Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
254/14.5 JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PROVA PERICIAL
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º E 163.º DO CPP
Sumário: Quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião, ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, que decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, devendo ser tido em devida conta o princípio in dubio pro reo.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 254/14.5 JACBR do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo Central Criminal de Viseu - Juiz 2, mediante acusação pública, foi o arguido A.., conhecido por “AA...”, filho de B... e de C... , nascido a 27/06/1967, natural da freguesia de (...) , concelho de (...) , casado, trabalhador da construção civil por conta própria, residente na (...) , (...) , submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de seis crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo art. 165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por acórdão de 1.02.2017, depositado na mesma data, foi o arguido absolvido dos referidos crimes.

3. Inconformados com o assim decidido recorreram o assistente e o MP, extraindo da correspondente motivação, as seguintes conclusões:

3.1 conclusões do Assistente:

1ª- O Tribunal “a quo” considerou, quanto aos nós incorretamente, que o relatório de psiquiatria forense e os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela perita médica Dra. M... não foram conclusivos sobre a incapacidade do ofendido para opor resistência aos atos sexuais mantidos com o arguido, descritos nos pontos 7. e 8. da matéria de facto dada como provada no douto acórdão;

2ª- Em consequência disso, deu como não provados os factos vertidos sob as alíneas d), e), f), g), h), i), j), k) e l) da matéria de facto dada não provada no douto acórdão ora sob recurso;

3ª- Porém, atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, salvo o devido respeito por opinião diversa, devem ser dados como provados, tendo, por isso, sido incorretamente julgados;

4ª- As provas concretas que impõem uma decisão diversa da recorrida são as seguintes:

a)         O relatório de exame médico-legal de psiquiatria forense de fls. 110 a 114 e o relatório de avaliação psicológica de fls. 115 e 116;

b)         O depoimento prestado na audiência de julgamento de 25/01/2017 pela perita médica Dra. M... , gravado através do sistema integrado de gravação digital, com início às 16:00 horas e 40 minutos, entre os 12minutos e os 22m15s, transcrito na motivação deste recurso e para qual se remete.

5ª- No relatório de exame médico-legal de psiquiatria forense a fls. 113 e 114, a perita médica concluiu que “o ofendido poderá, naquelas circunstâncias em que ocorreram os factos, ser incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário. Mais ainda, se sob o efeito do álcool, maior o comprometimento da capacidade de se opor. O ofendido padece de Deficiência Mental Ligeira a Moderada, como confirma o Exame WAIS-III que situa o seu funcionamento intelectual muito inferior em relação ao esperado para a sua classe etária, apresentando um resultado global de 55…Poderá ser de nascença, determinando uma incapacidade que se estende por todo o seu intelecto nas dimensões de cognição compreensão e raciocínio com prejuízos do entendimento e capacidade volitiva (livre e esclarecida);

6ª- Nos esclarecimentos prestados na audiência de julgamento pela perita médica, nas passagens do seu depoimento transcritas na motivação deste recurso, foi dito que o ofendido é um individuo de uma pobreza e limitação muito grande, que em termos raciocínio, na parte afetiva, na parte cognitiva e de memória, em determinada altura do seu desenvolvimento parou, devendo, por isso, ser interditado. É um individuo que não sabe escrever o nome dele, apenas aprendeu a desenhar o primeiro e último nome, que não consegue tomar opções e medir os riscos da sexualidade. É um individuo em termos de défice cognitivo equiparável a um miúdo de cinco, seis, sete anos no máximo. É vulnerável a abordagens de cariz sexual e é incapaz de se defender, sendo, por isso, incapaz de opor resistência às propostas sexuais do arguido, bem como de refletir sobre os riscos desses comportamentos sexuais e de maneira como a sociedade os interpreta, sente vergonha como um miúdo sentiria naquela situação; 

7ª- Pelo supra exposto, em face dos relatórios dos exames periciais juntos autos e dos esclarecimentos prestados na audiência de discussão e julgamento pela perita médica Dra. M... não deixa, no nosso modesto entendimento, qualquer dúvida sobre o facto do ofendido F... ser incapaz, por força da anomalia psíquica de que sofre (e padecia à data dos factos), de opor resistência à prática dos atos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7. e 8. do acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”;

8ª- O Tribunal “a quo” deu como provada a matéria de facto dos pontos 7., 8., 9., 10., 11. e 12. da matéria de facto provada, que aqui de dão por inteiramente reproduzidos por questão de economia processual;

9ª- Os atos praticados pelo arguido de índole sexual causaram ao ofendido danos de natureza física, dores, e psíquica, que levaram a alterações comportamentais do dia-a-dia do ofendido, causando-lhe vergonha, desgosto e transtornos causados pela conduta ilícita do arguido;

10ª- Nos termos do disposto no art.º 483º, n.º 1 do Código Civil, aplicável por força do art.º 129º do Código Penal, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”;

11ª- No caso sub judice, atendendo à gravidade dos factos praticados pelo arguido, às dores físicas e morais sofridas pelo ofendido, deve aquele ser condenado a pagar uma indemnização civil, a título de danos não patrimoniais, que este Venerando Tribunal considere justa, equilibrada e condigna para compensar o mal causado ao ofendido.

12ª- O Tribunal “a quo” violou e/ou fez uma incorreta aplicação, entre outras, das normas constantes dos artigos 163º, n.ºs 1 e 2, 410º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, art.º 129º do Código Penal, art.º 483º, n.º 1 e 496º, n.º 1 do Código Civil.

            Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, deve ser revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” na parte objeto deste recurso, substituindo-o por outro que condene o arguido pela prática de dois crimes de abuso de pessoal incapaz, p. e p. no art.º 165º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e que julgue procedente por provado o pedido de indemnização civil apresentado, condenando o demandado a pagar ao demandante uma quantia indemnizatória que V.Ex.ª(s) considerem justa e adequada para compensar os danos não patrimoniais causados ao ofendido.

            Assim decidindo, V.Ex.ª(s) farão a já costumada, sã e objetiva JUSTIÇA!”

           

3.2 conclusões do MP:

1ª - O presente recurso abrange matéria de facto e de direito.

2ª- O Tribunal a quo considerou que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não resultou provado que a anomalia psíquica de que padecia a vítima F... o impedia de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática dos actos sexuais descritos nos pontos 7 e 8 da matéria de facto dada como provada na decisão ora sob recurso.

3ª – Por via disso, deu como não provados os factos descritos nos pontos d), e), f), g), h), i), j), k) e l) da matéria de facto dada como não provada no acórdão recorrido.

4ª- Todavia, atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, tais factos deveriam ter sido dados como provados, tendo, por conseguinte, sido incorrectamente julgados.

5ª- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida são:

 a)        Os relatórios dos exames periciais juntos aos autos a fls. 110 a 114, 115 e 116.

b)         O depoimento da perita médica subscritora daquele relatório, Drª M... , prestado em audiência de discussão e julgamento no dia 25 de Janeiro de 2017, gravado no sistema citius, com início às 16h10m34s, entre os 12m00s e os 22m15s, transcrito na motivação do presente recurso e para onde se remete.

6ª- Na verdade, o relatório de exame médico-legal em psiquiatria forense, concluía, a fls. 113 e 114 dos autos, que “o examinado poderá naquelas circunstâncias em que ocorreram os factos “ser incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário. Mais ainda se sob o efeito do álcool, maior o comprometimento da capacidade de se opor” e ”do já exposto tenderá a agir de forma pueril diria ingénua” e “Poderá ser de nascença, determinando uma incapacidade que se estende por todo o seu intelecto nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio com prejuízos do entendimento e capacidade volitiva (livre e esclarecida).”

Ou seja, este relatório pericial afirmava já que, por força da anomalia psíquica de que padecia, aquele F... poderia ser incapaz de opor resistência aos actos sexuais em questão, pois tal anomalia psíquica determinava-lhe uma incapacidade que se estendia por todo o seu intelecto nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio, o que lhe prejudicava o entendimento e a capacidade volitiva (entendida esta como livre e esclarecida).

            7ª –Dos esclarecimentos trazidos a julgamento pela Perita Médica, na parte do seu depoimento supra mencionada e transcrita na motivação deste recurso, resultou expresso que a vítima era de uma pobreza e de uma limitação muito grande e que, por via disso, deveria estar interditado, atenta a limitação da parte cognitiva, de memória e do mais que contender com o cérebro, pois que este simplesmente parou em determinada altura do seu desenvolvimento; que aquele F... não sabe escrever o nome dele, apenas tendo apreendido a desenhar o primeiro e o último nome; que não tem as capacidades todas para tomar opções e avaliar os riscos da sexualidade; que o défice cognitivo do F... é equiparável ao de uma criança de cinco, sete anos, no máximo; que àquela perita médica lhe parece claro que a vítima, por força da deficiência que padece é totalmente incapaz de recusar a proposta sexual do arguido, assim como é incapaz de reflectir sobre os riscos destes comportamentos sexuais e da forma como a sociedade os interpreta; que a vítima é vulnerável à abordagem sexual do arguido e sente a vergonha que sentiria uma criança naquela situação; e que se nos puséssemos na pele ou nos sapatos do F... , ele não era capaz de se defender da abordagem sexual do arguido.

8ª – Estes elementos de prova não deixam, a nosso ver, e sempre salvo o elevado e merecido respeito por opinião diversa, qualquer réstia de dúvida sobre o facto daquele F... ser, por força da anomalia psíquica de que padece, incapaz de opor resistência à prática dos actos sexuais propostos pelo arguido e descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido.

9ª - Dúvidas não restam também que estamos perante prova pericial, mais concretamente perícia médico-legal de psiquiatria forense, realizada nos termos dos nºs 1 e 6 do art. 159º, do Código de Processo Penal – cfr., ainda, arts. 2º, nº1, 3º, nº1 e 24º, nº1, todos do DL nº 45/04, de 19/08; art. 3º, nº2, al. b) do DL nº 166/12, de 31/07; e art. 11º, nº1, al. a) da Portaria nº 19/13, de 21/01, seguida de esclarecimentos complementares da perita subscritora do relatório pericial de fls. 110 a 114, tal como previsto pelo art. 158º, nº1, al. a) do Código de Processo Penal.

10ª - Ora, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 163º, nº1 do Código de Processo Penal.

Assim é que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência – nº 2 do art. 163º do Código de Processo Penal.

11ª - Mas a fundamentação desta divergência no que concerne ao juízo técnico científico ínsito na perícia terá de ter por base uma crítica igualmente científica – cfr., por todos, Professor Figueiredo Dias, em Direito Processual Penal, 1ª Ed. 1974, pág. 209.

12ª - No caso concreto, o Tribunal a quo divergiu do juízo técnico-científico contido na supra referida prova pericial, tal como resulta evidente da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido transcrita na motivação deste recurso e constante de fls. 307 a 310.

13ª – Contudo, não fundamentou a sua divergência com base em quaisquer razões de ordem técnico-científica, mas somente com base na sua própria valoração da conduta daquele F... em audiência de discussão e julgamento e nas suas convicções pessoais, pelo que violou o consignado no art 163º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal. 

14ª - A nosso ver, tal violação constitui um erro notório na apreciação da prova, pelo que o acórdão recorrido padece do vício previsto no art. 410º, nº2, al. c) do Código de Processo Penal, pelo que deverá o mesmo ser declarado oficiosamente – v. neste sentido Acs. do STJ de 18/11/98, processo nº 905/98, e de 10/12/97, processo nº 1108/97, citados na motivação do presente recurso.

15ª – Se assim se não entender, perfilhando-se antes a tese sufragada pelo Acórdão do STJ de 14/05/98, processo nº 7/98, referido na motivação deste recurso, então deverá oficiosamente declarar-se como verificado o vício previsto no art. 410, nº2, al. a) do Código de processo Penal.

16ª - Caso assim se não entenda, ainda, e se adira à tese de que o supra apontado vício integra antes a nulidade prevista no art. art. 379º, nº1, al. a), por violação do consignado no nº 2 do art. 374º, ambos do Código de Processo Penal, desde já se argúi a mesma nos termos do consignado no art. 379º, nº2 do Código de Processo Penal.

17ª - Por ultimo, e prevenindo a hipótese de se adoptar a tese de que a violação do disposto no art. 163º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, nos termos supra expostos, integra antes uma nulidade da sentença derivada de uma omissão de pronúncia sobre uma questão que deveria apreciar, isto é, o valor da perícia, e que estamos perante a nulidade prevista no artigo 379 º n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, desde já igualmente se argúi a mesma nos termos do consignado no art. 379º, nº2 do Código de Processo Penal.

18ª - Consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido – art. 426º, nº1 do Código de Processo Penal.

19ª – Sem prescindir, dir-se-á, ainda, que o Tribunal a quo, embora divergindo infundadamente da prova pericial produzida em audiência de discussão e julgamento e esclarecimentos aí prestados pela perita médica Drª M... , considerou que restou a dúvida sobre se a vítima F... , tinha capacidade para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido e descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, pelo que, valorando tal non liquet a favor do arguido, ao abrigo do princípio do in dubio pro reo deu como não provados os factos descritos na acusação e descritos no acórdão recorrido sob as als. d) a h) e, por “arrastamento”, nas als. i) a k) da “matéria de facto não provada”.

20ª – Atento o teor da prova pericial e esclarecimentos prestados sobre a mesma pela perita médica Drª M... - não sobrou, a nosso ver, e salvo o elevado respeito por opinião contrária, qualquer réstia de dúvida sobre a incapacidade daquele F... para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido e descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, pelo que não tinha aplicação ao caso concreto e nesta parte, o princípio do in dubio pro reo.

21ª – Mas, ainda que assim se não entendesse, e considerasse que sobrou tal dúvida, nem por isso se encontrava legitimada a aplicação do princípio do in dubio pro reo, pois que tal dúvida não era insanável ou inultrapassável.

22ª – Na verdade, o Tribunal a quo, tal como resulta da fundamentação da matéria de facto do acórdão ora sob recurso – fundamentação essa constante de fls. 307 a 310, supra transcrita na motivação do presente recurso e para onde se remete - ficou na dúvida sobre tal matéria, porque não considerou assertiva a conclusão expressa no relatório pericial de fls. 110 a 114 e não aceitou os esclarecimentos da perita médica prestados em julgamento sobre a mesma, entendendo que os mesmos não eram assertivos e suficientemente fundamentados.

Mas se assim é, então deveria, para ultrapassar a sobredita dúvida e a falta de confiança na perita médica e nos esclarecimentos que a mesma prestou em audiência de discussão e julgamento, ter ordenado a realização de nova perícia ou a renovação da anterior a cargo de outros peritos, tal como previsto no art. 158º, nº1, al. b) do Código de Processo Penal.

Ou seja, a dúvida não era inultrapassável, antes pelo contrário, pois que a própria lei prevê os meios de que o Tribunal pode e deve lançar mão para superar a mesma.

23ª – A aplicação deste princípio quando não se encontram reunidos os pressupostos legais para o efeito, mais concretamente, quando a dúvida subjacente a este princípio não é insanável, nem insuperável, viola o disposto no art. 127º do Código de Processo Penal e reconduz-se ao vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º, nº1, al. c) do Código de Processo Penal – v. neste sentido Ac. da Relação de Coimbra de 9/02/09, em www.dgsi.pt.

24ª – Por tudo o exposto, deverá ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido – art. 426º, nº1 do Código de Processo Penal.

Termos em que deve ser revogado o douto acórdão recorrido na parte ora em recurso e ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido e descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, nos termos do art. 426º, nº1 do Código de Processo Penal.”

*

3.3 Respondeu o arguido, concluindo:

1.         Não enferma a decisão recorrida de qualquer erro de julgamento da matéria de facto, na medida em que, por um lado, o conteúdo do depoimento a que aludem os Recorrentes não levaria à conclusão por estes pretendida, como à demais prova produzida – em que se inclui os relatórios periciais juntos aos autos – analisada de forma global e unitária, tem como resultado terem ficado os factos postos em crise demonstrados, para além de qualquer dúvida, não deixando que se anteveja como plausível hipótese contrária.

2.         O vício da decisão da matéria de facto previsto no artigo 410º nº 2 al. c) do CPP ocorre nas situações em que a prova é avaliada de maneira contrária a todas as evidências, sem a mínima adequação às regras da lógica e da experiência comum, de forma clamorosamente enganada ou omissa, podendo-se verificar isso pela mera leitura da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência.

3.         Ora, considerando a prova produzida, não podemos chegar à conclusão pretendida pelos Recorrentes – na medida em que em momento algum a Perita Médica refere incapacidade absoluta de compreensão por parte do ofendido F... .

4.         Uma coisa é uma pessoa ser mais vulnerável, outra coisa completamente diferente é ser completamente incapaz de oferecer resistência, por não compreender o que está a fazer.

5.         A Médica Perita em momento algum do seu depoimento afirmou isso, nem o poderia fazer, pois aí já iria contradizer o que está refletido nos Relatórios juntos aos autos.

6.         Acrescendo que, da demais prova produzida – em que se inclui o declarado pelo próprio ofendido – os factos postos em crise resultaram como não provados para além de qualquer dúvida, não deixando que se anteveja como plausível hipótese contrária.

7.         Analisada a prova produzida, mormente a indicada pelos Recorrentes, de forma global e unitária, a única conclusão que se pode extrair é a de que o Tribunal recorrido apreciou corretamente a mesma e daí extraiu as consequentes conclusões de facto.

8.         Efetivamente, compete ao Juiz a quo, no seu livre arbítrio, fazer a valoração da prova produzida em sede de julgamento.

9.         A convicção do Tribunal para dar como provados ou não provados os factos supra descritos resultou da apreciação crítica e seletiva de toda a prova produzida em audiência conexionada com as regras de experiência comum, não havendo qualquer violação do art.º 410 do Código de Processo Penal.

10.       Em processo penal a regra é a de livre apreciação da prova como decorre do estatuído no artigo 127º do CPP, onde se dispõe que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

11.       Tal princípio não é absoluto e entre as exceções a tal regra, incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.

12.       Em causa está o valor probatório do Relatório Pericial de Psiquiatria, elaborado em 15 de Junho de 2015, tendo por base elementos recolhidos no exame clínico psiquiátrico e no historial clínico do Centro Hospitalar (...) : «Do ponto de vista psiquiátrico-forense o examinado poderá, naquelas circunstâncias em que ocorreram os factos, ser incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário. Mais ainda, se sob o efeito do álcool, maior o comprometimento da capacidade de se opor”.

13.       Ora, para que o tribunal a quo tivesse desrespeitado o disposto no art.º 163.º do Código de Processo Penal era necessário que o relatório do exame psiquiátrico feito ao recorrente contivesse um juízo técnico-científico sobre uma situação de incapacidade do ofendido no momento da suposta prática do crime.

14.       E o certo é que não contém. O que se lê naquele relatório não é verdadeiramente um juízo com tais características.

15.       A Médica Perita que o redigiu (que foi a mesma que prestou depoimento em audiência de julgamento) não emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo, livre de dúvidas, sobre a incapacidade do ofendido, antes se limitou a uma afirmação de admissibilidade da conclusão de que o examinando poderá ser considerado incapaz, o que, como os juízos de probabilidade ou opinativos, se não confunde com o juízo técnico-científico que se presume subtraído à livre apreciação do julgador.

16.       O que o Tribunal a quo fez, sopesando os dados constantes daquele relatório com o teor da prova produzida em julgamento, designadamente as próprias declarações do ofendido, foi discordar do mero juízo opinativo da Sra. Perita.

17.       O juízo técnico e científico que foi emitido pela Médica Perita baseia-se, unicamente, num dado meio de prova processual penal - as declarações do ofendido - e não no conhecimento científico assente em dados de facto com igual cientificidade, objetividade, ou, caso se prefira, em dados de facto que possam basear o juízo científico sem a parcialidade das declarações de alguém interessado no resultado da perícia.

18.       Ao invés, o juízo técnico e científico assenta num meio de prova consabidamente parcial e que deve ser analisado em tribunal e sujeito ao contraditório. Mesmo que tal fundamento possa ser, e será, elemento a ter em conta numa análise técnica, a circunstância ser o único elemento com relevo nessa análise e conclusão retira-lhe credibilidade técnica ou científica.

19.       Assim, visto que as conclusões da perícia assentam num dado factual - declarações do ofendido - de cariz marcadamente judicial, as conclusões da perícia, revestidas embora de cientificidade "subjectiva" (a autora é um perito na área científica "psiquiatria"), não apresentam cientificidade "objectiva" e mais não são do que um pré-juízo judicial, realizado por entidade sem competência para tal e conduzindo ao incumprimento das regras de processo respectivas, designadamente, a imediação, a oralidade e, máxime, o contraditório.

20.       Assim, o elemento de facto em que a Sra. Perita assenta a sua conclusão revela-se clamorosamente insuficiente para fundamentar a conclusão retirada.

21.       No Acórdão recorrido bem se fundamenta a divergência quanto ao juízo "técnico científico" emitido, com apelo aos restantes elementos de prova produzidos, o que lhe permitiu afirmar que o ofendido não é incapaz, no que concerne ao verdadeiro cerne da questão, ou seja, de opor resistência às propostas sexuais do arguido.

22.       No caso em reapreciação, o que realmente ocorre é que a Sra. Perita não faz uma afirmação, não emite uma pronúncia sustentada, antes limita-se a produzir um juízo opinativo, adiantando apenas uma mera probabilidade, avançando um mero palpite.

23.       Ora, não se estando perante a formulação de um juízo técnico científico tout court, mas face à emissão de uma opinião, à expressão de uma probabilidade, a mesma não será absolutamente vinculativa.

24.       Dizer-se que à data da prática do crime podia ser que o ofendido se encontrasse incapaz de resistir, e depois afirmar-se que estava nesse estado, sem identificar o mesmo, então deverá ser considerado incapaz, é emitir um juízo pretensamente certeiro, baseado em dúvida, assumindo-se um prognóstico póstumo dubitativo, muito longe de uma conclusão científica.

25.       A Sra. Perita não assumiu uma tomada de posição firme e clara, deixando ficar à responsabilidade do tribunal a decisão sobre a incapacidade ou não do ofendido.

26.       Pelo exposto, entende-se não ter o acórdão recorrido incurso em violação do artigo 163º do CPP, preceito que teve em consideração na sua justa e adequada concretização, pelo que não existe qualquer fundamento para reenvio a fim de se proceder a novo julgamento.

27.       A propósito da pretensa violação do princípio in dúbio pro reo, suscitada pelo recorrente Ministério Público, afigura-se-nos que da fundamentação da matéria de facto não resulta minimamente que o julgador se tenha deparado com uma qualquer dúvida (insanável ou não) sobre a verificação dos factos constantes da acusação no que concerne à concreta questão da incapacidade do ofendido para se opor aos atos sexuais propostos pelo arguido. 

28.       Concluiu o Meritíssimo Juiz a quo que não ficou demonstrada a incapacidade total do ofendido para resistir aos atos sexuais propostos pelo arguido ou mesmo que disso se tivesse valido este para conseguir anuência daquele; bem como não ficou provado que o ofendido, em resultado da sua anomalia psíquica, estivesse totalmente provado de avaliar o sentido e alcance dos atos sexuais que manteve com o arguido;

29.       E não havendo dúvida, nada há para resolver, pro ou contra quem quer que seja.

30.       Pelo exposto, considera-se que foi muito bem observada a prova produzida, com todas as complexidades e dificuldades inerentes a um processo desta natureza.

Nestes termos, deve o presente recurso improceder na totalidade, mantendo-se o Acórdão recorrido, na certeza, porém, de que Vossas Excelências farão, como sempre, JUSTIÇA!”

*

4 - O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

*

5 - Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

Cremos que têm razão de ser os recursos interpostos redigidos, aliás de forma douta e com bons argumentos jurídicos, o do Exmo. Magistrado do Ministério Público a fls. 325/ e 360 e o do Exmo. Advogado do ofendido F... a fls. 362/373.

A questão central do presente recurso é a questão de saber se o Tribunal ao discordar da conclusão extraída do relatório de exame médico legal em psiquiatria forense (cf. fls. 113 e 114) no sentido de que nas circunstâncias em ocorreram os factos “ o examinado era incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário. Mais ainda se sob o efeito do álcool, maior o comprometimento da capacidade de se opor” e “ do já exposto tenderá a agir de forma pueril diria ingénua” e “Poderá ser de nascença, determinando uma incapacidade que se estende a todo o seu intelecto nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio com prejuízo do entendimento e capacidade volitiva (livre e esclarecida).”

Não obstante aquelas conclusões tiradas em sede pericial e mesmo considerando o depoimento conclusivo que no mesmo sentido foi prestado pela Exma. Perita Médica, que concluiu a Vítima “ por força da deficiência de que padece é totalmente incapaz de recusar a proposta sexual do arguido assim como é incapaz de reflectir sobre os riscos destes comportamentos sexuais e da forma como a sociedade os interpreta”, não obsta O Tribunal considerou julgar como não provado que a anomalia psíquica de que padecia a vítima F... o impedia de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática dos actos sexuais descritos nos pontos 7 e 8 da matéria de facto dada como provada.

O artigo 163.°, n.º 1 do Código de Processo Penal estabelece que “ O juízo técnico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”.

As conclusões tiradas pelo Tribunal e os argumentos em que se apoia viola aquele conteúdo normativo? Tal é a questão que se suscita e à qual se pretende que a Relação responda.

Ponderada a questão, para nós é de apoiar sem reserva os argumentos jurídicos em que os Recorrentes se apoiam, do mesmo passo que julgamos como não decisivos os fundamentos da resposta ao recurso por parte da Exma. Advogada do Arguido, malgrado a forma douta como tal peça se apresenta escrita (cf. fls. 381/410).

Sendo pacífico na nossa jurisprudência ( por todos o acórdão do S.T.J., de 09.05.1995) que a presunção a que se refere o n.º 1 do citado preceito legal diz respeito ao juízo técnico- científico e não aos factos em que o mesmo se apoia, temos que aquilatar tão-só sobre a questão de saber se o diferente juízo formado pelo Tribunal consiste ou não num extravasamento daquele juízo técnico, não colidindo com este nos seus considerandos, ou, se ao contrário, invadindo outro campo, o múnus puramente técnico próprio do perito, o ultrapassa e deste diverge, imiscuindo-se no seu próprio campo analítico. Ou seja, saber se, sem mexer na factualidade relevante, é tirada conclusão diversa da do Perito, dentro do seu exclusivo campo, da sua área técnico-científica.

A resposta já foi dada por nós. Constitui nosso entendimento que o Tribunal, não obstante a forma douta e fundamentada como discorre sobre a temática, concluiu de forma diferente: “ Temos como seguro que o discurso esclarecido do assistente pelo menos não revelou incompreensão do significado e importância do acto sexual”.

Apoiado na sua própria sensibilidade e nos seus próprios conhecimentos, apoiado numa obra importante da Psicóloga L..., mas cremos que em violação do disposto na norma do artigo 163.°, n.°l do C. de Processo Penal.

Como o próprio Tribunal deixou expresso na decisão “ Não aceitamos que a médica psiquiátrica, Dra. M... , tivesse trazido a julgamento esclarecimentos bastantes, assertivos, e sobretudo suficientemente fundamentados que lhe permitissem ultrapassar a si e ao tribunal a dúvida que deixou aberta na conclusão reflectida no seu relatório pericial”.

O n.º 2 do artigo 363.° do Código de Processo Penal estabelece que “ Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve fundamentar a divergência”.

E para o Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, 1999, vol. II, pág. 178) 2 a presunção que o artigo 363.°, n.º 1 consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente impõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial.”

No mesmo sentido o acórdão do S. T. J., de 01.10.2008: O artigo 362.°, n.º 1 do C. P. P. estabelece uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.° do mesmo diploma, atribuindo um valor presuntivamente pleno ao juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial, do que decorre que o julgador, face a prova pericial, terá de aceitar o juízo técnico, científico e artístico a ela inerente, a menos que fundamente a sua divergência

Esse fundamento todavia tem que ser estribado noutro parecer técnico, da mesma natureza pois que só assim não ocorrerá invasão da área específica do perito na qual é suposto ele melhor se poder movimentar, em razão dos específicos conhecimentos técnicos. Essa nos parece ser a ratio do preceito em referência que a nosso ver não foi apropriadamente observada.

Assim, pelo exposto e sobretudo em razão dos argumentos alinhados pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público na 1.ª Instância, deverá ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do não obstante douto acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 426.°, n.º 1 do Código de Processo penal. Tal é o nosso parecer.”

*

6. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve reacção.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Consequentemente as conclusões constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- Nulidade do Acórdão por violação do disposto no nº 2 do art. 163º do Código de Processo Penal.

- Erro de julgamento da matéria de facto - factos impugnados os vertidos sob as alíneas d), e), f), g), h), i), j), k) e l) da matéria de facto não provada;

- Violação do princípio in dúbio pro reo.

- Do pedido de indemnização civil.

2. O acórdão recorrido

2.1 Matéria de Facto Provada

Da audiência de discussão e julgamento da causa - a que se procedeu com observância do atinente formalismo legal - resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. O assistente F... nasceu no dia 09/08/1989 e padece de “Deficiência Mental em grau Ligeiro a Moderado”, que poderá ser de nascença, caracterizando-se por défices cognitivo-intelectuais permanentes e irreversíveis, por virtude da qual apresenta atraso mental e diminuição da capacidade de entendimento.

2. Este atraso mental do assistente é do conhecimento de todas as pessoas que com ele convivem e que é imediatamente percetível em função do seu comportamento e do modo como se exprime.

3. Ao tempo dos factos e desde há vários anos, o arguido conhecia o assistente F... , tendo sido vizinhos, sabendo que ele padece de debilidade mental e que, por via dessa sua incapacidade, frequenta a APPACDM de (...) .

4. Por serem das relações entre si, o arguido, o assistente e o pai deste costumavam conviver no “Café M (...) ”, sito em (...) , (...) , onde jogavam bilhar, conversavam e tomavam bebidas.

5. Em datas e horas não concretamente apuradas, mas situadas por volta das 23 horas entre o mês de maio e junho de 2014, em duas ocasiões distintas, o assistente e o arguido abandonaram juntos o “Café M (...) ” e dirigiram-se à residência deste, sita na (...) , (...) .

6. Aí chegados, como o assistente e o arguido concordassem fazer sexo entre si, dirigiram-se para o interior do quarto de dormir do arguido, onde se despiram.

7. Nessas duas ocasiões o arguido disse ao assistente para lhe chupar a “piça”, bem como que o deixasse “ir-lhe ao cú”, acabando um e outro por friccionar o seu pénis no ânus do outro.

8. Na segunda dessas ocasiões o arguido introduziu um objeto de plástico não concretamente apurado, com a forma de um pénis, no ânus do assistente, com o que lhe causou dor física.

9. O arguido agiu em todas as circunstâncias atrás descritas voluntária e conscientemente, com o propósito de satisfazer a sua lascívia e obter satisfação sexual.

--

10. Após os factos e até à queixa do dia 14.07.2014, o assistente tornou-se reservado, isolando-se com frequência e deixando de acompanhar com a mesma assiduidade a equipa do Académico de (...) , uma das suas distrações preferidas, deixando de sair assiduamente de casa nomeadamente para ir ao café e/ou frequentar a atividade escolar na APPACDM de (...) .

11. O assistente não gosta de falar do sucedido com ninguém e fica constrangido quando tem de relatar os factos ocorridos.

12. Em consequência dos factos descritos, no âmbito dos presentes autos o assistente teve de se deslocar acompanhado à Polícia, ao Hospital Psiquiátrico, ao Instituto de Medicina Legal e aos serviços do Ministério Público.

--

13. O arguido é o mais velho de quatro irmãos, tendo crescido num contexto familiar descrito como gratificante e isento de problemáticas específicas.

14. Atualmente, A... , de 49 anos, divorciado, reside com os pais, de 70 e 69 anos, ambos reformados, em casa destes. A habitação consiste numa vivenda unifamiliar, dispondo de boas condições de habitabilidade, sendo as despesas de manutenção asseguradas pelos pais.

15. O arguido encontra-se desempregado, dedicando-se a trabalhos pontuais de pintura na construção civil, auferindo entre €35,00 e €40,00 diários.

16. Não apresenta vencimento mensal regular na medida em que a oferta de trabalho é variável. O arguido está nesta situação há cerca de cinco anos, altura em que ficou desempregado na sequência do encerramento da firma onde trabalhava desde que cumpriu o serviço militar.

17. Anteriormente, e após abandonar as escola aos 15 anos, concluindo o 4.º ano de escolaridade, trabalhou também na construção civil com o pai, à data empreiteiro.

18. Casou aos 27 anos, tendo dois filhos do casamento, de 20 e 12 anos. Há cinco anos separou-se, tendo os filhos ficado à guarda da mãe. O filho mais novo vai com alguma regularidade a casa dos avós paternos, mantendo assim contactos. Com a filha apenas tem contactos se se cruzar com ela na rua.

19. O arguido tem a decorrer uma medida de suspensão provisória do processo, pelo período de 6 meses, sujeita à injunção de cumprimento de 80 horas de serviços de interesse público, pela alegada prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da ex-mulher.

20. O arguido não apresenta problemas de saúde significativos, nem é alvo de qualquer acompanhamento médico regular, embora reconheça abusos pontuais de bebidas alcoólicas.

21. No meio de residência, e no contexto familiar de origem, o arguido é descrito como uma pessoa pacífica, de relacionamento interpessoal adequado, não tendo havido impacto na sua inserção social e familiar na sequência da presente denúncia.

22. O arguido é tido como pessoa de bem, honesto, respeitador e trabalhador.

23. O arguido não tem antecedentes criminais.

                                                                       *

2.2. Matéria de Facto Não Provada

De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa designadamente aqueles em contradição com os provados e que:

a) em qualquer das ocasiões o assistente chupou o pénis do arguido; 

b) o assistente alguma vez tivesse feito sexo oral no arguido e vice-versa;

c) o arguido tivesse praticado quaisquer atos sexuais com o assistente em período diferente e em numero de ocasiões superior ao dado como provado;

d) a doença psíquica do assistente impedia-o de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de actos desta natureza, sabendo o arguido que por isso facilmente o conseguiria convencer a tanto;

e) por esse motivo, o arguido decidiu tirar proveito dessa situação para praticar com o mesmo relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos;

f) o arguido agiu com vontade de dominar a liberdade de determinação sexual do assistente;

g) mercê dos problemas de atraso de desenvolvimento de que padece, o F... não tinha capacidade para avaliar em toda a sua extensão o sentido e o significado dos referidos atos sexuais e das suas consequências e, também por esse motivo, de lhes resistir, circunstância que o arguido conhecia e de que se aproveitou para satisfazer os seus instintos libidinosos;

h) pela sua condição de debilidade mental o assistente é sexualmente muito sugestionável ou manipulável;

i) bem sabia o arguido que o F... , por causa da sua anomalia psíquica, não possuía a capacidade e o discernimento necessários para se auto determinar sexualmente e era incapaz de opor resistência aos atos sexuais que com ele levou a cabo;

j) o arguido sabia que por força dessa deficiência mental o assistente acederia a deslocar-se para o interior da sua residência e a não oferecer resistência a qualquer proposta de trato sexual que lhe formulasse, o que veio a acontecer;

k) o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

l) a conduta do arguido provocou um agravamento do estado psíquico do assistente.

*

2.3. Motivação da Decisão de Facto

Sobre a vivência e condições de vida do arguido o tribunal baseou-se no depoimento deste conjugado com a informação social junta aos autos e o testemunho de B... , 71 anos, e E... , 59 anos, seu pai e tio respetivamente, que além do mais descreveram a situação pessoal do mesmo.

Já quanto à vivência e condições de vida do assistente F... o tribunal formou convicção a partir do testemunho do próprio e ainda do seu pai, G... , 51 anos, e dos vizinhos ao tempo dos factos, que consigo se relacionavam, H... , 50 anos, e seu filho I... , 24 anos.

Na verdade, todos eles depuseram sobre a situação pessoal do assistente, reconhecendo o atraso mental do mesmo desde data anterior aos factos, circunstância conhecida daqueles que consigo convivem e facilmente perceptivel, como todos descreveram, tanto mais que frequenta a APPACDM de (...) no âmbito de formação e apoio a pessoas com deficiência mental, circunstância que o próprio arguido confessou conhecer, ciente - como disse - que apesar da sua idade o assistente não sabe ler nem escrever.

De resto o próprio relatório de clinica médico-legal de fls.27-9, o relatório informativo da APPACDM de (...) de fls.49-50 e o relatório de psiquiatria forense de fls.110 ss descrevem os sinais de deficit cognitivo evidenciados desde logo no discurso, na postura e comportamento do assistente, não podendo passar despercebidos esses sinais evidentes de deficiência mental a quem, como o arguido, ao tempo seu vizinho, com ele frequentemente convivia, circunstância que o arguido referiu fazer com ele e/ou o pai nomeadamente no café M (...) , sito em (...) - (...) , onde jogavam e bebiam nomeadamente à noite, como tudo explicou.

Já quanto aos atos sexuais havidos entre o arguido e o assistente, que o arguido negou, o tribunal baseou-se no depoimento do F... , o qual de forma que se afigurou sincera relatou de modo circunstanciado o seu envolvimento sexual com o arguido, tudo nos termos dados como provados, o que aconteceu, disse aquando das declarações de fls.43-5 validamente lidas em julgamento, cerca de um mês e meio a dois meses antes da queixa (esta do dia 14.07.2014).

Ressalva-se apenas o numero de ocasiões em que referiu terem ocorrido aqueles factos, disse cinco ou seis, à semelhança do que disseram em fase de inquérito, cujas declarações de fls.43-5 e 93-4 foram validamente lidas em julgamento, mas sem nunca ter conseguido circunstanciar ou explicar de outro modo o numero de vezes que aventou, chegando a conformar-se em julgamento, sem qualquer discordância nem juízo critico, com a possibilidade de tanto ter ocorrido apenas duas vezes.

Afirmando o assistente que numa das ocasiões o arguido lhe introduziu no ânus um objeto de plástico, com a forma de um pénis, o que não terá acontecido no primeiro envolvimento sexual de ambos, tal circunstancialismo permite formar convicção segura que os seus atos sexuais ocorreram pelo menos em duas ocasiões distintas.

Aceitá-lo em maior número de ocasiões, com base simplesmente na invocação genérica do assistente, sem qualquer individualização circunstanciada, seria violar o principio do in dubio pro reo, posto que sempre permaneceria a dúvida séria, razoável e fundada a esse respeito.

Contudo, numa valoração global do seu depoimento, tal condicionante, à semelhança do período exato em que tanto aconteceu, atenta a imprecisão do assistente, não é bastante para infirmar a sua credibilidade sobre o relato dos comprovados comportamentos sexuais do arguido.

Efetivamente, a narrativa circunstanciada do assistente no contexto da sua convivência com o arguido, quando saiam à noite do café M (...) e se dirigiam a casa deste, permitiu formar um juízo de verosimilhança forte sobre os atos sexuais descritos no quarto do arguido.

Afirmou todavia em julgamento que nunca houve sexo oral entre si, para logo de seguida o admitir, isto apesar do arguido lhe ter pedido para lhe “chupar a piça”, ficando a dúvida, aqui fundada, sobre tal ocorrência já que em fase de inquérito, cujas declarações de fls.43-5 e 93-4 foram validamente lidas em julgamento, e mesmo no exame médico (fls.76) o assistente afirmou que chegou a fazê-lo.

No mais afirmou que o arguido lhe pediu, como descreveu, para manter consigo sexo anal, acabando um e outro apenas por friccionar o seu pénis no ânus do outro, sem o penetrar porque, disse, nenhum deles tinha o pénis duro, acusando assim a falta de ereção de ambos. Contudo, acrescentou, numa ocasião, que não a primeira, o arguido introduziu-lhe um “pénis de plástico” no ânus, com o que lhe causou dor física.

Não espanta, por isso, que o assistente tivesse apresentado aquando do seu exame médico no dia 17.07.2014, uma fissura anal e uma escoriação na periferia do ânus compatível com a prática de sodomia, conforme relatório de clinica médico-legal de fls.27-9.  

E se a assertividade do depoimento do assistente não deixou qualquer dúvida séria sobre a existência, modo e circunstâncias dos atos sexuais dados como provados, pelo menos por duas vezes, tal circunstância resultou ainda corroborada pelo depoimento do pai do assistente, G... , 51 anos, justificando de forma verosímil o comportamento muito reservado do filho nos meses anteriores à apresentação da queixa no dia 14.07.2014.

Referiu a testemunha G... que nesse período o filho passou a isolar-se, sem razão conhecida ao tempo, deixando de acompanhar com a mesma assiduidade a equipa do Académico de (...) , uma das suas distrações preferidas, deixando de sair de casa nomeadamente para ir ao café e/ou frequentar a atividade escolar na APPACDM de (...) , tudo justificado em julgamento pelo próprio assistente com o sentimento de vergonha que aqueles atos sexuais lhe criaram.

Tudo isto aconteceu, esclareceu o pai do assistente até à data da queixa, altura em que o seu filho contou à irmã J..., atualmente a viver na Suiça, o que se estava a passar e, assim, os atos sexuais sucedidos com o arguido, também conhecido por “ AA... ”, e confessando-lhe o sentimento de vergonha dai resultante.

De resto, o pai do assistente acrescentou que o assistente não gosta de falar do sucedido e fica constrangido quando tem de relatar os factos ocorridos.

Ora, também este comportamento do assistente, associado ao sentimento de vergonha, no período que antecedeu a queixa, sem outra razão que o justificasse, torna verosímil a ocorrência dos eventos por si relatados.

Ao invés, a negação do arguido sobre a prática desses atos não merece credibilidade, sendo desmentidos desde logo pela prova testemunhal por si arrolada nos pontos essenciais que quis trazer à sua defesa.

Assim, o arguido afirmou que ao tempo dos factos e desde há já alguns anos vivia nas águas furtadas da vivenda dos seus pais, onde pernoitava, e não no r/c como afirmado pelo assistente.

Ora, o pai do arguido, a testemunha B... , 71 anos, afirmou que até quinze dias depois da queixa o seu filho viveu no r/c de sua casa, onde pernoitava, vindo a mudá-lo só depois disto para as águas furtadas para evitar mais problemas, pois vivendo os progenitores no 1º andar dificilmente deixariam – disse – de se aperceber de movimentações e barulhos estranhos no piso superior.

Também o tio do arguido, E... , que afirmou algumas vezes transportar o sobrinho a casa dos pais, já embriagado e à noite, quando saía do café, explicou que ao tempo da queixa o arguido vivia no r/c e não nas águas furtadas,

Depois, contrariamente ao afirmado pelo arguido, o qual afirmou não frequentar o café M (...) desde há mais de um ano à data dos factos, o próprio pai e tio do arguido, B... e E... , afirmaram que o arguido frequentou esse café até altura da queixa contra si apresentada.

Este circunstância foi corroborada pelo pai do assistente que confessou ter desferido duas bofetadas no arguido após terem saído juntos do referido estabelecimento e o ter confrontado com o relatado envolvimento sexual com filho, dia em que apresentou a queixa, conforme auto de noticia junto aos autos.

De resto, a proprietária do café M (...) , a testemunha D... , 68 anos, referiu que ao tempo do desentendimento entre o arguido e o pai do assistente em frente do seu estabelecimento, conforme auto de noticia, o arguido frequentava o seu café, embora o fizesse menos vezes.

Ademais, se até à data da queixa sempre houve bom relacionamento com o assistente e o pai deste, como o arguido confessou, mal se compreenderia o motivo daquela sem que tais atos sexuais tivessem ocorrido.

Outra questão que se coloca em matéria de facto é saber até que ponto a deficiência mental do assistente condiciona a sua capacidade para compreender o significado e importância do acto sexual, bem como a capacidade para opor resistência ao acto sexual.

Embora o portador de deficiência mental possua, por força dessa mesma deficiência, dificuldades na percepção da realidade objectiva, com pensamento e afectos imaturos, não é claro o grau em que essas limitações e essa imaturidade comprometem a sua capacidade para estabelecer um relacionamento com outra pessoa, numa vivência partilhada da sexualidade, de forma adaptada e funcional.

A deficiência mental não elimina a afectividade nem o desejo sexual do portador, nem lhe retira o direito de se envolver num relacionamento a dois ou mesmo de constituir família. Temos como certo o direito do indivíduo portador de deficiência mental a uma vivencia plena da sua sexualidade.

Como escreve a psicóloga L... , in Abuso Sexual de pessoa incapaz de resistência: A deficiência mental e a (in)capacidade de opor resistência, “frequentemente estes indivíduos são comparados a crianças, pela sua imaturidade afectiva e cognitiva; contudo, em muitos dos casos, a sexualidade destes indivíduos perdeu já o carácter egocêntrico, narcísico, auto-erótico da infância, para adquirir, em maior ou menor grau, os contornos da sexualidade adulta. Consequentemente, a partilha da intimidade e da sexualidade é essencial para a realização plena do indivíduo, constituindo uma das mais básicas e essenciais necessidades humanas. Sendo que a deficiência mental não priva o seu portador da sua libido, do seu instinto e necessidades sexuais, então este deve poder satisfaze-lo como e com quem desejar (desde que o parceiro esteja de acordo, claro está). Por outro lado, é conhecida no meio da saúde mental a vulnerabilidade do deficiente mental, que pela sua ingenuidade e carácter influenciável, tem um risco acrescido de ser vítima de abuso em relação aos indivíduos intelectualmente medianos”.

Nesta dicotomia entre a livre vivência da sexualidade e o aproveitamento da deficiência mental surge o problema que aqui nos ocupa, qual seja o de saber se o F... era (in)capaz de compreender o significado e importância do acto sexual, bem como se era (in)capaz de recusá-lo.

Isto porque o relatório de psiquiatria forense não foi conclusivo, afirmando a fls.113 que o F... poderia, naquelas circunstâncias em que ocorreram os factos, ser incapaz de opor resistência atendendo ao seu funcionamento prévio já deficitário sobretudo se sob o efeito do álcool.

Cumpre desde já referir que o assistente negou encontrar-se embriagado no momento em que os factos ocorreram. Admitiu que nalguma dessas ocasiões, sem dizer qual, pudesse ter “bebido um copo”, mas nada mais sabemos de modo a aferir se o seu comportamento foi influenciado e em que medida pelo álcool.

Daí que perante estas incertezas seja de excluir, à luz do princípio do in dubio pro reo, que o assistente, ainda que o tivesse ingerido, atuasse sob o efeito do álcool no momento em que os factos ocorreram.

Mas se aquele relatório não foi assertivo quanto à conclusão ali vertida sobre a (in)capacidade do assistente opor resistência aos atos sexuais do arguido, tão pouco os esclarecimentos trazidos a julgamento pela médica psiquiatra, Dra M... , permitiram ultrapassar a dúvida séria, fundada e razoável que ficou nesse particular.

Na verdade, em sede de esclarecimentos, a médica psiquiatra, Dra M... , reconheceu a dificuldade neste tipo de grau de deficiência mental (ligeira a moderada) em responder à questão colocada da (in)capacidade quando, como aqui ocorre, o funcionamento global cognitivo ainda permite desenvolver ao portador da deficiência algumas competências e autonomia mínima.

Independentemente da capacidade intelectual do assistente situada num resultado global de 55 no Exame WAIS-III, que a médica psiquiatra, Dra M... , equiparou a uma criança de 5 a 7 anos [1], mas sem grande explanação nem base cientifica, certo é que o F... no seu discurso brejeiro e direto revelou conhecer por completo o significado dos atos sexuais que praticou, com claro conhecimento das partes do corpo e manobras sexuais utilizadas.

Refira-se a título de exemplo que o assistente sabe o significado de expressões como vibrador, preservativo, ejacular, erecção, conceitos que revelou conhecer em julgamento e nas declarações prestadas a fls.45 lidas em audiência.

Despojado de qualquer preconceito quanto ao modo e com quem cada um aceita realizar a sua sexualidade, independentemente do género e da capacidade intelectual (deficiência mental) do parceiro, temos como seguro que o discurso esclarecido do assistente pelo menos não revelou incompreensão do significado e importância do acto sexual.

Também o sentimento de vergonha que espontaneamente passou a toldar o seu comportamento, isolando-se e retraindo-se perante os outros durante algum tempo, sem interferência de terceiros nem outros factores externos, é bem revelador da importância dada pelo assistente aos atos sexuais ocorridos, segundo as concepções e preconceitos sociais dominantes, tantos mais que “gosta de raparigas e até já teve duas namoradas”, conforme declarações do próprio a fls.44.

De resto, a invocação do medo pelo assistente, que disse “tinha medo e não tinha”,  não materializada em qualquer ameaça, agressão ou constrangimento pelo arguido, segundo afirmou o F... , não passa da falaciosa compaixão interior que arranjou para justificar, a si e aos demais, o comportamento de que depois sentiu vergonha.

Todavia, esta vergonha e frustração reveladas posteriormente aos factos é reveladora da capacidade (prévia) do assistente sobre o entendimento e vontade (livre e esclarecida) de exercer a sua sexualidade.

A mesma que revelou quando lhe pôs termo, já que não há noticia de interferências externas para o assistente se afastar do arguido e se refugiar, até contar à sua irmã, em vez de continuar a repetir os atos sexuais com aquele, como anteriormente o tinha feito e quis, agindo ativa e passivamente no sexo anal realizado por ambos.

Fundamentalmente não aceitamos que a médica psiquiatra, Dra M... , tivesse trazido a julgamento esclarecimentos bastantes, assertivos e sobretudo suficientemente fundamentados que lhe permitissem ultrapassar a si e ao tribunal a dúvida que deixou aberta na conclusão refletida do seu relatório pericial, deixando claramente transparecer a dificuldade habitual da resposta solicitada no quadro da deficiência mental de grau ligeira a moderada.

Todas aquelas declarações na estrita medida em que os inquiridos revelaram ter conhecimento seguro dos factos sobre que depuseram e conjugados com as regras da experiência e estes relatórios se afigurou deporem de forma séria, verdadeira e coerente e assim permitiram formar uma dada convicção conscienciosa, disso persuadindo, sobre a dinâmica e circunstâncias dos acontecimentos no sentido dado como provado.

Assim, os depoimentos diretos e indiretos supra referidos, corroborados pelo resultado da perícia sexual, permitiram formar um juízo de verosimilhança forte sobre os atos descritos imputados ao arguido, de tal modo que nenhuma dúvida séria ficou sobre a existência, modo e circunstâncias daqueles dados como provados.

No tocante aos elementos subjectivos foram consideradas as regras da experiência comum em face do contexto em que os factos foram praticados, exceto que o arguido tivesse atuado com conhecimento e vontade de tirar proveito da alegada incapacidade do assistente para lhe opor resistência aos atos sexuais cometidos.

Para terminar, o tribunal serviu-se ainda do exame em audiência do auto de denúncia de fls.12-3 (exclusivamente quanto aos factos ali descritos como resultantes da percepção direta do autuante), relatório de clinica médico-legal de fls.27-9, o relatório informatto crivo da APPACDM de (...) de fls.49-50 e 141-3, o relatório de psiquiatria forense de fls.110-6, certidão de assento de nascimento de fls.120-1, certificado de registo criminal de fls.278, relatório social de fls.279-281.

Dos referidos autos resulta que o assistente teve de se deslocar naturalmente acompanhado à Polícia, ao Hospital Psiquiátrico, ao Instituto de Medicina Legal e aos serviços do Ministério Público para realização de diligências várias.

Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica de toda a prova produzida em julgamento e falta de consistência de outra sobre os mesmos produzida, em resultado, nomeadamente, de não terem sido carreados outros elementos probatórios credíveis e com força bastante para os sustentar.

Na verdade, não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que nessa qualidade se descreveram, designadamente por não ter sido produzida mais qualquer prova testemunhal ou por declarações bastante que conduzisse a distinto resultado probatório, nem tal resultado ser alcançado pela análise dos documentos e exames periciais juntos aos autos.”

*

3. Cumpre conhecer

O tribunal recorrido qualificou a perícia médico-legal como inconclusiva e entendeu que os esclarecimentos prestados em audiência pela perita médica psiquiatra, Srª Dra M... , não são “bastantes, assertivos e sobretudo suficientemente fundamentados que lhe permitissem ultrapassar a si e ao tribunal a dúvida que deixou aberta na conclusão refletida do seu relatório pericial,…”

A simples leitura da perícia médico legal – cfr. fls. 110 a 114 - revela o acerto do tribunal recorrido, porque é manifesto que a referida perícia não ultrapassou o nível da probabilidade.

Procedeu este tribunal de recurso à audição dos esclarecimentos prestados pela Exma. Perita médica psiquiátrica, e tal como o tribunal recorrido constatou que os esclarecimentos não foram suficientemente afirmativos e fundamentados para ultrapassar a dúvida quanto à capacidade do assistente para opor resistência aos actos sexuais descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido.

Dúvida que o tribunal recorrido ultrapassou por recurso à restante prova produzida, conjugada com os seus conhecimentos e com o estudo da obra da Psicóloga L... .

Aliás, a este respeito é relevante a parte da fundamentação que se passa a transcrever:

“A deficiência mental não elimina a afectividade nem o desejo sexual do portador, nem lhe retira o direito de se envolver num relacionamento a dois ou mesmo de constituir família. Temos como certo o direito do indivíduo portador de deficiência mental a uma vivencia plena da sua sexualidade.

Como escreve a psicóloga L... , in Abuso Sexual de pessoa incapaz de resistência: A deficiência mental e a (in)capacidade de opor resistência, “frequentemente estes indivíduos são comparados a crianças, pela sua imaturidade afectiva e cognitiva; contudo, em muitos dos casos, a sexualidade destes indivíduos perdeu já o carácter egocêntrico, narcísico, auto-erótico da infância, para adquirir, em maior ou menor grau, os contornos da sexualidade adulta. Consequentemente, a partilha da intimidade e da sexualidade é essencial para a realização plena do indivíduo, constituindo uma das mais básicas e essenciais necessidades humanas. Sendo que a deficiência mental não priva o seu portador da sua libido, do seu instinto e necessidades sexuais, então este deve poder satisfaze-lo como e com quem desejar (desde que o parceiro esteja de acordo, claro está). Por outro lado, é conhecida no meio da saúde mental a vulnerabilidade do deficiente mental, que pela sua ingenuidade e carácter influenciável, tem um risco acrescido de ser vítima de abuso em relação aos indivíduos intelectualmente medianos”.

(…)
“Mas se aquele relatório não foi assertivo quanto à conclusão ali vertida sobre a (in)capacidade do assistente opor resistência aos atos sexuais do arguido, tão pouco os esclarecimentos trazidos a julgamento pela médica psiquiatra, Dra M... , permitiram ultrapassar a dúvida séria, fundada e razoável que ficou nesse particular.”

Conforme acórdão do STJ de 11.07.2007, «O art. 163.º do CPP fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico do perito, que obriga o julgador, ou seja, a conclusão a que chegar o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser também de argumentos científicos (n.º 2 do art. 163.º do CPP). A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão. No que respeita à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, dado que não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria. Quando os peritos não conseguirem alcançar um parecer livre de dúvidas, quando nas conclusões do relatório pericial se conclui por um juízo de mera probabilidade ou opinativo, incumbe ao tribunal tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos.» ( sublinhado nosso)

Como é sabido, o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos.

Por isso, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, que decide livre de qualquer restrição probatória e portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o pro reo (cfr. Acs. do STJ de 5 de Novembro de 1998, CJ, ASTJ, III, pág. 210 e de 27 de Abril de 2011, proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1, e da R. do Porto de 27 de Janeiro de 2010, proc. nº 45/06.7PIPRT.P1, ambos in, www.dgsi.pt).

Contudo, importa considerar que o tribunal recorrido, não obstante a alusão ao estudo, não ultrapassa na motivação e de forma fundada a dúvida séria que a perícia e os esclarecimentos não foram capazes de dissipar. Percebe-se claramente que a convicção do tribunal a quo não foi alcançada para além de toda a dúvida razoável.

Dúvida que nesta fase processual não se mostra ainda intransponível, insanável.

Citando Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal – Vol. I, pág.85 «Definido o objecto do processo pela acusação e delimitado consequentemente o objecto do julgamento, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa; contrariamente ao que sucede no processo civil, não existe ónus da prova em processo penal. O tribunal pode e deve ordenar oficiosamente toda a produção de prova que entenda por necessária ou conveniente para a descoberta da verdade».

Ora conforme resulta do artigo 340º do Código de Processo Penal o tribunal as diligencias que se mostrem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

Assim, incumbindo ao juiz o ónus de investigar e determinar oficiosamente o facto submetido a julgamento, afigura-se pertinente solicitar a realização de nova perícia - art 158º, nº1, al. b) do Código de Processo Penal - com o objectivo de dissipar a aludida dúvida quanto no que respeita à (in)capacidade do ofendido para entender e avaliar a natureza das consequências e o alcance de actos de natureza sexual e para se autodeterminar sexualmente, formar e exprimir a sua vontade no sentido da resistência ao acto sexual.

Impõe-se assim, o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à concreta questão da incapacidade da vítima para se opor aos actos sexuais propostos pelo arguido descritos nos pontos 7 e 8 do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 426.°, n.° 1 do Código de Processo penal.

As restantes questões suscitadas nos recursos ficam prejudicadas.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em determinar o reenvio para novo julgamento relativamente às questões aludidas em 3. – cf. artigos 426º e 426º - A do CPP.

Sem tributação.

Coimbra, 15 Novembro de 2017

(Processado informaticamente e revisto pela relatora)

(Isabel Valongo – relatora)



(Jorge França – adjunto)


[1] Equiparação que, dadas as competências do assistente, nos parece forçada de acordo com os critérios de classificação de inteligência para adultos num QI de 55 no Exame WAIS-III.