Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1007/19.0T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
COMPRA E VENDA
TRANSFERÊNCIA DO RISCO SOBRE A COISA
ASSALTO ÀS INSTALAÇÕES DO VENDEDOR
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 408.º, N.º 1, 796.º, N.º 1, E 874.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Em regra, se nada for acordado em contrário, no contrato de compra e venda ou qualquer outro translativo da propriedade por mero efeito do contrato, o comprador suporta o risco da perda ou deterioração da coisa a partir da conclusão do contrato, independentemente da entrega da coisa e do pagamento do preço.

II – Porém, a questão da transferência do risco mostra-se ultrapassada se, desparecida uma parte do material na sequência de um assalto às instalações da vendedora, esta acedeu em substituir o material desaparecido por outro semelhante.

III – Se, quanto à outra parte do material, ocorreu recusa de entrega por parte da vendedora, que também não procedeu à substituição acordada, o comprador tem o direito a recusar o respetivo pagamento enquanto a mercadoria vendida não lhe for entregue, fundamento de defesa/oposição que pode fazer vingar em embargos à execução movida por tal vendedora.

Decisão Texto Integral:

Processo n° 1007/19.0T8SRE-A.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

O... Unipessoal, Lda., veio, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe é movida por F...Lda., deduzir oposição por meio de embargos de Executado, defendendo-se:

por exceção, invocando a nulidade do processo por falta de título executivo;

por impugnação, alegando, em síntese:

em 26 de dezembro de 2018 a executada adquiriu à exequente a totalidade do recheio do espaço de eventos (Interior e Exterior), sito na ..., ..., pelo preço total de 80.000,00 €, liquidando a executada de imediato a quantia de 50.000 €;

quando a executada ia começar a retirar o referido material das instalações da exequente, verificaram que nessa mesma noite anterior o mesmo tinha sido assaltado, tendo de imediato a funcionária da exequente chamado as autoridades competentes;

informando a exequente de que pretendia anular o negócio, a exequente disse-lhe que tinha muito material deste género no ... e que depois compensaria a ora executada com mais desse material;

a executada começou então a proceder ao levantamento do material que ficou naquelas instalações da ..., sendo que, em 23 de janeiro de 2019, quando foi para levantar mais uma parte do material que estava no imóvel da exequente, constatou que as fechaduras tinham sido mudadas, dizendo-lhe a funcionária da exequente eu não poderia retirar mais nada dentro do edifício;

daí ter a executada não ter pago as duas ultimas quantias, tendo cancelado este e um outro cheque de 20.000 €.

A Exequente não deduziu oposição aos embargos.

É proferido Despacho Saneador a julgar improcedente a exceção de falta de título, enunciando como temas de prova determinar se a exequente não entregou à executada/embargante todo o material que esta lhe adquiriu e que faz parte das faturas ns. ...46 e ...47.

 Procedeu-se a audiência final sendo proferida Sentença a julgar “totalmente procedentes os embargos à execução, determinando-se a extinção da execução quanto à executada, devendo ser, de imediato, levantada eventual penhora efetuada nos autos principais”.


*

Não se conformando com tal decisão, a Exequente interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto contra a douta sentença datada de 28/10/2021, notificada ao recorrente, por ofício via CITIUS, cuja elaboração foi certificada pelo sistema em 29/10/2021, pela qual foram julgados totalmente procedentes os presentes embargos e determinada a extinção da execução.

2.ª A recorrente não se conforma com a douta sentença porque entende que o Tribunal a quo errou quer no juízo decisório produzido quanto à matéria de facto que considerou dada como provada, quer quanto ao juízo de direito que produziu sobre os factos que foram e deveriam ter sido apurados na sequência do julgamento realizado.

3.ª No que respeita à matéria de facto, a prova produzida em julgamento, cuja reapreciação se irá realizar, impunha que os pontos dados como provados sob os n.ºs 3) - segmento “tal recheio é o que consta do documento junto pela executada como Doc. 3, com a P.I. de embargos -, 4), 5), 6), 7) 8) 9), 10), 11) e 12) fossem dados como não provados e, subsidiariamente, além da referida impugnação que se mantém, fosse dado como provado que:

- A embargante confessou-se devedora da quantia dada à execução;

- A embargante recebeu as chaves do imóvel no dia em que celebrou o negócio e foi pago o preço;

- propriedade de todo o material previsto foi transferida aquando da realização do negócio;

- A embargante não reclamou, nem devolveu as faturas.

4.ª Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, e que importa reapreciar, são:

- A matéria confessada na PI de embargos;

- Depoimento da testemunha AA, prestado na sessão de julgamento realizada em 09-09-2021, gravado no ficheiro informático 20210909101736_2931314_2870723, entre os 04m17ss e os 04m26ss, entre os 10m07ss e os 10m48ss, entre os 09m40ss e os 10m04ss, entre os 10m57ss e os 11m13ss, entre os 04m57ss e os 05m02ss;

- Depoimento da testemunha BB, prestado na sessão realizada em 09-09-2021, gravado no ficheiro informático 20210909103358_2931314_2870723, nos segmentos compreendidos entre os 09m01ss e os 09m36ss e entre os 09m56ss e os 10m54ss;

- Depoimento da testemunha CC, prestado na sessão realizada em 09-09-2021, gravado no ficheiro informático 20210909104603_2931314_2870723, no segmento compreendido entre os 12m36ss e os 14m40ss

- Depoimento da testemunha DD, prestado na sessão realizada em 07-09-2021, gravado no ficheiro informático 20210909111149_2931314_2870723, nos segmentos compreendidos entre os 04m20ss aos 05m46ss, entre os 36m04ss e os 37m06ss, entre os 37m34ss aos 38m13ss

5.ª O Tribunal afirma ter baseado a sua convicção na “conjunta e crítica de toda a prova produzida, nomeadamente, as testemunhas ouvidas, documentos juntos, valorados ainda à luz das normais regras da experiência comum”.

6.ª Salvo devido respeito, e melhor opinião, e pela falta de quaisquer outros elementos, os depoimentos prestados não poderiam ser valorados da forma que foram, na medida em que todas as testemunhas inquiridas no âmbito dos presentes autos, ou eram funcionárias da recorrida, ou tinham interesse, ainda que indireto, na causa.

7.ª Desde logo, o depoimento do Sr. EE, não deveria ter sido valorado na medida em que sendo pai do legal representante da recorrida, é também gerente de empresas pertencentes ao mesmo grupo, na medida em que várias vezes se referiu no seu depoimento como “nossa” empresa; algo que também foi corroborado pela testemunha AA, o que só por si revela o seu interesse no desfecho da causa.

8.ª Não desconfiou nem por um segundo o Tribunal a quo, da parcialidade com que o mesmo foi prestado, bem como das restantes testemunhas que trabalhavam para empresas do mesmo grupo.

9.ª De facto é inquestionável, que foi realizado um contrato de compra e venda de um material em lote entre a recorrente e a recorrida pelo valor de 80.000,00€, quantia essa que a própria recorrida se confessou devedora na sua PI de embargos (artigo 30.º), bem como confessou ter apenas liquidado a quantia de 50.000,00€ (artigo 32.º).

10.ª Sendo que por maioria de razão, já a recorrida tinha confessado ser devedora da quantia dada à estampa, devendo esse facto ter sido valorado nos termos do n.º 1 do artigo 356.º do Código Civil – “A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro ato do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado.”, e toda a prova produzida em contrário não deveria ter sido valorada.

11.ª Quanto à suposta totalidade do recheio, o Tribunal a quo baseou-se no documento e junto com a PI de embargos, documento esse sem qualquer elemento que identifique as partes, sem assinaturas, sem data, pelo que o seu valor probatório é diminuto, e a prova testemunhal que foi produzida sobre o indicado documento foi pelo pai do legal representante, o qual tem interesse no desfecho da causa.

12.ª Quanto à data em que foi celebrado o negócio e que foi feito o pagamento do preço por parte da recorrida, de facto resulta que o mesmo foi celebrado em Novembro de 2018, no entanto não resulta da prova produzida que o pagamento do preço tenha sido feito no dia em que se foi proceder ao levantamento da primeira carga de mercadoria, aliás o que de facto resulta é que o negócio foi feito, o preço foi pago e foram entregues as chaves do espaço onde se encontrava a mercadoria.

13.ª O Sr. DD, afirmou em sede de audiência de julgamento que o negócio foi celebrado no início de Novembro, data em que foram entregues os cheques, resultando ainda que foram também entregues as chaves do imóvel através do depoimento do Sr. AA.

14.ª Uma devida valoração dos depoimentos prestados sempre levariam a dar como provado que a recorrida recebeu as chaves do imóvel no dia em que celebrou o negócio e foi pago o preço; que a propriedade de todo o material previsto foi transferida aquando da realização do negócio.

15.ª Quanto ao alegado “assalto” às instalações, como pôde o Tribunal a quo ter dado como provado tal facto sem que tivesse sido junto qualquer participação da autoridade policial competente, quando foi afirmado veementemente que as mesmas foram convocadas e compareceram no local, o que só por si seria bastante para dar tal facto como não provado.

16.ª Nem tão pouco as testemunhas souberam explicar quem chamou as autoridades, tendo mesmo chegado a afirmar que o local nem parecia ter sido vandalizado.

17.ª Estamos em crer que o facto constante no ponto 6) dos factos provados, carecia de suporte documental que comprovasse a sua veracidade, o que como se vê não existe, razão pela qual não deveria ter sido dado como provado, questão essa que sempre prejudicará os factos que se seguem nomeadamente os pontos: 7), 8) e 9) e 10) e 11) e 12) do probatório.

18.ª No que concerne ao ponto 11, o Tribunal a quo alicerça-se no documento 1 junto com a PI de embargos. Da análise do mesmo resulta que se trata de uma comunicação postal supostamente enviada pela recorrida à recorrente, alegadamente em Março de 2019, e portanto não poderia produzir os seus efeitos.

19.ª Não se sabe se a carta que foi apresentada corresponde ao registo e aviso de receção que a acompanham, uma vez que a mesma não contém qualquer indicação de data em que foi redigida, nem tão pouco se sabe se a assinatura da mesma corresponde à do legal representante da recorrida.

20.ªMas olhando para o conteúdo da comunicação denota-se que a recorrida não reclama dos valores das faturas, nem tão pouco as veio devolver, por achar não serem devidas, fazendo apenas referência a um lapso na data.

21.ª Posto isto, e não tendo sido as faturas remetidas, devolvidas ou o seu conteúdo reclamado, dúvidas não podem restar que a recorrida se assumiu devedora da quantia em questão, razão pela qual deveria ter sido dado como provado que a recorrida não reclamou, nem devolveu as faturas, e se confessou devedora da quantia dada à execução.

22.ª Quanto ao facto constante do ponto 12, carecia de suporte documental de base, nomeadamente a junção dos inventários da empresa, nem tão pouco qualquer outra testemunha sem ser o pai do legal representante da recorrido sabia efetivamente quais os tipos e quantidades do material negociado.

23.ª O economista da empresa, Sr. CC, que não conseguiu justificar como qual o critério usado para atribuir o valor ao material, e bem assim dar a convicção ao Tribunal a quo de que “o material retirado valia menos de que as duas faturas emitidas pela exequente no total de 50.000,00€” (sic.)

24.ª Entendemos que a questão fulcral de facto, e que levará a uma correta solução de direito (que infra se desenvolverá), será o momento da concretização do negócio e a transferência da posse do material negociado materializada com a entrega das chaves e recebimento do preço, factos que integram um contrato típico de compra e venda.

25.ª Como se viu, o negócio foi celebrado e concretizado muito antes do começo da retirada do material, razão pela qual o material já se encontrava na esfera jurídica da recorrida, pelo que qualquer acontecimento que viesse a ocorrer nunca poderia ser imputado à aqui recorrente.

26.ª Face à análise da matéria de facto realizada no decorrer das presentes alegações, surgem como questões essenciais apreciar juridicamente:

- Da obrigação incorporada no título executivo;

- Do contrato de compra e venda;

- Do Risco.

27.ª De facto o cheque em causa foi dado à execução como mero quirógrafo, tendo sido invocada a factualidade atinente à causa petendi subjacente à sua emissão, pelo que a sua condição como título executivo é inquestionável.

28.ª Entre a recorrente e a recorrida foi celebrado um contrato típico de compra a venda nos termos do artigo 874.º do Código Civil, cujos efeitos se encontram previstos no artigo 879.º do mesmo diploma.

29.ª Como visto o negócio foi celebrado no início do Novembro de 2018, data que que foi pago o preço e entregue as chaves do imóvel, e por conseguinte reunidos todos os requisitos supra elencados, pelo que os seus efeitos do negócio jurídico se cifram naquela data, pois foi aí que se transferiu a posse dos bens, pelo que o domínio sobre a coisa já corria por conta da recorrida.

30.ª Assim sendo e mesmo pondo a hipótese de qualquer ato de vandalismo, o que não se concede, porque, tal facto nunca poderia ser imputado como incumprimento por parte da recorrente em harmonia com o n.º 1 do artigo 796 do Código Civil:

31.ª A recorrida não poderia ignorar que dadas as condições do local onde se encontravam os bens, seria urgente proceder à sua retirada, até porque visitou o espaço onde se encontravam os bens já depois de o mesmo ser atingido por uma tempestade que deteriorou parte do edifício, o que não a impediu de realizar o negócio e de fazer a oferta do valor.

32.ª Ao transferir a propriedade da coisa por mero efeito do contrato, a recorrente passou de proprietária a mera depositária dos bens.

33.ª A douta sentença nos exatos termos em que foi proferida, violou o disposto nos artigos 874.º, 878.º, e 796.º, n.º 1 do Código Civil.

34.ªmPelo que dúvidas não restam quanto à procedência do presente recurso.

Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. superiormente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido, ser julgado totalmente procedente por provado e, em consequência deve ser anulada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue totalmente improcedentes os presentes embargos.


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Proferido despacho pelo juiz relator a determinar a notificação das partes para se pronunciarem sobre a questão da inutilidade do conhecimento da impugnação deduzida à matéria de facto, por aquela se encontrar admitida por acordo face à ausência de dedução de oposição aos embargos, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 732º, nº3 e 567º, nº1, do CPC,

veio a Exequente/Apelante, pronunciar-se no sentido de que tal matéria não se encontra admitida por acordo, devendo o tribunal proceder à reapreciação da matéria de facto, com a seguinte alegação:

1. No requerimento executivo apresentado pela ora recorrente afirmou ter vendido e entregue à recorrida os “bens do ativo imobilizado a que se referem as faturas ns. ...46 e ...47”.

2. Por sua vez a recorrida, afirma em sede de embargos que o material negociado não lhe foi entregue, sustentando o mesmo com um documento elaborado pela mesma e sobre o qual não foi feita prova cabal para lhe conferir força probatória, uma vez que as próprias testemunhas não sabiam que material seria para retirar.

3. Tal posição por parte da recorrida não constituiu matéria de excepção mas sim de impugnação fundamentada, pelo que tal matéria nunca será de considerar admitida por acordo.

4. A isto há que acrescer que a recorrida se confessou devedora da quantia reclamada nos autos principais de execução e porquanto recebeu todo o material negociado, bem como aceitou as faturas que lhe foram remetidas uma vez que não as reclamou nem devolveu.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.  


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1. Se impugnação deduzida em sede de matéria de facto respeita a factos admitidos por confissão
2. Em caso negativo, apreciação da impugnação deduzida em sede de matéria de facto.
3. Aditamento de novos factos.
4. Se, à data da retirada do material, o risco perecimento do mesmo se havia transferido para a executada/embargante.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

Pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos:

1) A exequente instaurou, em 12-08-2019, requerimento executivo contra a executada, com base em cheque preenchido, assinado e entregue pela executada, com o nº ...81, sacado sobre do E...SA., no valor de € 10.000 (dez mil euros), emitido em 15.03.2019 – cfr. documento junto na execução.

2) O referido cheque foi apresentado a pagamento em 05.06.2019, tendo sido devolvido com indicação e fundamento de “cheque extravio” – documento junto na execução.

3) Em novembro de 2018, a executada adquiriu à exequente a totalidade do recheio do espaço de eventos (Interior e Exterior), sito na ..., ..., pelo preço total de 80.000,00€ (oitenta mil euros) – tal recheio é o que consta do documento junto pela executada como Doc. 3, com a p.i. de embargos.

4) Uma das condições do negócio era a retirada de todo o material do aludido armazém pela executada, devendo ser emitidas faturas pela exequente que suportassem os montantes que, nessa sequência, iriam ser pagos pela sociedade executada à medida que os ia recolhendo do local.

5) No dia em que iniciaram a retirada dos bens, a executada entregou à exequente 5 (cinco) cheques pré-datados, a saber: um de 15 mil euros, o segundo de 15 mil euros, o terceiro de 20 mil euros; o quarto de vinte mil euros e o último de dez mil euros.

6) Quando a executada começou a retirar o referido material das instalações da exequente, verificou que na noite anterior o armazém tinha sido assaltado, tendo sido de imediato chamadas as autoridades competentes.

7) Perante esta situação, a executada de imediato comunicou à exequente esse facto e informou que pretendia anular o referido negócio, sendo que a exequente informou que tinha muito mais material desse género no seu estabelecimento sito no ..., que depois compensaria com mais quantidade de material à executada, dizendo-lhe para esta não cancelar o negócio.

8) Entretanto, a executada acreditou na exequente e começou a proceder ao levantamento o material que ficou no estabelecimento sito na ..., ..., tendo sido, nessa sequência, pagos à exequente os três primeiros cheques, no total de 50.000,00 euros.

9) Em janeiro de 2019, a executada foi para levantar mais uma parte do material que estava no mencionado armazém, mas chegando ao local constatou que as fechaduras do portão principal tinham sido alteradas, tendo sido informada por uma Leiloeira que procedeu à mudança das chaves de acesso ao aludido espaço.

10) Desde essa altura, a executada não mais pôde retirar os materiais que se encontravam nesse edifício, nomeadamente os que constam do documento junto pela embargante com a sua p.i. de embargos (última folha do doc. 3, sob o título “material em falta que não foi retirado).

11) Por carta de março de 2019 enviada pela executada à exequente, através de registo com aviso de receção, a primeira comunicou à segunda que:

“ …Vimos por este meio informar que foi liquidado até à data 50.000€.

A referida quantia foi paga da seguinte forma:

- 15.000€ em numerário conforme foi solicitado pelo Sr. FF (à troca do cheque n.º ...77 do mesmo valor) e entregue nas nossas instalações.

- Cheque n.º ...78 no valor de 15.000€ emitido a 15-12-2018

- Cheque n.º ...79 no valor de 20.000€ emitido a 15-01-2019, tendo o mesmo sido depositado indevidamente 5 dias antes da data acordada (conforme cópia do cheque)

Foram emitidas duas faturas pela vossa empresa: - fatura n.º ...47 no valor de 30.750€ em 14-02-2018 (que só foi enviada por mail no dia 11-03-2019) - fatura n.º ...46 no valor de 30.000€ em 06-11-2018

Nota: Mais informamos que a vossa fatura n.º ...47 tem um lapso no ano. Compete informar que falta a entrega por vossa parte do material que desapareceu (conforme auto de polícia) na noite antecedente ao nosso primeiro dia em que começamos a retirada do material como é do vosso conhecimento. Foi a vossa funcionária GG chamou as autoridades. Pelo exposto aguardamos que proceda à entrega do referido material, ou a emissão da respetiva nota de crédito. No que concerne aos cheques que estão na sua posse de 20.000€ e 10.000€, como sabe estão anulados dado que o restante material encontra-se retido pois a leiloeira ... procedeu à mudança de chaves de acesso e avisou a vossa funcionária que mais nenhum material poderia ser retirado. Por sua vez a Sr.ª GG avisou-nos da situação. Dado a situação, informamos que não pagamos mais nenhum cheque nem recebemos faturas da vossa empresa enquanto não nos entregarem o material em falta.“ – documento junto com a p.i. de embargos.

12) O material que a executada conseguiu retirar do armazém supra aludido não possuía valor superior a quarenta mil euros (que corresponde a metade do valor total do negócio).


*

1. Se impugnação deduzida em sede de matéria de facto respeita a factos admitidos por confissão.

(…).

2. Aditamento de novos factos.

(…).


*

B. Subsunção do Direito aos factos.

2. Se é de alterar o decidido por o risco correr por conta da embargante/compradora.

Considerando que, ao não entregar os bens objeto do contrato, a exequente incumpriu a sua obrigação, encontrando-se justificada a posição da embargante de não pagar enquanto não lhe for entregue a totalidade da mercadora, o tribunal recorrido veio a julgar os embargos procedentes, com a consequente extinção da execução, apoiando-se no seguinte racicíonio:

“A executada, aqui embargante, veio alegar que a exequente não lhe entregou todo o material adquirido e que consta das faturas emitidas.

Efetivamente, ficou demonstrado que: em novembro de 2018, a executada adquiriu à exequente a totalidade do recheio do espaço de eventos (Interior e Exterior), sito na ..., ..., pelo preço total de 80.000,00€. E que uma das condições do negócio era a retirada de todo o material do aludido armazém pela executada, devendo ser emitidas faturas pela exequente que suportassem os montantes que, nessa sequência, iriam ser pagos pela sociedade executada à medida que os ia recolhendo do local.

No dia em que iniciaram a retirada dos bens, a executada entregou à exequente 5 (cinco) cheques pré-datados, a saber: um de 15 mil euros, o segundo de 15 mil euros, o terceiro de 20 mil euros; o quarto de vinte mil euros e o último de dez mil euros. E quando a executada começou a retirar o referido material das instalações da exequente, verificou que na noite anterior o armazém tinha sido assaltado, tendo sido de imediato chamadas as autoridades competentes.

No entanto, de acordo com a matéria provada, em janeiro de 2019, quando a executada foi para levantar mais uma parte do material que estava no mencionado armazém, constatou que as fechaduras do portão principal tinham sido alteradas, tendo sido informada por uma Leiloeira que procedeu à mudança das chaves de acesso ao aludido espaço.

Desde essa altura, a executada não mais pôde retirar os materiais que se encontravam nesse local.

Mais se apurando que o material que a executada conseguiu retirar do armazém supra aludido não possuía valor superior a quarenta mil euros (que corresponde a metade do valor total do negócio).

Aqui chegados e resultando da factualidade apurada o incumprimento da exequente quanto às obrigações para esta decorrente do contrato celebrado com a executada, mormente no que se refere à entrega dos bens e emissão das faturas detalhadas respeitantes a esse material, a sua culpa quanto a esse incumprimento evidencia-se.

Na verdade, dispõe o n.º 1 do art. 406º do Código Civil que "o contrato deve ser pontualmente cumprido", o que significa não apenas um cumprimento no prazo devido como também quanto às concretas circunstâncias e fins para que o mesmo foi celebrado.

Ao não entregar os bens objeto do contrato e a emissão das faturas detalhadas, a conduta da exequente é, pois, violadora do contrato outorgado e não se acha em conformidade com o disposto no citado preceito legal, não se achando cumprida a obrigação, nos termos do disposto nos art. 762º e ss. do Código Civil.

Deste modo, a anulação do cheque em causa na execução mostra-se justificada, face à violação do acordo negocial cometido pela exequente, o que determinou que a executada não aceitasse pagar enquanto não lhe fossem entregues os bens nos termos do contratado. Note-se que, conforme resultou apurado, o material que a executada conseguiu retirar do armazém supra aludido não possuía valor superior a quarenta mil euros (que corresponde a metade do valor total do negócio).”

Insurge-se a Apelante contra o decidido, alegando que, celebrado o negócio no início de novembro de 2018, data em que foi pago o preço e entregues as chaves do imóvel, os efeitos jurídicos cifram-se nessa naquela data, pois que aí se transferiu a posse dos bens, pelo que o domínio sobre a coisa corria já por conta da recorrida.

Antes de mais, a Apelante faz assentar o seu raciocínio num facto que não alegou (a exequente não deduziu oposição aos embargos) –, o de que as chaves teriam sido entregues ao embargante aquando da concretização do negócio de compra e venda – facto este que, como tal, não foi objeto de apreciação por parte do tribunal a quo.

De qualquer modo, nunca seria de dar razão à Apelante.

Não se nega que, tendo a compra e venda natureza real quod effectum, a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato [artigos 408º, nº1, e 874º do Código Civil (CC)], ou seja, aquando da celebração do contrato e independentemente da entrega da coisa e do pagamento do preço[1].

Nos contratos bilaterais que importem a transferência do domínio sobre a coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa, por causa não imputável ao alienante, corre por conta do adquirente (artigo 796º, nº1 do CC).

A regra do artigo 796º, nº1 constitui um corolário do nºº1 do artigo 408º do CC: transmitido ou constituído um direito real sobre coisa determinada por mero efeito do contrato, o risco transfere-se com o direito real transmitido ou constituído[2].

Assim, sendo, no contrato de compra e venda de coisa determinada, o risco suportado pelo comprador, fica este obrigado a pagar o preço , embora não receba a coisa vendida, por ela ter perecido, depois do contrato, devido a facto não imputável ao vendedor[3].

Questionando a solução do nosso direito acerca da transferência do risco, Vaz Serra[4] defendeu a sua manutenção, apoiando-se nas seguintes considerações; i) ao adquirente pertence o aumento do valor da coisa, posterior à alienação, sem que deva pagar, por isso, preço mais alto, devendo em troca, suportar o risco da perda ou deterioração; ii) se, alienada a coisa, se transfere a propriedade para o comprador, a coisa fica à sua disposição, podendo logo exigi-la ao vendedor. Se, tendo-a em seu poder, devia pagar o preço, apesar de ela perecer, parece também o dever pagar, se perecer no poder do vendedor, e sem culpa deste, pois, se estava em poder do vendedor, era apenas porque não reclamara a sua entrega ou não tomara, como proprietário as disposições convenientes.

Assentamos, assim que, em regra, no contrato de compra e venda ou qualquer outro translativo da propriedade por mero efeito do contrato, o comprador suporta o risco a partir da conclusão do contrato.

O disposto no artigo 796º não tem carater imperativo, podendo as partes convencionar regime diverso, a não ser que a tal obste especial previsão legislativa[5].

Descendo ao caso em apreço, desde logo se constata que a materialidade invocada pelo embargante para se eximir ao pagamento do preço ainda em falta, e dada como provada, não se restringe à mera impossibilidade de recolha da parte do material vendido por o mesmo ter desaparecido das instalações da exequente na ... na sequência do assalto ocorrido na noite anterior:

- por um lado, relativamente a este material, houve um acordo no sentido de que a Exequente a compensaria com mais material desse género de que dispunha no seu estabelecimento no ...;

- por outro lado, não foi só esse material, que terá desaparecido no assalto, que não lhe foi entregue: depois de, no dia seguinte ao assalto, a embargante ter começado a proceder ao levantamento do material que ainda se encontrava nos armazéns da ...:

“9) Em janeiro de 2019, a executada foi para levantar mais uma parte do material que estava no mencionado armazém, mas chegando ao local constatou que as fechaduras do portão principal tinham sido alteradas, tendo sido informada por uma Leiloeira que procedeu à mudança das chaves de acesso ao aludido espaço;

10) Desde essa altura, a executada não mais pôde retirar os materiais que se encontravam nesse edifício, nomeadamente os que constam do documento junto pela embargante com a sua p.i. de embargos (última folha do doc. 3, sob o título “material em falta que não foi retirado).”

Ou seja, não só, a vendedora falhou ao seu compromisso de compensação da compradora pelo material desaparecido (a norma do artigo 796º é supletiva, pelo que nada obstaria a tal acordo, ainda que posterior), como, recusou a entrega do restante material que ainda se encontrava nas suas instalações na ..., ao permitir que uma Leiloeira procedesse à mudança de fechaduras das chaves de acesso a tais instalações e ao avisar a embargante de que não podia retirar mais nada dentro do edifício.

Ora, em relação ao material que não desapareceu aquando do assalto e que ainda se encontrava nas instalações da ..., a questão da transferência do risco não se coloca, por não se encontrar em causa o perecimento ou deterioração da coisa, mas uma situação de recusa na sua entrega por parte da Ré.

Quanto ao material que desapareceu após as instalações da exequente terem sido assaltadas, a questão da transferência do risco mostra-se ultrapassada, a partir do momento que a vendedora aceitou proceder à sua substituição por outro material semelhante que possuía nas suas instalações no ....

E, assim sendo, tratando-se de um contrato bilateral, o comprador terá o direito a recusar o respetivo pagamento enquanto a mercadoria vendida não lhe for entregue.

 A Apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.

                                                                 Coimbra, 28 de junho de 2022

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…)

                                                 

 



[1] Ana Afonso, “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral”, Coord. José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, p. 1096.
[2] Ana Prata, “Código Civil Anotado”, Vol. I, Almedina 2017, p.994.
[3] Adriano Vaz Serra, “Impossibilidade superveniente por causa não imputável ao devedor e desaparecimento do interesse do credor”, BMJ nº 46 – Janeiro 1955, p. 86.
[4] Artigo e local citado, p. 91.
[5] Ana Afonso, “Comentário ao Código Civil”, p. 1096.