Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
672/08.8TAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: VIOLAÇÃO DE PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 01/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VILA NOVA DE OURÉM – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 348º,353º CP, 500º CPP,
Sumário: A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No âmbito dos presentes autos, registados sob o n.º 672/08.8TAVNO, que correm termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, através de despacho judicial proferido em 15 de Setembro de 2009, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J..., por ter sido considerada manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), ambos do Código de Processo Penal.


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2. Inconformado com a decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, concluindo nestes termos a respectiva motivação:

1.ª – Nos presentes autos, o Ministério Público acusou o arguido Ricardo J… pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

2.ª – A decisão recorrida rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público, por entender que não está prevista qualquer cominação legal de punição da não entrega da carta de condução como crime de desobediência, pelo que, tendo sido efectuada tal cominação, a mesma não é legítima.

3.ª – Contudo, a nosso ver, não restam dúvidas de que se mostram preenchidos todos os pressupostos acima transcritos, maxime, o da legalidade (material e formal) da ordem dirigida ao arguido.

4.ª – É certo que de acordo com o preceituado pelo artigo 500.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, “se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

5.ª – Todavia, a circunstância de não estar prevista, no citado artigo 500.º do Código de Processo Penal outra consequência para a não entrega da carta de condução, não pode conduzir à conclusão a que se chegou na decisão recorrida, ou seja, a de que uma ordem, dada por um Juiz de Direito no exercício das suas funções, a um arguido que é condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, no sentido de o mesmo entregar a respectiva carta de condução, sob pena de o não fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, é ilegítima.

6.ª – Tal ordem de entrega da carta de condução é em si mesmo legítima, dado que não ofende qualquer direito inalienável do condenado e visa, apenas, garantir o efectivo cumprimento de uma pena acessória.

7.ª – Por outro lado, no artigo 160.º, n.ºs 3 e 4 do Código da Estrada está prevista a punição da não entrega da carta de condução, por parte do condenado em proibição ou inibição de conduzir, a par da apreensão de tal título.

8.ª – Ora se tal consequência está prevista para a sanção da inibição de conduzir, não faz sentido considerar ilegítima uma ordem, dada por um Juiz de Direito no exercício de funções, de entrega de carta de condução, com a cominação da prática de um crime de desobediência, já que tal entendimento não leva em devida conta a unidade do sistema jurídico.

9.ª – A unidade do sistema jurídico e a ideia de proporcionalidade impõem que sejam menos gravosas do que as previstas para assegurar o cumprimento de um pena, já que estas não podem ser inferiores àquelas que a própria lei comina para uma idêntica infracção, de natureza contra-ordenacional e de menor gravidade.

10.ª – A decisão recorrida violou, assim, o preceituado no artigo 311.º do Código de Processo Penal e o artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

11.ª – Assim, deverá o tribunal de recurso revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos.


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3. O arguido rematou a resposta que apresentou ao recurso nestes termos:

1. Nenhuma censura merece a sentença recorrida, que não pode até deixar de louvar-se, quer pela sua lucidez, quer pelo rigor técnico-jurídico;

2. A sentença posta em crise não infringiu qualquer norma legal, e não merece qualquer reparo por via disso;

3. Assim sendo, não deverá em caso algum vir a ser dado provimento ao recurso;

4. Mantendo-se, pois, na íntegra, a sentença recorrida.


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4. Nesta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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5. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões apresentadas pelo Ministério Público circunscrevem o recurso à questão de determinar se a matéria fáctica descrita na acusação pública consubstancia a prática, pelo arguido J..., de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, ou se, como foi entendido no despacho recorrido, a acusação deve ser rejeitada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), ambos do Código de Processo Penal, por o acervo factológico que a suporta não constituir qualquer crime, maxime o crime de desobediência imputado ao arguido no libelo acusatório.

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2. Importa considerar os seguintes elementos relevantes:
- No decurso de inquérito efectuado nos presentes autos, a final, o Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J..., a quem imputou a final a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com base nos seguintes factos (transcrição):
«O arguido foi condenado por sentença de 21 de Junho de 2008, devidamente transitada em julgado, proferida nos autos de processo sumário n.º 222/08.6GTLR que correram termos no 1.º juízo deste tribunal, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 7,50, num total de € 375,00 e na pena acessória de inibição de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de três meses.
O arguido foi então notificado de que deveria entregar a sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou no posto policial da área da sua residência, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado daquela decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
De tal obrigação ficou o arguido bem ciente, pois foi devidamente notificado do teor daquela sentença.
No entanto, o arguido não entregou a sua carta de condução neste tribunal ou na entidade policial competente no prazo que lhe tinha sido estabelecido.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que tinha que entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias, sabendo quais as consequências da sua não entrega e querendo não a entregar.
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei»;
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- Após distribuição, O Sr. Juiz proferiu o despacho recorrido, que se passa a transcrever, nas partes mais significativas:
«Nos presentes autos de inquérito, o Ministério Público considera estar suficientemente indiciada a prática pelo arguido dos seguintes factos:
(…).
A seu ver, tais factos são susceptíveis de integrarem a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
No que respeita ao crime de desobediência prescreve o artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal: (…).
No caso em apreço, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
Prescreve o art. 500.º, n.º 2 do CPP: (…).
E acrescenta o n.º 3 (…).
Também o n.º 3 do art. 69.º do CP estabelece (…).
Não existe, por conseguinte, qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.
Por sua vez, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (…), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de última ratio da intervenção penal (…).
Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, pelo que entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma.
Lê-se no Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Outubro de 2008, processo n.º 43/08.6TAALB.C1 (www.dgsi.pt):
“Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença entregar o título de condução tem apenas carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.
Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.
Por outro lado, como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º do Código Civil).
Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dita expressamente”.
No mesmo sentido, e com desenvolvida argumentação, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, processo 1932/2008-9 (www.dgsi.pt), em que se salienta, além do mais:
“(…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passa a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º  do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta de condução a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge no caso dos autos carece de legitimidade”.
Concluímos, pois, na esteira dos mencionados acórdãos, não haver lugar, no caso, à cominação do crime de desobediência, pelo que tendo existido a mesma não é legítima e, por via disso, não poderemos ter como verificados os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º do Código Penal.
Como avança o artigo 311.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, o tribunal de julgamento deve rejeitar a acusação pública deduzida quando a considere manifestamente infundada.
E, aos olhos da lei [cfr. artigo 311.º, n.º 3, al. d)], é manifestamente infundada a acusação “se os factos não constituírem crime”, como sucede nos presentes autos.
Pelo exposto, rejeita-se a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J... (fls. 63 e 64), por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal».
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3. Do mérito do recurso:
De harmonia com o disposto no artigo 311.º, n.º 2, aliena e) do Código de Processo Penal, o juiz pode rejeitar a acusação, quando esta é manifestamente infundada. Este conceito jurídico encontra-se definido nas alíneas a) a d) do n.º 3 da referida norma.
Em conformidade, o juiz dever rejeitar a acusação quando os factos nela descritos não constituam crime.
Contudo, a al. d) do n.º 3 do artigo 311.º apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação, se verificar, pela leitura dos factos, que os mesmos não conformam a prática de qualquer ilícito penal.
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Hodiernamente, e após a revisão do Código Penal levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a situação concreta definida na acusação pública (falta de entrega, no prazo legalmente fixado, da carta de condução por parte de arguido a quem foi imposta, através de sentença transitada em julgada, pena acessória de inibição de conduzir) consubstancia, a nosso ver, crime de violação de imposições, proibições ou interdições, não fazendo agora sentido a manutenção da ainda recente questiúncula jurisprudencial em redor da verificação, no referido quadro, do crime de desobediência do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal[1].
É o que decorre, segundo se nos afigura, da leitura do novo texto do artigo 353.º, introduzido pela referida Lei n.º 59/2007.
Dele consta:
(Violação de proibições, proibições ou interdições):
«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».
Confrontando o texto ora transcrito com a redacção anterior do mesmo tipo-norma, sobressai impressivamente o aditamento ao artigo do inciso inicial «Quem violar imposições».
A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.
A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução.
Como observa Cristina Líbano Monteiro, a propósito dos artigos 349.º-354.º do Código Penal, tais preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar[2]. Na situação concreta, com a amplitude normativa supra assinalada, concedida pela Lei n.º 59/2007 ao artigo 353.º, quis o legislador estabelecer consequências jurídico-penais para a violação da imposição, determinada na sentença, de entrega da carta/licença de condução.
Afigura-se-nos, pois, que a incriminação agora prevista no artigo 353.º foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente fixado previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3 e 500.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.
Os artigos da lei adjectiva penal supra referidos não contêm, é certo, qualquer cominação de punição da não entrega da carta de condução como crime.
Mas não teriam que conter, pois apenas regulam os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da pena acessória imposta, cabendo à lei substantiva penal a definição do quadro criminalizador.
Os factos descritos na acusação preenchem, assim, os requisitos objectos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.
E, deste modo, nunca a acusação poderia ser considerada manifestamente infundada: os factos nela descritos constituem crime, embora diverso daquele que, na mesma peça processual, está imputado ao arguido. Ou seja, em vez de um crime do artigo do artigo 348.º, n.º 1.º, al. b) do Código Penal, os factos da acusação configuram um crime do artigo 353.º do mesmo diploma, estando em causa uma simples alteração não substancial da acusação, mais propriamente uma alteração de qualificação jurídica, relativamente à qual o tribunal a quo, em momento oportuno, haverá que cumprir o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
Deste modo, ainda que por razões diversas, o recurso merece provimento.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da Secção Criminal desta Relação de Coimbra julgam procedente, embora com diversos fundamentos, o recurso do Ministério Público, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia para julgamento, devendo, em momento oportuno, ser cumprido o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
Não são devidas custas.
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(Processado e integralmente revisto pelo relator)
Coimbra, 20 de Janeiro de 2010
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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)


[1] A título meramente exemplificativo, no sentido da existência de crime, vide o Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-2009, proferido no proc. n.º 103/07.0TACDN.C1; em sentido contrário, podem consultar-se, também no sítio www.dgsi.pt, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18-12-2008 (proc. n.º 1932/2008-9) e o Acórdão da Relação de Coimbra de 14-10-2009 (proc. n.º 513/05.8TAOBR.C1).
[2] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora 2001, tomo III, pág. 360.