintes situações:

a) Apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

b) Com prejuízo para os credores;

c) Conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

7. A data de vencimento dos créditos não corresponde necessariamente à data da constituição dos devedores em estado de insolvência;

8. Por norma esta ocorre posteriormente a esta data, quando existe uma manifesta impossibilidade de solver as dívidas;

9. Consta do despacho sob censura o seguinte: “Acresce que, objectivamente, se verifica ainda um prejuízo para os credores com o avolumar das dívidas dos requerentes e o protelamento do pagamento dos seus créditos.

Teremos assim de concluir pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, por se verificar o condicionalismo previsto no art. 238º, nº 1, alínea d).”

10. Salvo o devido respeito o atrás exposto é conclusivo e não assenta em factos concretos e dados como provados que justifiquem o aí decidido;

11. Pois, no conceito de prejuízo a que se alude na alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, tem sido entendimento da jurisprudência que esse prejuízo terá de ser autónomo e não o que se verifica com a simples contagem dos juros de mora;

12. Neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra – Proc. nº 460/10.1TBESP.C1, em que foi relator Moreira do Carmo – o qual pode ser consultado no site www.dgsi.pt.;

13. Assim, no caso sub Júdice também o referido requisito do prejuízo não se verifica;

14. Os insolventes vêm-se na actual situação por circunstâncias imprevistas e anómalas para as quais em nada contribuíram;

15. Os mesmos limitaram-se a pedido do seu filho a serem avalistas/fiadores em vários créditos contráidos em benefício de uma sociedade comercial da qual era sócio gerente esses seu filho;

16. Na qual, os insolventes não tinham qualquer interesse nem obtiveram qualquer benefício económico ou outro;

17. Já nessa data tinham apenas como rendimentos as suas parcas reformas;

18. Factos que eram do conhecimento das instituições bancárias que concederam os créditos;

19. Nada ocultaram dessas instituições;

20. Deram como garantia todo o seu património imobiliário;

21. Não estamos a falar de pessoas que de forma irresponsável contraíram dívidas ou recorreram de forma compulsiva ao crédito em benefício próprio sabendo que não tinham possibilidades futuras de pagar;

22. Limitaram-se a aceder ao pedido do seu filho, sem terem conhecimento posterior sobre o cumprimento ou incumprimento deses créditos;

23. Pois, além de pessoas de avançadas idade e sem conhecimentos de índole finaceira, os incumprimentos foram-lhe sendo ocultados pelo seu filho;

24. Daí que só muito recentemente tivessem conhecimento da verdadeira situação de incumprimento;

25. O despacho sob censura fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no nº 1 al. d) do art. 238º do CIRE;

26. Impondo-se a revogação do referido despacho por outro de acordo com as pretensão dos insolventes”.

            Não foram oferecidas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, dada a simplicidade da questão decidenda e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

A única questão a decidir é a de saber se está preenchido o fundamento legal de indeferimento do requerimento de exoneração do passivo previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, ou seja, se os recorrentes se abstiveram de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

3. Fundamentos de facto implícitos[2] na decisão sob censura e resultantes da prova documental junta de folhas 9 a 36


3.1

            Por sentença proferida a 24 de Fevereiro de 2011, já transitada em julgado, GN (…), nascido a 21 de Dezembro de 1934 e RN (…), nascida a 25 de Fevereiro de 1934, foram declarados em estado de insolvência.

3.2

            GN (…) e RN (…) contraíram casamento um com o outro, sob o regime da comunhão de bens, no dia 11 de Dezembro de 1965, no Estado de Guanabara, Brasil.

3.3

            GN (…) aufere uma pensão de reforma no montante mensal de € 246,36.

3.4

            RN (…) aufere uma pensão de reforma no montante mensal de € 274,79.

3.5

            GN (…) e RN (…) são devedores[3] da quantia global de pelo menos € 103.539,06[4], montante no qual se inclui o crédito do Banco (…), SA, no montante de € 63,975,72, vencido desde 15 de Abril de 2006, o crédito do Banco (…), no montante de € 12.843,38, vencido desde 07 de Agosto de 2009, o crédito de (…)A.G., no montante global de € 20.871,02[5], o crédito da M (…) , SA, no montante de € 5.849,44, vencido desde 14 de Janeiro de 2008.

3.6

            GN (…) e RN (…) não têm outros rendimentos além das suas pensões de reforma e são titulares de dez prédios rústicos avaliados, na totalidade, no valor de € 3.910,00.

3.7

            GN (…) e RN (…)pagam renda de casa no valor mensal de € 190,10, bem como despesas com água, electricidade e gás no montante global mensal de € 80,00.      

3.8

            No âmbito do processo da Segurança Social do Centro Distrital de Viseu nº 195151/2010, a 05 de Janeiro de 2011, foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono e atribuição de agente de execução a GN (…) e RN (…)

4. Fundamentos de direito

4.1 Os recorrentes abstiveram-se de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica?

Em síntese, os recorrentes baseiam essencialmente a procedência do presente recurso de apelação na alegação de que a data do vencimento dos créditos não tem que coincidir com a situação de insolvência e que não há factos concretos que permitam concluir que um eventual atraso na apresentação à insolvência dos recorrentes causou prejuízos autónomos aos credores.

Antes de mais, recordemos os normativos pertinentes.

            “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo” (artigo 235º do CIRE).

            Sempre que esteja em causa requerimento de insolvência por apresentação, o pedido de exoneração do passivo restante deve ser feito em tal requerimento (artigo 236º, nº 1, do CIRE).

            “Do requerimento de exoneração do passivo restante consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes” (artigo 236º, nº 3, do CIRE).

            “Na assembleia de apreciação do relatório é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento” (artigo 236º, nº 4, do CIRE).

            Nos termos do disposto no artigo 237º do CIRE, a “concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:

a) Não exista motivo para o indeferimento liminar[6] do pedido por força do disposto no artigo seguinte;

b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;

c) Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;

d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração”.

O artigo 238º, nº 1, do CIRE dispõe que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

a) For apresentado fora de prazo;

b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”

“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (artigo 186º, nº 1, do CIRE).

            No caso dos autos, sendo os requerentes da insolvência pessoas singulares e não resultando da factualidade alegada que fossem titulares de empresa, não impendia sobre eles o dever de apresentação à insolvência (artigo 18º, nº 2, do CIRE)[7].

No entanto, mesmo não estando os insolventes obrigados a apresentarem-se à insolvência, importa ainda assim apurar se tendo-se abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência houve prejuízo para os credores, e se sabiam, ou não podiam ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica (artigo 238º, nº 1, alínea d), do CIRE).

A exoneração do passivo restante, como se expõe no número 45 do preâmbulo do decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março que aprovou o CIRE, constitui o acolhimento entre nós do “princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência”, princípio que “é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

            Suscita-nos algumas reservas a afirmação contida no mesmo ponto do citado preâmbulo de que o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, na medida em que dos requisitos necessários para o deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante não consta que seja necessária a satisfação de um valor mínimo dos créditos dos credores do insolvente.

Assim, interpretadas literalmente as referidas normas, a não se relevar a alusão à exoneração do passivo restante, referência que tem ínsita a necessária satisfação de pelo menos algum passivo, permitindo o funcionamento do instituto em análise mesmo em casos em que à partida se sabe que não se logrará qualquer satisfação do passivo, agravando-se mais ainda o passivo por força das despesas com o fiduciário (artigo 240º do CIRE), afigura-se-nos que tal regime constituirá uma ofensa desproporcionada e injustificada dos direitos do credores, incurso em inconstitucionalidade material por conjugação dos artigos 18º, nº 2 e 62º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa[8].

Deste modo, entende-se que o deferimento inicial do requerimento para exoneração do passivo restante depende não apenas da não verificação dos fundamentos de indeferimento previstos no artigo 238º do CIRE[9], mas também, pelas razões já antes aduzidas, numa interpretação teleológica e em conformidade com a Constituição, da verificação da satisfação de um mínimo do passivo existente, mediante a liquidação do activo existente e pela cessão do rendimento disponível durante cinco anos.

Os credores do insolvente, enquanto sujeitos directamente afectados pela procedência do requerimento do insolvente para exoneração do passivo restante, são admitidos a pronunciar-se sobre a pretensão do insolvente (artigos 236º, nº 4 e 238º, nº 2, ambos do CIRE). No entanto, nestes normativos, nem em qualquer outro normativo do CIRE se confere aos credores o poder de mediante a sua mera oposição obstarem à procedência da pretensão dos insolventes para exoneração do passivo restante[10].

No caso em apreço, dada a delimitação objectiva do recurso em função das respectivas conclusões, importa verificar se os recorrentes se atrasaram na apresentação à insolvência e, na hipótese afirmativa, se por causa desse atraso causaram prejuízos aos credores, sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

A resposta à existência de atraso dos recorrentes na apresentação à insolvência implica, antes de mais, a determinação da data em que se verificou a insolvência dos mesmos.

Nos termos do disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

Tivemos já oportunidade em momento anterior desta decisão de aludir a alguma escassez factual a determinar alguma transigência relativamente a certo tipo de alegações, por não serem postas em crise pelas partes e porque essa insuficiência não obsta à decisão deste recurso, como melhor se verá adiante.

Não obstante o aludido défice factual que nos impede de caracterizar a que título respondem os recorrentes, face à globalidade da factualidade provada é possível concluir, dada a exiguidade dos rendimentos e do património dos recorrentes que os mesmos se acham em situação de insolvência pelo menos desde 15 de Abril de 2006, pois é patente que não dispunham de meios para solver a dívida então vencida no montante de € 63.975,72.

Na verdade, com pensões mensais que totalizam € 521,15, com imóveis avaliados globalmente em € 3.910,00, tendo em conta as despesas necessárias à sobrevivência de qualquer pessoa, como poderiam os recorrentes proceder ao pagamento do crédito de € 63.975,72?

As alegações dos recorrentes de que são meros fiadores ou avalistas do filho de ambos e de uma sociedade de que este era sócio gerente, bem como que o referido descendente lhes ocultou a situação real das dívidas não se mostram comprovadas.

Assim, por tudo quanto precede pode concluir-se que os recorrentes se acham em estado de insolvência pelo menos desde 15 de Abril de 2006.

Uma vez que os recorrentes apenas em 2010, em data que precisamente se desconhece, terão requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono e atribuição de agente de execução[11], há que concluir, com segurança, que se apresentaram à insolvência decorridos mais de seis meses sobre a verificação da insolvência de ambos.

E resultou do atraso dos recorrentes na apresentação à insolvência prejuízo para os credores?

A jurisprudência acha-se dividida na concretização deste segmento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

Na verdade, entendem alguns, que constituem prejuízo para os efeitos deste normativo, os juros devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias[12]. Numa posição intermédia, sustenta-se que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência é lícito presumir, com base em presunção natural, a existência de prejuízo para os credores[13]. Ao invés, em nítida contraposição, sustentam outros, ainda que com argumentações não coincidentes, que os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias não integram o prejuízo requerido pela previsão legal em análise[14].

Apreciemos tomando posição neste dissídio jurisprudencial.

O processo de insolvência é um processo executivo especial e universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artigo 1º do CIRE).

O objectivo precípuo do processo de insolvência é assim a satisfação total ou parcial dos créditos de um insolvente, tendo a generalidade das obrigações incumpridas a natureza de obrigações pecuniárias e, quando não é esse o caso, a lei prevê casos de conversão de prestações de facto ou de coisas em prestações pecuniárias (vejam-se, por exemplo, os artigos 102º e 103 do CIRE).

Actualmente, ao invés do que sucedia no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 151º, nº 1) e, anteriormente, no Código de Processo Civil (artigo 1196º do Código de Processo Civil), a declaração de insolvência não obsta à contagem de juros de mora, apenas sucedendo que tais créditos por juros de mora constituídos após a declaração de insolvência são havidos como créditos subordinados (artigo 48º, alínea b), do CIRE), o que implica que apenas serão solvidos depois de integralmente pagos os créditos com garantia real, os créditos privilegiados e os créditos comuns e pela ordem por que vêm legalmente identificados no artigo 48º, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 177º, nº 1, do CIRE).

O atraso ou o retardamento no cumprimento da obrigação imputável ao devedor (presumindo-se a culpa, ex vi artigo 799º, nº 1, do Código Civil) constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806º, nº 1, do Código Civil). A lei dispensa assim o credor de provar o prejuízo sofrido, ficcionando que o dano corresponde, em princípio, aos frutos civis (artigo 212º, nº 2, do Código Civil) que o capital em dívida era susceptível de produzir tendo em conta a taxa supletiva legal[15], salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estabelecido um juro moratório diferente do legal (artigo 806º, nº 2, do Código Civil). Nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o credor pode ainda exigir uma indemnização suplementar desde que prove que a mora lhe causou danos de montante superior aos juros legalmente previstos (artigo 806º, nº 3, do Código Civil).

Na economia desta decisão, este excurso pelo regime da mora nas obrigações pecuniárias justifica-se para comprovar como a contagem de juros de mora é uma consequência necessária do atraso no cumprimento daquelas obrigações, sendo por isso uma realidade omnipresente no processo de insolvência. Dito de outro modo: face ao regime legal de sancionamento da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias, o legislador do CIRE não podia deixar de saber que as situações de insolvência estão necessariamente associadas a casos em que se verifica a contagem de juros de mora.

Se assim é, como cremos que resulta demonstrado pelo que precede, qual o sentido a atribuir à causação de prejuízo para os credores com o atraso na apresentação à insolvência?

Se acaso o legislador pretendesse abarcar com tal previsão os prejuízos decorrentes da simples mora no cumprimento de obrigações pecuniárias, seria desnecessária a expressa alusão à causação de danos por força do atraso na apresentação à insolvência, bastando apenas que previsse o atraso na apresentação à insolvência para que tais danos fossem contemplados.

Neste quadro normativo, ao autonomizar a provocação de danos consequentes do retardamento na apresentação à insolvência, afigura-se-nos que o legislador terá tido em vista algo mais do que os simples juros advindos da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias. Tendo em conta a teleologia subjacente ao instituto de exoneração do passivo restante, parece que tal requisito visará a prática pelo devedor de actos que levem à dissipação do património ou à contracção de novas responsabilidades após a verificação da situação de insolvência.

Daí que também nos afastemos daqueles que sustentam que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência, se presume judicialmente a causação de prejuízos aos credores, cabendo ao insolvente a alegação e prova de factos que ilidam aquela presunção.

E afastamo-nos desta orientação por duas razões.

Em primeiro lugar, porque embora invocando a utilização de uma presunção judicial para comprovação da causação de prejuízo aos credores, a orientação criticada, na prática, cria uma presunção legal iuris tantum ilidível por prova do contrário (artigo 350º, nº 2, do Código Civil), quando o resultado probatório obtido por presunção judicial é ilidível mediante simples contraprova (artigo 346º do Código Civil).

Em segundo lugar, porque mesmo que se conceda na verificação dos requisitos para que opere a aludida presunção judicial, sempre ficará por demonstrar qual o prejuízo concreto causado com o atraso na apresentação (contagem de juros, contracção de novas dívidas, diminuição do activo?), o que na perspectiva que temos vindo a defender será insuficiente para o preenchimento da previsão legal interpretanda.

Assim, em conclusão, uma vez que apenas resulta demonstrado nos autos o acréscimo do passivo por causa da contagem de juros de mora e em consequência do atraso na apresentação à insolvência por parte dos recorrentes, não se comprovando que por causa desse atraso tenha ocorrido a contracção de novas responsabilidades ou a dissipação de activo pelos insolventes, não se preenche a previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, devendo a decisão sob censura ser revogada.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em revogar o despacho proferido a 07 de Julho de 2011, devendo prosseguir o incidente de exoneração do passivo restante com a prolação do despacho a que se refere o artigo 239º do CIRE, se a tanto outra causa não obstar; sem custas.


***

O presente acórdão compõe-se de catorze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Coimbra, 13 de Setembro de 2011

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Doravante citado abreviadamente como CIRE.
[2] Ao invés do que é de boa técnica, a decisão sob censura não procedeu à enumeração dos factos provados. A decisão recorrida só não incorre na nulidade prevista no artigo 668º, nº 1, primeira parte da alínea b), do Código de Processo Civil, por de forma miscigenada com os fundamentos de direito ter indicado os fundamentos de facto que julgou relevantes, vício que em todo o caso não é de conhecimento oficioso.
[3] A formulação é tecnicamente imperfeita e apenas se transige no seu uso a fim de evitar mais delongas, sem quaisquer ganhos úteis. O procedimento correcto consistiria em especificar a fonte concreta de cada um dos débitos dos recorrentes, com indicação dos seus montantes e prazos de pagamentos.
[4] E não € 103.450,06 conforme se exarou no despacho sob censura, como resulta da simples adição dos valores nele mencionados.
[5] Relativamente a este crédito indicam-se no despacho sob censura duas datas de vencimento por valores parcelares cuja soma excede o valor global do crédito. Por isso, havendo necessariamente algum erro ou omissão, optou-se por não mencionar as aludidas datas de vencimento relativamente a este crédito.
[6] Assinale-se a manifesta impropriedade legislativa na qualificação dos fundamentos de indeferimento do requerimento para exoneração do passivo restante como constituindo um indeferimento liminar pois que, como expressamente resulta do disposto no nº 2, do artigo 238º do CIRE, o despacho de indeferimento apenas é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência, na assembleia de credores para apreciação do relatório.
[7] Na nossa perspectiva, a qualidade de sócio ou gerente de uma sociedade comercial não confere à pessoa singular em causa a qualidade de titular de empresa que se integre na esfera jurídica dessa sociedade. Em nosso entender, para a determinação de tal titularidade, o que releva é que a própria pessoa singular seja titular de uma empresa. A razão de ser do dever de apresentação de pessoa singular apenas nos casos de titularidade de empresa prende-se com as presumíveis consequências económicas mais gravosas da não apresentação à insolvência nesses casos (neste sentido veja-se, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora 2009, Catarina Serra, páginas 341 a 343). Por isso, discordamos da interpretação seguida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de Abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1, acessível no site do ITIJ.

[8] Sobre o alcance do conceito normativo de direito de propriedade, do ponto de vista constitucional, veja-se, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2010, 2ª edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 1247 e 1248, anotação VIII e página 1261, anotação XXI.
[9] Como esclarecem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, página 784, terceiro parágrafo, as alíneas b) a g), do nº 1, do artigo 238º do CIRE definem, pela negativa, requisitos de cuja verificação depende a exoneração. Importa não olvidar que por força do disposto no artigo 11º do CIRE as regras gerais de distribuição do ónus de alegação e prova dos factos são atenuadas por força da intervenção oficiosa do tribunal.
[10] Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Outubro de 2008, acessível no site do ITIJ, processo 0835723.
[11] A tempestividade da apresentação à insolvência tem que se aferir tendo presente a previsão do artigo 33º, nº 4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei nº 47/2007, de 28 de Agosto.
[12] Neste sentido, cingindo-nos às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site do ITIJ:
                - acórdão da Relação de Guimarães, de 30 de Abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1 [5];
                - acórdão da Relação do Porto, de 15 de Julho de 2009, proferido no processo nº 6848/08.0TBMTS.P1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 1013/08.0TJLSB-D.L1-8;
- acórdão da Relação do Porto, de 20 de Abril de 2010, proferido no processo nº 1617/09.3TBVZ-C.P1;
- acórdão da Relação de Coimbra, de 14 de Dezembro de 2010, proferido no processo nº 326/10.5T2AVR-B.C1.
[13] Neste sentido, além do já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Dezembro de 2010, o acórdão do mesmo tribunal de 07 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 72/10.0TBSEI-D.C1.
[14] Neste sentido, cingindo-nos também às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site do ITIJ:
                - acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de Novembro de 2009, proferido no processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1-1
                - acórdão da Relação do Porto, de 11 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 347/08.8TBVCD-D.P1;
                - acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Fevereiro de 2010, proferido no processo nº 1793/09.5TBFIG-E.C1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 19 de Maio de 2010, proferido no processo nº 1634/09.3TBGDM-B.P1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 30 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 430/09.2TJPRT.P1 [2];
                - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Outubro de 2010, proferido no processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1;
                - acórdão da Relação do Porto de 18 de Novembro de 2010, proferido no processo nº 1826/09.5TJPRT-E.P1;
- acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2010, proferido no processo nº 2575/09.0TBALM.L1-1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de Março de 2011, proferido no processo nº 444/10.0TBPNI-D.L1-6;
                - acórdão da Relação de Coimbra, de 07 de Junho de 2011, proferido no processo nº 460/10.1TBESP.C1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 2011, proferido no processo nº 1189/10.6TYLSB-B.L1-8.
[15] Afastamo-nos da posição daqueles que entendem que os juros de mora não constituem um prejuízo quer na modalidade de dano emergente, quer na modalidade de lucro cessante (assim veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2), pois na nossa perspectiva constituem um lucro cessante, correspondendo à remuneração que o titular do capital auferiria se aplicasse o capital que ainda não lhe foi pago. É a natureza frutífera do capital que subjaz à solução legal de dispensar o credor de provar o dano sofrido com o atraso no cumprimento da obrigação pecuniária.