Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
991/14.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: ESTADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
FUNÇÃO POLITICA
FACTOS ILÍCITOS
INDEPENDÊNCIA DAS ANTIGAS COLÓNIAS
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 22º DA CRP; DL 48.051, DE 21/11/1967.
Sumário: I - Nesta acção os AA. formulam o pedido, fundado na responsabilidade civil do R Estado Português pelo exercício da sua função política, de que este repare o valor dos danos alegadamente sofridos por cada um deles em consequência da actuação do demandado no âmbito do processo de descolonização de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar.

II - Por assim ser, só são concebíveis como ilícitos os factos imputáveis ao R que se possam caracterizar como reais consumações do incumprimento do processo conducente à descolonização já que o desiderato por esta prosseguido – há muito reclamado por princípios de direito internacional consensualmente aceites pela comunidade dos países –, do ponto de vista da sua licitude, não pode ser confrontado com princípios consagrados na Constituição de 1933 claramente derrogados pela nova ordem jurídico-constitucional desencadeada pela Revolução de 25 de Abril de 1974 e plasmada particularmente na Lei Constitucional nº 7/74, de 27/7, como era o que exprimia a ideia de que a independência das então designadas províncias ultramarinas se concretizava na independência da pátria.

III - Em face da matéria de facto alegada pelos AA., foi aquando do seu êxodo forçado do território de Angola que os mesmos aí deixaram os seus bens, ficando impedidos de os usufruir e possuir, e perderam a estabilidade da respectiva situação familiar. Portanto, na perspectiva dessa alegação, tanto os factos putativamente ilícitos e geradores dos danos cuja reparação é por eles pedida como os próprios danos consolidaram-se ou concretizaram-se definitivamente enquanto aquele território esteve sob a administração do Estado Português, ou seja, até 11/11/1975, data que terá de balizar a apreciação dos pressupostos da questionada excepção de prescrição.

IV - Não é imputável ao Estado Português a invocada ruptura, em si mesma, do compromisso que aquele logrou fazer consagrar no Acordo de Alvor no sentido de os 3 movimentos então designados de libertação nacional de Angola (FNLA, MPLA e UNITA) respeitarem os bens e os interesses dos portugueses domiciliados em Angola, nem os danos depois produzidos por um novo Estado, soberano e independente, decorrentes da desapropriação dos bens dos AA, efectuada sem indemnização.

V - O que ao Estado Português poderia ser imputado seria apenas o eventual incumprimento do princípio da protecção diplomática – traduzido na «garantia internacional tradicional que é um direito do Estado (“dominus litis”) que supõe uma acção contra o Estado violador, sem prejuízo do particular poder sempre processar o Estado autor da violação contra tal violação» – i. é, do dever de ter apoiado, por via diplomática, a eventual reacção que os AA, então, tivessem adoptado perante esse Estado, enquanto autor da desapropriação, sendo certo que uma tal reacção não vem alegada.

VI - Mas o momento que releva para o início da contagem do prazo da prescrição relativa ao direito em concreto exercido nesta acção, em nada depende da circunstância de poderem perdurar até à actualidade tanto os danos como as alegadas faltas de apoio do Estado Português, por via diplomática, a qualquer eventual iniciativa dos AA. perante o Estado que alegadamente os desapropriou dos bens que em 1974/1975 foram forçados a deixar em Angola, pretensamente devido à imputada actuação ilícita do R.

VII - A prescrição de direitos de crédito com tradução meramente patrimonial originados em ofensa ao conteúdo do direito de propriedade não implica a denegação do respeito e da garantia de efectivação de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, não obstante a correspondente responsabilidade extracontratual do Estado ter como fundamento constitucional o princípio que, actualmente, flui directamente do disposto no artigo 22º da CRP – estando, na data dos factos em apreço, apenas regulamentado na lei ordinária através do DL 48.051 de 21/11/1967 – e o direito de propriedade ser constitucionalmente garantido.

VIII - A fim de poder admitir a imprescritibilidade do direito que invocam e para que o paralelo com a situação dos judeus vítimas do holocausto nazi não pudesse ser considerado excessivo, para não dizer abusivo, teriam os AA. de se propor demonstrar factos circunstanciados – que, obviamente, não alegaram – integrativos duma actuação por parte do Estado Português orientada pelo desígnio de consumar o extermínio dos portugueses – judeus ou não – então residentes em Angola.

IX - Perante os contornos da matéria alegada pelos AA nunca se poderia vir a demonstrar que o Estado Português ou os seus comissários cometeram quaisquer actos que, à luz dos princípios de direito internacional, pudessem ser catalogados como ilícitos (crimes) contra a humanidade ou graves violações dos direitos do homem, nem, muito menos, que os próprios AA tivessem sofrido quaisquer actos dessa natureza praticados pelo demandado ou pelos seus comissários, nessa qualidade, sendo sabido que, para que assumissem essa classificação, os actos imputados teriam de possuir, pelo menos, seis características: a) desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos etc.); b) generalizados ou sistemáticos; c) dirigidos à população civil; d) durante conflito armado; e) conformes a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promovam essa política; f) com conhecimento desses agentes.

X - Do texto da que veio a ser a efectiva opção do legislador consagrada no art. 40º da Lei 80/77 de 26/10 consta, de modo claro, que o Estado Português não assumiu a responsabilidade pelas indemnizações que fossem devidas aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados pelos novos Estados dos territórios das ex-colónias, limitando-se proclamar que tais bens estão sujeitos ao regime da indemnização fixado segundo a lei do Estado da sua localização, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva privação, presumindo-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito.

XI - Por assim ser, essa norma também nunca poderia ter criado a aparência jurídica de que inexistia ou ao menos seria ineficaz o direito a que os AA agora se arrogam, baseado na suposta actuação ilícita do Estado Português enquanto administrou a colónia de Angola, o que teria impedido aqueles de exercerem anteriormente a sua pretensão.

XII - Também a recomendação do Estado Português feita aos cidadãos provenientes da ex-colónias, publicitada através de anúncios em jornais, para elaborarem listas dos bens perdidos, só pode ser interpretada com o sentido de que o anunciante apenas iria diligenciar junto do Estado que sucedeu às entidades que se haviam comprometido, em Alvor, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados no território, para apoiar diplomaticamente as iniciativas que os cidadãos nacionais encetassem para obter daquele Estado o respeito dos seus direitos e não o sentido de que estava a atribuir-se a responsabilidade autónoma exigida nesta acção.

XIII - Por isso, atendendo à apontada clareza dos propósitos manifestados pelo Estado Português, tanto no caso do citado art. 40º como no dos anúncios, não se divisa, onde poderia residir a sugestão ou artifício empregue com a consciência de induzir os AA em erro e, assim, poder configurar o dolo daquele, em qualquer das suas modalidades,

XIV - Nenhum dos actos enunciados pelos AA. e imputados ao Estado Português traduz o (inequívoco) reconhecimento deste, expresso ou tácito, do direito de indemnização, que aqueles pretendem ver satisfeito nesta acção: o art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), a criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e o ofício de 6.1.1993 do chefe de gabinete da secretaria de Estado para a Cooperação, tal como as já faladas inventariação dos bens “espoliados” ou a sugerida promessa de concessão de apoio diplomático, têm apenas «a finalidade de propor soluções para questões pendentes, que desde o tempo da descolonização se encontram sem solução definida, face ao comportamento dos governantes dos novos Estados soberanos surgidos nesses territórios», sendo certo que a ajuda possível aos desalojados das ex-colónias careceria de disponibilidade orçamental.

XV - E nenhum de tais actos foi idóneo a gerar nos AA. a legítima crença de que o Estado Português lhes pagaria, mesmo sem a propositura da acção, as indemnizações a cujo direito se arrogam, sendo essa confiança, agora, infundadamente retirada com a invocação da prescrição, que, assim, não é configurável como abusiva da boa-fé ou dos bons costumes.

XVI - A invocação da prescrição pelo Estado, representado pelo Ministério Público, é legítima porque permite que possa ser atingido, em conformidade com os ditames da legalidade democrática, o interesse de ordem pública dirigido, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade subjacentes a tal instituto, uma vez ponderada a inércia dos titulares do direito exercitando.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       A... e outros, em 2/5/2000, intentaram a presente acção contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar a cada um deles uma indemnização correspondente ao valor à data da condenação dos danos que disseram ter sofrido em consequência da actuação do R. no âmbito do processo de descolonização do ex-Estado Português de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar. Os autores concretizaram essa alegação, afirmando, ainda, muito em síntese:

- Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, a opção do R. plasmada na Lei nº 7/74 de 27/7 pela descolonização, reconhecendo o direito à independência das que eram então as suas províncias ultramarinas, foi legítima, particularmente por corresponder a um dever jurídico internacional decorrente de Resoluções da ONU.

- Porém, na sequência dos acordos de Alvor, que previam a presença tripartida da FNLA, do MPLA e da UNITA nos governos de transição, e, em parte, devido à falta de isenção e de capacidade de afirmação das forças portuguesas no território de Angola, gerou-se aí um clima de insurreição e guerra civil, tendo o R. tomado a decisão política, sem consultar as populações, de entregar ao MPLA esse território, que até 1974 se encontrava sob o controlo militar do exército português, colocando-o sob a esfera de influência do Estado imperialista da então URSS. Acresce que o R. não fez incluir nos referidos acordos qualquer cláusula eficaz de protecção às vidas e bens dos portugueses lá residentes.

- O R., por opção política, não por falta de meios, declaradamente renunciou a assegurar a ordem no território de Angola, as suas tropas descuraram o dever que a Constituição de 1933 lhe atribuía de preservar as pessoas e bens nos territórios ultramarinos sob administração portuguesa, assim como cooperaram, designadamente na prática de actos de genocídio, com o MPLA, que assaltou, incendiou e pilhou propriedade de residentes de todas as raças e credos religiosos, torturou, manteve em cativeiro, molestou sexualmente e assassinou um número indeterminado de pessoas no território de Angola, assim fomentando, tal como as demais forças insurrectas, um clima de ódio e vindicta de que foram alvo especialmente os angolanos de origem portuguesa.

- Esse contexto convenceu os AA da necessidade de abandonarem o território, para salvarem as suas vidas, resultando do seu êxodo, planeado (DL 23/75 de 22/1) e implementado pelo R., o abandono de todos os seus bens.

- O R., apesar de ter procedido, em 11/11/1975, à transferência de poderes para o MPLA, não reconheceu, de imediato, o Estado de Angola, impedindo os AA de gozar de protecção diplomática, nem reagiu por essa via ao confisco de bens efectuado pelo referido Estado, apesar das boas relações e dos vários protocolos subsequentemente acordados entre ambos os estados.

Afirmando que o valor material dos seus bens foi dissipado ainda durante o governo do território pelo R., os AA concluíram: 1º) a descrita actuação do R constituiu um facto ilícito continuado, consistente numa «limitação ilícita de facto do conteúdo do direito de propriedade» dos AA, que, não tendo cessado, impede o início da contagem do prazo de prescrição; 2º) o R. reconheceu expressamente a sua responsabilidade correspondente ao direito exercido nesta acção, renunciando à prescrição, através dos anúncios (convites) para que os ex-residentes em Angola elaborassem listas dos bens perdidos, da Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92 de 16/4/1992 (in DR I-B de 16/5/1992), que criou o Gabinete de Apoio aos Espoliados (extinto em 1997) e da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento do Estado para 1998); 3º) com o art. 40º da Lei 80/77 – norma que, apesar de inconstitucional, se manteve –, o R. criou dolosamente a aparência jurídica de que tal direito não existia ou era ineficaz face a ele, não podendo ser exercido, sendo que o prazo prescricional só começa a correr quando o titular puder fazer valer o seu direito.

O R Estado contestou, defendendo que o decurso do prazo de três anos previsto no art. 498º nº 1 CC extinguiu por prescrição o direito a que os AA se arrogam, fundado em factos, necessariamente, ocorridos nos anos de 1975 e 1976, porquanto foi nesse período que os AA terão sido forçados a abandonar os seus bens no território angolano, cuja independência foi proclamada em 11/11/1975 e reconhecida pelo Estado Português em 22/2/1976.

Na réplica, os AA sustentaram a improcedência da excepção de prescrição, renovando os argumentos já aduzidos.

Por despacho de 8/3/2010, o Sr. Juiz julgou habilitados e partes legítimas para a acção vários requerentes, enquanto sucessores de primitivos autores.

Inconformado com tal decisão, o R. interpôs recurso – que veio a ser admitido como agravo, a subir com o primeiro que, depois dele, subisse de imediato e com efeito meramente devolutivo (artigos 685º nº 1, 678º nº 1 e 680º nº 1, todos do CPC na redacção anterior à então vigente) –, suscitando a questão de saber se os incidentes de habilitação deveriam ter sido promovidos não apenas contra o R. mas também contra os demais AA. sobrevivos, porque coligados na acção com os falecidos.

No saneador sentença, o Sr. Juiz, julgando procedente a invocada excepção da prescrição e, por consequência, improcedente a acção, absolveu o R do pedido.

Inconformados, os AA. A... e outros interpuseram recurso, cujo objecto delimitaram com a questão da improcedência da prescrição, aduzindo os seguintes argumentos:

1. - o R omitiu o dever de agir relativamente aos bens dos portugueses deixados em Angola, nomeadamente por não ter agido como o fez relativamente aos bens dos portugueses deixados no Zaire ou como agiram todos os países europeus com situações semelhantes;

2. - o direito que os AA exercem está subtraído ao regime prescricional porque: - se trata de um direito fundamental conferido pelo art. 22º da Constituição; - terá de valer para os AA, vítimas de actos de violência sobre população não beligerante, motivados por ódio racial e crimes de guerra, a regra da imprescritibilidade que o R. reconheceu às famílias dos judeus vítimas do holocausto nazi e acolhida no art. 8º da Constituição quanto a crimes contra a Humanidade, de acordo com as regras do Direito Internacional;

3. - não deve ter-se por iniciada a contagem do prazo prescricional, porque são continuados e ainda não cessaram alguns dos factos geradores da responsabilidade do R. e o R., através do art. 40º da Lei 80/77 de 26/10 – que se mantém, apesar da sua inconstitucionalidade, que deve ser declarada – criou a aparência jurídica de que o direito a que os AA se arrogam inexistia ou ao menos seria ineficaz e não poderia ser exercido (art. 306º do CC); - ainda que se considerasse iniciado o prazo prescricional, o mesmo foi suspenso porque o R. publicou essa Lei 80/77 e anúncios pedindo aos ex-residentes em Angola que elaborassem listas dos bens ali deixados, para assim evitar que os AA propusessem acções judiciais, agindo, pois, com dolo indirecto;

4. - o R. reconheceu o direito ora exercido pelos AA., renunciando ao benefício da prescrição, através do art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), da criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e do ofício de 6.1.1993 do Chefe de Gabinete do Secretário de Estado para a Cooperação;

5. - a invocação da prescrição pelo R. constitui um abuso de direito, por ser contrária à boa fé e aos bons costumes (referindo-se de novo a Lei 80/77 e os anúncios), estando também o Ministério Público impedido de a invocar por estar obrigado a defender a legalidade democrática.

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir, para o que relevam os elementos fácticos que se retiram do antecedente relatório.

Embora, em princípio, devessem ser julgados pela ordem da respectiva interposição a apelação e o agravo que com ela subiu, o certo é que este último só será apreciado se a decisão recorrida não for confirmada (cf. art. 710º do CPC, na redacção disciplinadora do recurso de agravo em apreço, anterior ao DL 303/2007 de 24/8).

Assim, começaremos por conhecer da questão suscitada na apelação, em cuja abordagem, necessariamente, se tratará de averiguar se, perante a matéria factual alegada pelos AA, os autos contêm já os elementos bastantes para uma sua decisão conscienciosa, contrariamente ao objectado no recurso.

1. Enquadramento geral.

Neste recurso apenas se suscita a questão da excepção de prescrição ([1]), pelo que, como decorre do art. 608º nº 2 (conjugado com art. 663º nº 2) do CPC, o reconhecimento da procedência dessa excepção, a verificar-se, «prejudica a consideração, sequer, da efectiva existência do direito arguido, da qual, portanto, não há que cuidar se efectivamente procedente aquela excepção» ([2]). Ainda assim, importará fazer uma breve averiguação, não sobre o respectivo mérito, mas sobre o modo como os AA estruturaram a sua pretensão, cujo resultado haverá de estar sempre presente na análise de cada um dos diversos argumentos dos apelantes.

Em primeiro lugar convém começar por recordar que o pedido formulado na acção contra o R. Estado é, tão-só, o de que este repare o valor dos danos alegadamente sofridos por cada um dos AA. em consequência da actuação do demandado no âmbito do processo de descolonização do ex-Estado Português de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar. Contrariamente ao que parece ser agora sugerido no recurso, não consta do pedido formalmente deduzido a pretensão, apenas invocada como argumento (artigo 332º da PI), de que, na presente acção, o R. seja condenado a agir, como fez, então voluntariamente, no caso dos bens de portugueses nacionalizados pelo Zaire e, da mesma maneira como procederam, também voluntariamente, todos os países europeus com situações semelhantes, relativamente aos respectivos cidadãos.

Em segundo lugar, uma vez que os AA. fundam aquele seu pedido na responsabilidade civil do Estado pelo exercício da sua função política, só pode relevar nesta análise a enunciação feita na PI de factos concretos – não afirmações genéricas ou conclusivas –, alegadamente cometidos pelo próprio demandado – não por outrem – e que, na economia ou na lógica de tal alegação, possam considerar-se como estando revestidos de ilicitude e como adequadamente geradores dos concretos danos cuja reparação é pedida, equivalentes – relembra-se – ao valor dos bens que os AA foram forçados a abandonar no território de Angola e à perda da respectiva estabilidade da respectiva situação familiar.

Por assim ser, nessa lógica, só são concebíveis como ilícitos os factos imputáveis ao R. que se possam caracterizar como reais consumações do incumprimento do processo conducente à descolonização já que o desiderato por esta prosseguido – aliás, há muito reclamado por princípios de direito internacional consensualmente aceites pela comunidade dos países, como os AA referiram na sua douta PI –, do ponto de vista da sua licitude, não pode ser confrontado com princípios consagrados na Constituição de 1933, claramente derrogados pela nova ordem jurídico-constitucional desencadeada pela Revolução de 25 de Abril de 1974, como era o que exprimia a ideia de que a independência das então designadas províncias ultramarinas se concretizava na independência da pátria. Com efeito, a Lei Constitucional nº 7/74 de 27 de Julho ([3]), a que os AA fazem alusão, prescreveu (nos seus arts. 1º e 2): «O princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação. O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.º da Constituição Política de 1933.» (sublinhados nossos).

Nessa senda se pronunciou o STJ no seu Ac de 20/1/1982 (p. 036213- Vasconcelos de Carvalho), acrescentando: «A Constituição de 1976, no artigo 5, n. 1, ratificou expressamente a descolonização levada a efeito nos anos de 1974 e 1975, não se limitando a aceitar a situação de facto existente mas consagrando-a claramente nos ns. 1 e 3 do artigo 7, tal como foi realizada» ([4]).

Não se trata aqui, como já se disse, de saber se na matéria alegada na PI se mostram preenchidos os pressupostos enunciados no art. 483º do CC (o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, a existência de danos e um nexo de causalidade entre o facto e o dano), ou seja, de averiguar, sequer, da efectiva existência do direito invocado pelos AA. De todo o modo, podem já descontar-se afirmações genéricas não concretizadas factualmente pelo AA, como p. ex.: o R. tomou a decisão política (quando e como?) de renunciar a assegurar a ordem no território de Angola e de, sem consultar as populações, entregar ao MPLA o território que se encontrava sob o seu controlo militar, colocando-o sob a esfera de influência da então URSS; as tropas do R. cooperaram com o MPLA (em que termos e circunstâncias?), designadamente na prática de actos de genocídio (que actos em concreto?).

Ainda assim, subsistem naquela matéria comportamentos imputados ao R. pelos AA. que estes dizem constituírem a causa dos danos cuja reparação pedem, ou seja, a causa ou, pelo menos, uma das causas de eles se terem convencido da necessidade de abandonarem o território angolano, deixando aí os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar: na versão dos AA., o R. não teria feito incluir nos acordos de Alvor qualquer cláusula de protecção às vidas e bens dos portugueses lá residentes, não teria assegurado no território, então sob sua administração, a ordem nem preservado as pessoas e bens, podendo tê-lo feito, designadamente porque tinha os necessários meios.

Em relação a tais alegações, se objecto de prova positiva e, eventualmente, complementadas ou concretizadas em tal sede, poderia admitir-se serem, em abstracto, idóneas a poder concluir-se que os aludidos danos naquele período supostamente radicados na esfera jurídica dos AA. foram adequadamente causados também por factos ilícitos cometidos pelo R., ao qual seriam imputáveis a título de culpa, por ter omitido as medidas que se lhe impunham, ou que tinha o dever de praticar, para defender os direitos dos seus cidadãos, ficando, por isso, obrigado a reparar os danos, por força do art. 486º do CC.

Mas, se assim é, também é inquestionável, em face da matéria de facto alegada pelos AA., que foi aquando do seu êxodo forçado do território de Angola que os mesmos aí deixaram os seus bens, ficando impedidos de os usufruir e possuir, e perderam a estabilidade da respectiva situação familiar. Portanto, na perspectiva da alegação dos AA., tanto os factos putativamente ilícitos e geradores dos danos cuja reparação é por eles pedida como os próprios danos consolidaram-se ou concretizaram-se definitivamente enquanto aquele território esteve sob a administração do Estado Português, ou seja, até à data (11/11/1975) em que o mesmo procedeu à transferência de poderes para o novo Estado de Angola. É a data dessa transferência que terá de balizar a apreciação dos pressupostos da questionada excepção de prescrição.

É claro que não olvidamos que os AA. também alegaram que o R., apesar de ter procedido, em 11/11/1975, à transferência de poderes para o MPLA, não reconheceu, de imediato, o Estado de Angola, impedindo os AA de gozar de protecção diplomática, nem reagiu por essa via ao confisco, efectuado pelo novo Estado, dos bens que eles lá haviam abandonado, tendo o R. privilegiado as boas relações e os vários protocolos subsequentemente acordados entre ambos os estados. Assim, entendem os AA. que o R. omitiu o dever de agir relativamente aos bens dos portugueses deixados em Angola, como agiu relativamente aos bens dos portugueses deixados no Zaire e como agiram todos os países europeus com situações semelhantes.

Lembramos que no Acordo assinado em 15/1/1975 pelo Estado Português e pelos 3 movimentos então designados de libertação nacional de Angola (FNLA, MPLA e UNITA) ficou estabelecido que a independência e soberania plena de Angola seriam solenemente proclamadas em 11/11/1975, em Angola, pelo Presidente da República Portuguesa ou por representante seu (art. 4º), e, ainda, que esses 3 movimentos se comprometiam a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados em Angola (art. 54º) ([5]).

É certo que, como é sabido, a independência de Angola veio a ser proclamada em 11 de Novembro de 1975, mas unilateralmente, por todos e cada um daqueles 3 movimentos e que, na sequência do incumprimento generalizado do referido acordo pelos mesmos movimentos ([6]), o Estado Português veio a reconhecer o Estado de Angola apenas cerca de 3 meses depois, em 22 de Fevereiro de 1976, pelo que ter-se-á verificado durante esse período o alegado impedimento de os AA. gozarem de protecção diplomática.

Porém, já não é imputável ao Estado Português a invocada ruptura, em si mesma, do compromisso que, como se disse, aquele logrou fazer consagrar no Acordo de Alvor no sentido de os 3 movimentos respeitarem os bens e os interesses dos portugueses domiciliados em Angola, nem os danos depois produzidos por um novo Estado, soberano e independente. O que ao R. poderia ser imputado nem sequer seria a desapropriação dos bens dos AA., efectuada sem indemnização pelo novo Estado, mas apenas o eventual incumprimento do dever de ter apoiado, por via diplomática, a eventual reacção que os AA, então, tivessem adoptado perante esse Estado, enquanto autor de tal facto, sendo certo que uma tal reacção não vem alegada.

Aliás, apesar de o invocado confisco não ser reportado pelos AA. a uma data concreta, os termos da sua alegação sugerem ter o mesmo ocorrido também durante o período em que os mesmos dizem ter estado impedidos de gozar de protecção diplomática em relação a tal acto (entre 11/11/1975 e 22/2/1976).

De qualquer modo, estamos perante um complexo fáctico corrido quando já estavam consolidados os danos que os AA. pretenderiam ver reparados nesta acção e os factos ilícitos que, como estes alegaram, os teriam provocado, e que, sendo os que relevam nesta apreciação, não se estenderam para cá de 1974/1975, como facilmente se compreende. E, por outro lado, esse complexo fáctico posteriormente ocorrido está fora de causa na presente acção, em que é exercido o direito à reparação de danos invocadamente produzidos na esfera jurídica dos AA. no momento do seu êxodo forçado do território Angolano em consequência da actuação tida pelo R. ainda durante a sua administração desse território – período em que se fundou e alegadamente nasceu tal direito. O princípio da protecção diplomática, que terá estado subjacente às invocadas actuações do R. em relação ao Zaire ou de outros países europeus em situações semelhantes, nada tem a ver com a responsabilidade autónoma do Estado Português exigida nesta acção, por aquele se traduzir numa «garantia internacional tradicional que é um direito do Estado (“dominus litis”) que supõe uma acção contra o Estado violador, sem prejuízo do particular poder sempre processar o Estado autor da violação contra tal violação» ([7]).

Ora, nos termos do disposto no art. 498º do CC, o «direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso».

Assim, o momento que releva para o início da contagem do prazo da prescrição relativa ao direito em concreto exercido nesta acção, em nada depende da circunstância de poderem perdurar até à actualidade tanto os danos como essas alegadas faltas de apoio do R., por via diplomática, a qualquer eventual iniciativa dos AA. perante o Estado que alegadamente os desapropriou, sem indemnização, dos bens que em 1974/1975 foram forçados a deixar em Angola, pretensamente devido à actuação ilícita do R.

No caso, ficando os AA. desapossados dos seus bens em 74/75, ou seja, no momento do seu êxodo forçado do território Angolano, é evidente que os elementos fácticos do direito à indemnização eram, então, já por eles conhecidos. Donde, sem prejuízo de outras posteriores ponderações sobre os diversos argumentos aduzidos no recurso, foi nessa altura, sem dúvida, que se iniciou a contagem do prazo de prescrição previsto no nº 1 do art. 498º do CC ([8]).

2. A imprescritibilidade do direito exercido pelos AA.

Segundo os apelantes, o direito a que se arrogam, conferido pelo art. 22º da Constituição, está subtraído ao regime prescricional, tal como os direitos emergentes da violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

É certo que a pretendida responsabilidade patrimonial (extracontratual) do Estado tem como fundamento constitucional o princípio que, actualmente, flui directamente do disposto no artigo 22º da CRP, estando então, na data dos factos em apreço, apenas regulamentado na lei ordinária através do DL 48.051 de 21/11/1967 ([9]). Por outro lado, «revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos “direitos, liberdades e garantias”, compartilhando por isso do respectivo regime específico (cfr. art. 17°), nomeadamente para efeito do regime de restrições» ([10]).

Porém, a violação do direito de propriedade dos AA., constitucionalmente garantido ([11]), apenas mediata ou indirectamente se conexiona com a actuação que eles imputam ao R., pois que desta não decorre, necessariamente, a responsabilidade pela invocada expropriação a que os demandantes foram sujeitos.

Seja como for, o direito a que os AA. se arrogam, fundado nessa responsabilidade, é configurável, simplesmente, como um crédito (indemnização) sobre o R. Estado Português e não se vislumbra no nosso ordenamento jurídico qualquer fundamento para encarar como isento de prescrição, designadamente por ser indisponível (cf. art. 298º do CC) o direito de crédito originado em ofensa ao conteúdo do direito de propriedade (gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa). Neste caso, a actuação do instituto da prescrição não implica a denegação do respeito e da garantia de efectivação de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, pois apenas acarreta a extinção dos pretendidos direitos de crédito, com tradução meramente patrimonial ([12]).

 Salvo o devido respeito, também não impõe grandes explanações a ideia defendida no recurso de que terá de valer para os AA., a regra da imprescritibilidade que o R. reconheceu às famílias dos judeus vítimas do holocausto nazi e acolhida no art. 8º da Constituição quanto a crimes contra a Humanidade, de acordo com as regras do Direito Internacional ([13]), porque aqueles também teriam sido vítimas de actos de violência sobre população não beligerante, motivados por ódio racial e crimes de guerra.

Ora, para que o paralelo com a situação dos judeus vítimas do holocausto nazi não pudesse ser considerado excessivo, para não dizer abusivo, teriam os AA. de se propor demonstrar factos circunstanciados – que, obviamente, não alegaram – integrativos duma actuação por parte do Estado Português orientada pelo desígnio de consumar o extermínio dos cidadãos portugueses – judeus ou não – então residentes em Angola.

O que os AA afirmam é que, bem diferentemente, devido à falta de isenção e de capacidade de afirmação das forças portuguesas no território de Angola, gerou-se aí um clima de insurreição e guerra civil, âmbito em que o MPLA, segundo dizem, assaltou, incendiou e pilhou propriedade de residentes de todas as raças e credos religiosos, torturou, manteve em cativeiro, molestou sexualmente e assassinou um número indeterminado de pessoas no território de Angola, assim fomentando, tal como as demais forças insurrectas, um clima de ódio e vindicta de que foram alvo especialmente os angolanos de origem portuguesa.

Mas, no que respeita, estritamente, ao Estado ora demandado, os AA. quedam-se por uma fluida ou indefinida afirmação de que os respectivos comissários no território “cooperaram, designadamente na prática de actos de genocídio, com o MPLA”. Perante os contornos de tal alegação, nunca se poderiam vir a demonstrar quais os concretos termos e circunstâncias dessa putativa “cooperação” e é seguro que os AA não imputam ao R. ou aos seus comissários quaisquer actos que, à luz dos princípios de direito internacional, pudessem ser catalogados como ilícitos (crimes) contra a humanidade ou graves violações dos Direitos do Homem, nem, muito menos, que os próprios AA. tivessem sofrido quaisquer actos dessa natureza praticados pelo R. ou pelos seus comissários, nessa qualidade ([14]).

3. O início da contagem e a suspensão do prazo prescricional.

Sustentam os apelantes que são continuados e ainda não cessaram alguns dos factos geradores da responsabilidade do R, manifestando o entendimento de que é continuada e prolonga-se até aos nossos dias a omissão de protecção diplomática, em cujo cumprimento, segundo sugerem, o mesmo tinha o dever de diligenciar junto do Estado Angolano em termos semelhantes aos que adoptou junto da República do Zaire, ou àqueles como agiram todos os países europeus com situações semelhantes.

Não concordamos com este argumento, como procurámos acima demonstrar ao expor a nítida distinção – que reiteramos – entre os fundamentos da responsabilidade em que se estriba o pedido formulado nesta acção e o eventual incumprimento pelo R. do dever de ter apoiado, por via diplomática, alguma reacção que os AA. tivessem posteriormente adoptado perante o Estado Angolano, enquanto autor da expropriação de que os bens dos AA. foram objecto, a qual está fora de causa na presente acção e, de todo o modo, ocorreu quando já estavam consumados os factos e consolidados os danos que os AA. pretenderiam ver aqui reparados e que não se estenderam no tempo ulterior a 1974/1975. O princípio da protecção diplomática, subjacente às invocadas actuações do R. em relação ao Zaire ou de outros países europeus em situações semelhantes, nada tem a ver com a responsabilidade autónoma do Estado Português exigida nesta acção.

A Lei 80/77 de 26/10 veio estabelecer o direito de indemnização aos ex-titulares de bens nacionalizados ou expropriados, dando conteúdo ao princípio geral de que toda a nacionalização ou expropriação apenas pode ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização. Ora, os apelantes vêm evocar o seu art. 40º que estatui:

«1. Os bens sitos em território de ex-colónias que se prove terem sido aí expropriados, nacionalizados ou de outra forma objecto de privação duradoura de posse ou fruição, bem como os respectivos títulos representativos de direitos, estão sujeitos a regime de indemnização fixado segundo a lei do Estado da localização dos bens ou da sede ou direcção efectiva, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva nacionalização, expropriação ou privação da posse ou fruição.

2. Nos casos referidos no número anterior presume-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito, podendo a sua existência ser declarada pelos tribunais portugueses competentes, desde que os respectivos titulares residam em território nacional.».

Com essa invocação do preceito, os apelantes visam retirar dele duas utilidades argumentativas que, salvo o devido respeito, se anulam reciprocamente porque são entre si logicamente incompatíveis. Com efeito, os AA. tanto dizem que com a publicação daquele artigo 40º se convenceram de que iriam ser indemnizados como que, nos termos da respectiva norma, o não poderiam ser e por essa razão, não propuseram (anteriormente) qualquer acção.

Independentemente dessa incongruência, cada um dos argumentos, individualmente sopesado, é imprestável para o objectivo do recurso. Vejamos.

Como se retira do Diário da Assembleia da República nº 139, de 10/8/1977, a discussão sobre o teor da norma foi desencadeada por um Projecto de Lei apresentado pelo Grupo Parlamentar do CDS, que tinha a seguinte redacção:

«1. Os bens sitos em territórios de ex-colónias que se prove terem sido aí expropriados, nacionalizados ou de outra forma objecto de privação duradoura de posse e fruição, bem como os respectivos títulos representativos de direitos, estão sujeitos a idêntico regime, podendo as correspondentes indemnizações ser calculadas, face à legislação aplicável, pelo tribunal da residência do titular.

2. Nos casos referidos no número anterior, presume-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito.».

Do texto da que veio a ser a efectiva opção do legislador retira-se imediatamente que foi rejeitada, de modo claro, a equiparação sugerida na proposta apresentada pelo referido Grupo Parlamentar, porque o Estado Português não assumiu a responsabilidade pelas indemnizações que fossem devidas aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados pelos novos Estados dos territórios das ex-colónias, diferentemente do que no diploma ficou consagrado, naturalmente, em relação aos bens nacionalizados ou expropriados em território nacional.

O legislador limitou-se afirmar que os bens sitos em território de ex-colónias – no estrangeiro, portanto – estão sujeitos a regime da indemnização fixado segundo a lei do Estado da sua localização, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva privação, presumindo-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito. Estamos, pois, face a uma proclamação meramente programática e sem qualquer a reconhecimento auto vinculante, porquanto o teor da lei não admite outra interpretação que não fosse a de que o legislador, de modo algum, responsabilizava o Estado Português pelo pagamento das indemnizações, limitando-se a “sugerir” aos cidadãos nacionais privados dos bens nacionalizados ou expropriados nas ex-colónias para exercerem os seus direitos junto dos novos Estados responsáveis por tal privação, para os quais os remetia.

Se foi com essa norma que os AA. adquiriram a percepção de que seriam indemnizados, só poderiam ter formulado a convicção de que o poderiam vir a ser, eventualmente, pelos novos Estados responsáveis pela privação dos seus bens, não pelo Estado Português, que é o que, nesta sede, relevaria.

Assim sendo, também é ininteligível a sua concomitante alusão de que a norma criou a aparência jurídica de que o direito a que agora se arrogam inexistia ou ao menos seria ineficaz e não poderia ser exercido, razão pela qual não propuseram anteriormente esta acção. A única aparência jurídica gerada pela norma é a de que o Estado Português presume a existência de direito à indemnização correspondente ao valor dos bens nacionalizados ou expropriados nas ex-colónias, mas da responsabilidade dos novos Estados (estrangeiros) que efectuaram a respectiva privação, em conformidade com os princípios gerais de direito, reiterando-se, neste conspecto, que esse direito nada tem a ver com a pretensão deduzida nesta acção – configurada pelo pedido e respectiva causa de pedir –, sendo o inerente direito à indemnização fundado em elementos fácticos estabelecidos e conhecidos pelos AA. já desde 74/75, ou seja, desde o momento do seu êxodo forçado do território Angolano. Também aqui, a prescrição dos créditos a que os AA. se arrogam, fundados nesses factos, por força da inércia dos mesmos, confrontada com as eventuais diligências encetadas pelo R. junto da República do Zaire, não acarreta a preterição dos princípios da justiça, da equidade e da igualdade, perante a muito distinta justificação dos fundamentos desta acção e a dos que terão desencadeado tais iniciativas diplomáticas ([15]), sendo para esse efeito também impertinente, por maioria de razão, o apelo ao modo como agiram todos os países europeus com situações alegadamente semelhantes.

Para o desiderato visado pelos AA., a norma da Lei 80/77 por eles questionada, embora nada estorve, também nada adianta, porque se não pode exprimir o reconhecimento pelo legislador do direito a que se arrogam, também não os poderia ter impedido de, anteriormente, deduzirem a pretensão formulada nesta acção. E, assim sendo, a suscitada apreciação da conformidade constitucional de tal norma, sendo inócua para esta acção, imporia uma tarefa sem qualquer interferência na decisão do recurso ([16]), portanto, meramente teórica, inútil e processualmente proibida (cf. art. 130º do CPC).

Os apelantes também procuraram evidenciar que, a considerar-se iniciado o prazo prescricional, este foi suspenso porque o R. procedeu com dolo indirecto, para evitar que os AA. propusessem acções judiciais. Para tanto, insistiram na evocação do falado art. 40º da Lei 80/77, a par dos anúncios publicados por organismos ou departamentos do R., recomendando aos ex-residentes em Angola que elaborassem listas dos bens ali deixados.

No que ao art. 40º daquela lei respeita, pelas razões já alinhavadas para afirmarmos que, com ela, o R. não poderia ter impedido os AA de, anteriormente, deduzirem a pretensão formulada nesta acção, também diremos que não se vislumbra como poderia a sua publicação evitar que os AA. propusessem acções, nem, muito menos, configurar dolo do Estado, em qualquer das suas modalidades, atendendo à apontada clareza do propósito com ela manifestado.

A interpretação mais ajustada à situação que pode fazer um declaratário normal colocado na posição dos AA (art. 236º do CC) sobre a publicação dos ditos anúncios deve atender tanto ao teor como ao contexto dos mesmos. Ora, considerando que os 3 movimentos que se tinham rebelado em prol da independência de Angola se haviam comprometido, ao subscrever o mencionado Acordo de Alvor, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados no território, a recomendação do Estado Português aos cidadãos provenientes da ex-colónias para elaborarem listas dos bens perdidos, não pode ser interpretada com o sentido de que o anunciante estava a atribuir-se ou a reconhecer a sua responsabilidade autónoma nos termos exigidos nesta acção, mas apenas o de que iria diligenciar junto do Estado que sucedeu às entidades que haviam assumido tal compromisso para apoiar diplomaticamente as iniciativas que os cidadãos nacionais encetassem para obter daquele Estado o respeito dos seus direitos.

Conclui-se, pois, que, com o exarado no art. 40º da Lei 80/77, o Estado Português considerou não ter qualquer responsabilidade relativamente ao pagamento de indemnizações aos cidadãos nacionais que tenham ficado privados dos bens que possuíam no território angolano, nacionalizados ou expropriados pelo novo Estado, e que os falados anúncios se destinaram «apenas a obter uma tipificação e quantificação de casos concretos a apresentar em eventuais negociações» ([17]) a desenvolver em obediência ao princípio da protecção diplomática e da inerente garantia internacional ([18]). Assim, não se divisa, em qualquer dos casos, onde poderia residir a sugestão ou artifício empregue pelo R com a consciência de induzir os AA. em erro.

4. O reconhecimento pelo R do direito exercido na acção.

Defendem os apelantes que o R. efectuou tal reconhecimento, renunciando ao benefício da prescrição, através do art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), da criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e do ofício de 6.1.1993 do Chefe de Gabinete do Secretário de Estado para a Cooperação.

Não concordamos com esta linha de argumentação: afigura-se-nos que todos os actos enunciados pelos AA. e imputados ao R., a par das já faladas inventariação dos bens “espoliados” ou da sugerida promessa de concessão de apoio diplomático, têm apenas «a finalidade de propor soluções para questões pendentes, que desde o tempo da descolonização se encontram sem solução definida, face ao comportamento dos governantes dos novos Estados soberanos surgidos nesses territórios» ([19]), e, sendo certo que os trabalhos para tanto necessários careceriam de disponibilidade orçamental, aqueles não podem ser interpretados como reveladores, expressa ou tacitamente, da assunção da responsabilidade indemnizatória aqui exercida pelos AA., ou seja, do reconhecimento (inequívoco) do direito indemnizatório a que os mesmos se arrogam. Uma norma com o teor tão singelo como o do art. 56º da citada lei do orçamento de 1998, que, tal como sucedeu com outras da mesma natureza, autorizou o Governo a regularizar responsabilidades decorrentes de situações do passado, designadamente do processo de descolonização, não se compatibilizaria com a assunção de uma responsabilidade como a respeitante, designadamente, ao valor dos muitos bens deixados pelos portugueses nos territórios das ex-colónias quando os abandonaram, estando o preceito desacompanhado de outras explicações ou previsões que permitissem compreender a origem das receitas para as magnas implicações financeiras de um tal reconhecimento.

Também a competência do Gabinete de Apoio aos Espoliados, criado pela Resolução do Conselho de Ministros nº13/92 de 16/4 ([20]), subscrita pelo então 1º Ministro, de levar a efeito a «ponderação e defesa junto dos governos e autoridades dos países africanos de língua oficial portuguesas, dos interesses dos portugueses cujos bens e direitos foram confiscados, nacionalizados, ocupados ou intervencionados do decurso de processos de descolonização». Assim, como logo se vê, a Resolução visou um limitado escopo – logo indiciado pelo vocábulo “Apoio” –, inconciliável com o reconhecimento (inequívoco) de direito de indemnização a satisfazer pelo Estado Português, demandado nestes autos, sustentado pelos apelantes ([21]).

Por fim, o teor do ofício de 6/1/1993, enviado por um chefe de gabinete da Secretaria de Estado da Cooperação ([22]), mesmo supondo que o funcionário que o subscreveu poderia vincular o R. à pretendida renúncia, tem um alcance exactamente oposto ao esgrimido reconhecimento, atendendo, sobretudo ao seu  2º parágrafo, em que alude, explicitamente, às «diligências … pertinentes e passíveis de produzir efeitos juntos dos governos e autoridades dos países africanos de língua oficial portuguesa, no sentido de se encontrarem soluções conducentes à reparação dos interesses dos cidadãos portugueses prejudicados pelos processos de descolonização».

 5. O abuso de direito e a legalidade democrática.

Por fim, defendem os apelantes que a invocação da prescrição pelo R. constitui um abuso de direito (referindo de novo a Lei 80/77 e os anúncios), por ser contrária à boa-fé e aos bons costumes, e que estaria vedada ao Ministério Público, enquanto obrigado à defesa da legalidade democrática.

Realmente, o abuso de direito ([23]), previsto no art. 334º do CC ([24]), confronta-se, designadamente, com os conceitos da boa fé ([25]) e dos bons costumes ([26]).

Contudo, os apelantes não têm razão, emergindo como descabida a invocação do abusivo exercício do direito pelo A, no descrito contexto da configuração que oferecem à acção.

Desde logo, segundo pensamos, já demonstrámos suficientemente que todos os actos imputados pelos AA. ao R. não revelam, expressa ou tacitamente, a assunção (inequívoca) da responsabilidade indemnizatória aqui exercida pelos AA. e, por isso, também não se pode pretender que com eles se gerou nestes a legítima crença de que o R. lhes pagaria, mesmo sem a propositura da acção, as indemnizações a cujo direito se arrogam e que, agora, essa confiança, seria infundadamente retirada com a invocação da prescrição. Não se descortina como podem os apelantes manter que o R. sempre lhes fez acreditar que não iria exercer o direito de invocar a prescrição – o que ora está em causa – e que esta invocação retira inesperadamente uma confiança legítima criada pelo R., equivalente ao “venire contra factum proprium”, ou que é “uma exigência injustificada” ou “um comportamento desleal”, conducentes à perda do direito (“Verwirkung”), que é, enfim, uma conduta que ofende manifesta e intoleravelmente a fidelidade à palavra dada, frustrando e abusando «daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas» ([27]), ou o conjunto de regras de convivência que, no actual ambiente cultural, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente (bons costumes).

Por outro lado, como acima observámos (num parêntesis), a prescrição, em boa verdade, é um instituto que não se limita a proteger benefícios privados porquanto, em geral, também persegue um interesse de ordem pública. Com efeito, embora aplicável aos direitos subjectivos tem também subjacentes razões de justiça, dirigidas, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, tomando em conta a ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo e que, por isso, o mesmo perde, adaptando-se a situação de direito à situação de facto.

Ora, nos termos do art. 219º da CRP e do art. 1º da do respectivo Estatuto (Lei n.º 47/86 de 15/10), o Ministério Público, além do mais, representa o Estado e defende a legalidade democrática. E a invocação da prescrição pelo Estado, representado pelo Ministério Público, sendo legítima, permite que possa ser atingido, em conformidade com os ditames da legalidade democrática, o interesse de ordem pública bem como os objectivos de conveniência ou oportunidade subjacentes a tal instituto, uma vez ponderada a inércia dos titulares do direito exercitando.

 Em conclusão, não tendo o Estado reconhecido o direito exercido nesta acção e uma vez que decorreram mais de 3 (até mais de 20) anos, após a possibilidade do exercício desse direito, ou seja, desde a data em que os AA. tomaram conhecimento dos factos em que o fundamentam sem terem desencadeado qualquer processo que pudesse levar a um eventual reconhecimento por aquele e não se tendo interrompido nem suspendido o decurso do prazo para o fazer, não podia deixar de ser julgada procedente, como foi, a arguida excepção da prescrição, dispondo os autos dos elementos para tanto necessários.

A improcedência da questão suscitada pelos apelantes – que, como se disse, prejudica a apreciação do agravo – é evidenciada, com suficiência, por tudo o que acaba de se expor e que se resume através da seguinte

Síntese conclusiva:

1ª) Nesta acção os AA. formulam o pedido, fundado na responsabilidade civil do R. Estado Português pelo exercício da sua função política, de que este repare o valor dos danos alegadamente sofridos por cada um deles em consequência da actuação do demandado no âmbito do processo de descolonização de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar.

2ª) Por assim ser, só são concebíveis como ilícitos os factos imputáveis ao R. que se possam caracterizar como reais consumações do incumprimento do processo conducente à descolonização já que o desiderato por esta prosseguido – há muito reclamado por princípios de direito internacional consensualmente aceites pela comunidade dos países –, do ponto de vista da sua licitude, não pode ser confrontado com princípios consagrados na Constituição de 1933 claramente derrogados pela nova ordem jurídico-constitucional desencadeada pela Revolução de 25 de Abril de 1974 e plasmada particularmente na Lei Constitucional nº 7/74 de 27/7, como era o que exprimia a ideia de que a independência das então designadas províncias ultramarinas se concretizava na independência da pátria.

3ª) Em face da matéria de facto alegada pelos AA., foi aquando do seu êxodo forçado do território de Angola que os mesmos aí deixaram os seus bens, ficando impedidos de os usufruir e possuir, e perderam a estabilidade da respectiva situação familiar. Portanto, na perspectiva dessa alegação, tanto os factos putativamente ilícitos e geradores dos danos cuja reparação é por eles pedida como os próprios danos consolidaram-se ou concretizaram-se definitivamente enquanto aquele território esteve sob a administração do Estado Português, ou seja, até 11/11/1975, data que terá de balizar a apreciação dos pressupostos da questionada excepção de prescrição.

4ª) Não é imputável ao Estado Português a invocada ruptura, em si mesma, do compromisso que aquele logrou fazer consagrar no Acordo de Alvor no sentido de os 3 movimentos então designados de libertação nacional de Angola (FNLA, MPLA e UNITA) respeitarem os bens e os interesses dos portugueses domiciliados em Angola, nem os danos depois produzidos por um novo Estado, soberano e independente, decorrentes da desapropriação dos bens dos AA, efectuada sem indemnização.

5ª) O que ao Estado Português poderia ser imputado seria apenas o eventual incumprimento do princípio da protecção diplomática – traduzido na «garantia internacional tradicional que é um direito do Estado (“dominus litis”) que supõe uma acção contra o Estado violador, sem prejuízo do particular poder sempre processar o Estado autor da violação contra tal violação» – i. é, do dever de ter apoiado, por via diplomática, a eventual reacção que os AA, então, tivessem adoptado perante esse Estado, enquanto autor da desapropriação, sendo certo que uma tal reacção não vem alegada.

6ª) Mas o momento que releva para o início da contagem do prazo da prescrição relativa ao direito em concreto exercido nesta acção, em nada depende da circunstância de poderem perdurar até à actualidade tanto os danos como as alegadas faltas de apoio do Estado Português, por via diplomática, a qualquer eventual iniciativa dos AA. perante o Estado que alegadamente os desapropriou dos bens que em 1974/1975 foram forçados a deixar em Angola, pretensamente devido à imputada actuação ilícita do R.

7ª) A prescrição de direitos de crédito com tradução meramente patrimonial originados em ofensa ao conteúdo do direito de propriedade não implica a denegação do respeito e da garantia de efectivação de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, não obstante a correspondente responsabilidade extracontratual do Estado ter como fundamento constitucional o princípio que, actualmente, flui directamente do disposto no artigo 22º da CRP – estando, na data dos factos em apreço, apenas regulamentado na lei ordinária através do DL 48.051 de 21/11/1967 – e o direito de propriedade ser constitucionalmente garantido.

8ª) A fim de poder admitir a imprescritibilidade do direito que invocam e para que o paralelo com a situação dos judeus vítimas do holocausto nazi não pudesse ser considerado excessivo, para não dizer abusivo, teriam os AA. de se propor demonstrar factos circunstanciados – que, obviamente, não alegaram – integrativos duma actuação por parte do Estado Português orientada pelo desígnio de consumar o extermínio dos portugueses – judeus ou não – então residentes em Angola.

9ª) E, perante os contornos da matéria alegada pelos AA., nunca se poderia vir a demonstrar que o Estado Português ou os seus comissários cometeram quaisquer actos que, à luz dos princípios de direito internacional, pudessem ser catalogados como ilícitos (crimes) contra a humanidade ou graves violações dos direitos do homem, nem, muito menos, que os próprios AA. tivessem sofrido quaisquer actos dessa natureza praticados pelo demandado ou pelos seus comissários, nessa qualidade, sendo sabido que, para que assumissem essa classificação, os actos imputados teriam de possuir, pelo menos, seis características: a) desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos etc.); b) generalizados ou sistemáticos; c) dirigidos à população civil; d) durante conflito armado; e) conformes a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promovam essa política; f) com conhecimento desses agentes.

10ª) Do texto da que veio a ser a efectiva opção do legislador consagrada no art. 40º da Lei 80/77 de 26/10 consta, de modo claro, que o Estado Português não assumiu a responsabilidade pelas indemnizações que fossem devidas aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados pelos novos Estados dos territórios das ex-colónias, limitando-se proclamar que tais bens estão sujeitos ao regime da indemnização fixado segundo a lei do Estado da sua localização, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva privação, presumindo-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito.

11ª) Por assim ser, essa norma também nunca poderia ter criado a aparência jurídica de que inexistia ou ao menos seria ineficaz o direito a que os AA. agora se arrogam, baseado na suposta actuação ilícita do Estado Português enquanto administrou a colónia de Angola, o que teria impedido aqueles de exercerem anteriormente a sua pretensão.

12ª) Também a recomendação do Estado Português feita aos cidadãos provenientes da ex-colónias, publicitada através de anúncios em jornais, para elaborarem listas dos bens perdidos, só pode ser interpretada com o sentido de que o anunciante apenas iria diligenciar junto do Estado que sucedeu às entidades que se haviam comprometido, em Alvor, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados no território, para apoiar diplomaticamente as iniciativas que os cidadãos nacionais encetassem para obter daquele Estado o respeito dos seus direitos e não o sentido de que estava a atribuir-se a responsabilidade autónoma exigida nesta acção.

13ª) Por isso, atendendo à apontada clareza dos propósitos manifestados pelo Estado Português, tanto no caso do citado art. 40º como no dos anúncios, não se divisa, onde poderia residir a sugestão ou artifício empregue com a consciência de induzir os AA. em erro e, assim, poder configurar o dolo daquele, em qualquer das suas modalidades,

14ª) Nenhum dos actos enunciados pelos AA. e imputados ao Estado Português traduz o (inequívoco) reconhecimento deste, expresso ou tácito, do direito de indemnização, que aqueles pretendem ver satisfeito nesta acção: o art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), a criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e o ofício de 6.1.1993 do chefe de gabinete da secretaria de Estado para a Cooperação, tal como as já faladas inventariação dos bens “espoliados” ou a sugerida promessa de concessão de apoio diplomático, têm apenas «a finalidade de propor soluções para questões pendentes, que desde o tempo da descolonização se encontram sem solução definida, face ao comportamento dos governantes dos novos Estados soberanos surgidos nesses territórios», sendo certo que a ajuda possível aos desalojados das ex-colónias careceria de disponibilidade orçamental.

15ª) E nenhum de tais actos foi idóneo a gerar nos AA. a legítima crença de que o Estado Português lhes pagaria, mesmo sem a propositura da acção, as indemnizações a cujo direito se arrogam, sendo essa confiança, agora, infundadamente retirada com a invocação da prescrição, que, assim, não é configurável como abusiva da boa-fé ou dos bons costumes.

16ª) A invocação da prescrição pelo Estado, representado pelo Ministério Público, é legítima porque permite que possa ser atingido, em conformidade com os ditames da legalidade democrática, o interesse de ordem pública dirigido, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade subjacentes a tal instituto, uma vez ponderada a inércia dos titulares do direito exercitando.

Decisão.

Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

                   Coimbra, 03/11/2015 

Alexandre Reis (Relator)

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo

***

[1] Instituto aplicável aos direitos subjectivos que, embora tenha também subjacentes razões de justiça, dirige-se fundamentalmente à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, tomando em conta a ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo e que, por isso, o mesmo perde, adaptando-se a situação de direito à situação de facto (Neste sentido, o Ac. do STJ de 12/7/2001 (p. 01A1332-Pinto Monteiro) e o Ac. da RL de 18/1/2001 (0094082- Proença Fouto), consultáveis em www.dgsi. como sucederá com todos as decisões jurisprudenciais ulteriormente citadas sem qualquer outra menção.

[2] Neste sentido, o Ac. STJ de 23/3/2006 (p. 05B4370-Oliveira Barros).

[3] A Lei 3/74, de 14 de Maio definiu a estrutura constitucional transitória que regeria a organização política do País até à entrada em vigor da nova Constituição Política da República Portuguesa, derrogou a Constituição de 1933 em tudo o que nela contrariasse os princípios expressos no Programa do Movimento das Forças Armadas (Anexo a tal Lei fundamental) e cometeu ao Conselho de Estado a competência para exercer os poderes constituintes assumidos em consequência do Movimento das Forças Armadas até à eleição da Assembleia Constituinte (art. 13º).

[4] Identicamente, considerou o Ac. da RL de 18/1/2001 (já citado): «O reconhecimento pelo Estado Português do direito dos povos dos territórios ultramarinos à autodeterminação e independência traduz-se num acto político lícito».

[5] Diferentemente, o Acordo de Lusaka assinado, em 7/9/1974 em relação a Moçambique, não contém menção à defesa, após a independência, dos interesses dos portugueses que lá viviam.

[6] Pelo DL 458-A/75, de 22/8, esse Acordo foi considerado transitoriamente suspenso «no que diz respeito aos órgãos de governo de Angola», «por ter sido objecto de frequentes violações por parte dos aludidos movimentos, numa manifestação da sua incapacidade de superarem as divergências».

[7] Ac. da RL de 18/1/2001 (já citado).

[8] Neste sentido, v., p.ex., os Acs. da RL de 10/2/2009 (5629/2008-1- Maria Rosário Barbosa) e de 13/6/2005 (7136/2005-6- Gil Roque) e do STJ de 23/10/2007 (p.2962/07-Moreira Camilo, in www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/responsabcivilestado1996-2012.pdf), de 12/7/2001 (já citado), de 23/3/2006 (já citado) e de 31/5/2005 (p. 1402/05 - Lemos Triunfante), este, com o seguinte sumário: «O prazo de prescrição do direito a indemnização pelos danos morais e materiais que advieram do processo de descolonização do actual Estado de Moçambique é de 3 anos contados desde a data em que o lesado tomou conhecimento do direito invocado. Resultando da própria Petição Inicial que os Autores obtiveram conhecimento dos factos que alegam entre os anos de 1974 e 1986, tendo a acção sido instaurada em 24-09-2003, ocorrendo a citação do Réu (Estado Português) em 02-10-2003, é inequívoca a prescrição do direito a indemnização, pelo que se mostra acertada a decisão de julgar procedente tal excepção logo no despacho saneador.».

[9] À data dos factos danosos invocados pelos AA, a CRP de 1933 não continha disposição idêntica à do referido art. 22º, pelo que a questão sempre teria de ser solucionada pela aplicação do citado DL 48.051. Vigora, actualmente, a Lei 67/2007 de 31/12.

[10] Gomes Canotilho e Vital Moreira, C.R.P, anot., p. 802.

[11] Actualmente, pelo art. 62º da CRP, embora não em termos absolutos.

[12] O Ac. do STJ de 23/10/2007 (já citado), considerou: «Estando em causa a pretensão de exercício de um direito a indemnização, seja por acto ilícito, seja por acto lícito do Estado Português, determinante de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do alegado não acautelamento da perda de bens que os Autores, retornados da ex-colónia de Moçambique, tinham à data da independência deste território, antes sob administração portuguesa, não se pode considerar que o reconhecimento da prescrição desse direito viole os princípios ínsitos nos arts. 62.º, 8.º, 14.º e 22.º da CRP».

[13] Segundo o citado preceito da CRP, «As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português» e, na verdade, é comummente sabido que a responsabilidade por crimes contra a humanidade ou graves violações dos Direitos do Homem é imprescritível (a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade foi declarada pela ONU na Resolução nº 3074 de 3/12/1973), sendo tais crimes tipificados no art. 6º da Carta do Tribunal Militar Internacional, anexa ao Acordo para Acusação e Punição dos Altos Crimes de Guerra do Eixo Europeu, assinado em 8 Agosto 1945 (Tribunal de Nuremberga), designadamente na sua al. c), e tendo a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptado os princípios de direito internacional reconhecidos nessa Carta bem como a sentença do Tribunal de Nuremberga (resoluções nº3 e 95 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13/12/1946 e 11/12/1946.

[14] Conforme é consensualmente entendido, para que assumam a classificação de crimes contra a humanidade, os actos em causa terão de possuir, pelo menos, seis características: a) desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos etc.); b) generalizados ou sistemáticos; c) dirigidos à população civil; d) durante conflito armado; e) conformes a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promovam essa política; f) com conhecimento desses agentes.

[15] Neste sentido, o citado Ac. do STJ de 23/10/2007.

[16] Da não produção pela norma de qualquer efeito, que decorreria da eventual declaração da sua inconstitucionalidade, não se poderia inferir o pretendido reconhecimento pelo R da sua responsabilidade correspondente ao direito exercido nesta acção, nem a de que, por outro lado, os AA não puderam fazer valer esse direito em momento anterior ao da proposição da acção.

[17] Como constava explicitamente do teor de tais anúncios (cf. fls. 415).

[18] Neste sentido, os já citados Acs. do STJ de 23/3/2006 e da RL de 13/6/2005.

[19] Ac. da RL de 13/6/2005 já citado.

[20] Tendo em vista que «O complexo processo de descolonização, iniciado nas circunstâncias políticas e sociais de todos conhecidas, ocasionou graves repercussões na vida pessoal e profissional de muitos cidadãos portugueses que, àquela data, viviam nas ex-colónias portuguesas», como se lê no respectivo preâmbulo.

[21] Cf., neste sentido, o citado Ac do STJ de23/6/2006. Considerou também o citado Ac. da RL de 13/6/2005: «O que o Estado Português garantiu através da criação do IARN e de outros organismos, foi dar a possível ajuda aos desalojados das ex-colónias, em território português, mas nada nos leva a crer que alguma vez tivesse querido indemnizá-los pelo valor dos bens que lhes foram retirados pelo novo país independente».

[22] Cf. fls. 418.

[23] «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». «O abuso do direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quando à intensidade ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, e as consequências que outros têm que suportar» (Ac. do STJ de 24/2/1999, BMJ 484º-246).

[24] O nosso código adopta a concepção objectiva de abuso de direito, a qual, desligando-se da intenção ou da atitude psicológica do titular do direito, dá relevância ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites» (P.Lima e A.Varela, CC Anot., 4ª ed. Vol. I, p. 298).

[25] Como já dissemos, também aqui, apenas relevará o alcance objectivo da conduta censurada pelos apelantes, de acordo com o critério da consciência pública. A boa fé pode ser vista como um estado de espírito que se exprime pelo convencimento da ignorância da ilicitude de certo comportamento ou como exigindo que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. «(...) a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de “hipóteses típicasou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral da boa fé» (v. Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, p. 59 e 60). Heinrich E. Horster (A Parte Geral do CC Português, pp 284 e ss) destaca como algumas dessas hipóteses: «O “venire contra factum proprium” (ou comportamento contraditório), onde foi adoptado pelo titular do direito um comportamento positivo no sentido de não querer exercer o mesmo, tendo esta atitude como consequências as correspondentes disposições da outra parte...»; «a perda do direito (“Verwirkung”)», correspondendo, aproximadamente, à caducidade, quando o titular do direito não invoca o mesmo durante bastante tempo; «a exigência injustificada...»; «um comportamento desleal...»; «a inobservância dos princípios gerais das obrigações...».

[26] Por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente (V. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 7ª ed. p 72).

[27] Rui de Alarcão, Direito das Obrigações. Polic., Coimbra, 1983, pp. 108 e ss.