Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4472/18.9T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
MODALIDADE DE SUPPRESSIO
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 334º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O termo suppressio é a tradução latina proposta por Menezes Cordeiro, na sua tese de doutoramento “Da boa fé no direito civil”, da figura da Verwirkung do direito alemão, a qual conheceu as suas primeiras manifestações no último quartel do século XIX, ainda em tempos anteriores à entrada em vigor do B.G.B.

II - Com essa designação pretende-se abarcar as hipóteses em que, devido ao titular de um direito não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, as circunstâncias que rodearam essa inação criaram na contraparte a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido, merecendo essa confiança a proteção da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio ou da atribuição à contraparte de um direito subjetivo obstaculizador (a surrectio, como tradução latina da Erwirkung alemã, e que constitui com a suppressio as duas faces da mesma moeda).

III - Fruto da teorização desta figura no direito português, introduzida por Menezes Cordeiro, a mesma tem vindo a ser objeto de profusa equação nos tribunais desde os últimos anos do século XX, invocando as mais diversas decisões que ponderaram a sua aplicação, em diferentes situações, o instituto do abuso de direito, consagrado no art.º 334º do C. Civil.

IV - É opinião corrente entre nós que a suppressio abrange situações próximas ou que constituem uma modalidade da figura do venire contra factum proprio, em que o exercício de um direito se revela contraditório com um anterior comportamento de inação prolongada, que, atentas as circunstâncias que caracterizam o caso concreto, induzem o sujeito obrigado por esse direito a, legitimamente, confiar que o mesmo já não será exercido, pelo que a sua ativação ofende os ditames da boa fé.

V - Costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura:

- um não exercício prolongado do direito;

- uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;

- uma justificação para essa confiança;

- um investimento de confiança;

- a imputação ao não exercente da confiança criada.

VI - Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes.

VII - Relativamente à prescrição dos direitos, a suppressio, tendo em comum o pressuposto da inércia do titular do direito durante um significativo período de tempo, afasta-se destas figuras ao depender da existência de um concreto investimento de confiança por parte do devedor para operar.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Os Executados deduziram oposição à execução que a Exequente lhes moveu, alegando, conforme consta do relatório da decisão recorrida que aqui se transcreve:
‘está prescrita a obrigação cambiária, tendo o contrato atingido o seu termos, pelo que a primeira não vale como título executivo; a embargada preencheu a livrança abusivamente e depois de extinto o contrato; aquando da celebração do contrato foi transmitido pelo fornecedor do veículo que para facilitar o negócio seria melhor passar a letra destinada a servir de garantia; não lhe foi aposto qualquer valor; não foi indicada qualquer data de emissão ou vencimento; não foi convencionada taxa de juro ou vencimento; os embargantes não deram autorização para o seu preenchimento, uma vez que a mesma se destinava a pagamento oportuno e nos termos de acordo a celebrar; o seu preenchimento foi abusivo; a exequente sabia que a TAEG de 21,10% era irrazoável; aproveitou-se da inexperiência dos embargados, pessoas humildes e sem conhecimentos, nem sequer lhes explicando os termos em que estava a ser feito o mútuo; celebrou um negócio usurário; as cláusulas contratuais gerais não foram explicadas aos executados; a exequente deixou que o contrato atingisse o seu termo sem reclamar o que quer que fosse dos embargantes, não dando a livrança à execução; o que constitui a modalidade de abuso de direito de venire contra factum proprium.’.

Notificada da dedução de oposição por parte dos executados, veio a exequente apresentar contestação, alegando, em suma, o seguinte: a livrança, ainda que prescrita, constitui título executivo, nos termos do art.º 703º, n.º 1, al. c), do C.P.C.; a relação subjacente foi devidamente alegada; o contrato prevê expressamente a autorização dos embargantes para o preenchimento da livrança pela exequente; a embargada informou os embargantes do teor do contrato, que o assinaram e declararam ter perfeito conhecimento de todas as cláusulas, não tendo a exequente explorado os executados de qualquer forma; a exequente não exerceu o seu direito de forma abusiva nem violou a confiança dos embargantes.
Mais requereu a condenação dos embargantes por litigância de má-fé, em multa e indemnização alegando que os mesmos invocaram factos cuja falsidade conheciam.

Os embargantes exerceram o contraditório relativamente à invocada má-fé, pugnando pela sua improcedência e requerendo a condenação da exequente nessa qualidade, em multa e indemnização, por usar o processo para alcançar objectivos que a lei não tutela.

Na audiência prévia foi proferido despacho saneador que conheceu do mérito da invocada prescrição, julgando procedente a invocada exceção de prescrição cambiária, sendo a mesma irrelevante nos presentes autos, atento o título executivo em causa.
Veio a ser proferida sentença que julgou os embargos procedentes com o seguinte fundamento:
‘Assim sendo, a exequente, ao propor o processo executivo quatro anos depois do preenchimento da livrança, no contexto em que o fez, age com manifesto abuso de direito, na modalidade de supressio, procedendo a alegação de abuso de direito efetuada pelos embargantes, que determinará a extinção da execução.’.
A Exequente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
Os Executados apresentaram resposta, pugnando pela confirmação da decisão.
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas cumpre apreciar se a instauração da execução revela abuso de direito da Exequente na modalidade de suppressio.
2. Os factos
1- No dia 27.09.2018 o M..., S.A. requereu a execução dos embargantes, com vista ao pagamento da quantia de €5.258,79 (cinco mil duzentos e cinquenta e oito euros e setenta e nove cêntimos), execução essa que constitui os autos principais;
2- No processo referido em 1 a exequente apresentou como título executivo uma livrança com data de emissão de 2014.11.20, com o valor de €4.545,43 (quatro mil quinhentos e quarenta e cinco euros e quarenta e três cêntimos), com data de vencimento em 2014.12.20 e indicação de ser relativa ao contrato de crédito n.º ..., subscrita pelos embargantes/executados;
3- Apresentou ainda nos autos acordo escrito, assinado pelos embargantes/executados e por representante da exequente, denominado Contrato de Mútuo, com o n.º ..., datado de 08.04.2004, onde os primeiros figuram como mutuários, onde constam como condições particulares as seguinte: (…) montante do empréstimo 7.000,00€; Plano Proteção F... 338,94€; Total Financiamento Concedido 7.338,94€; Taxa de Juro Fixa; Encargos Administrativos e Fiscais 117,00€; Total Financiamento e Encargos 11.422,80€; Valor de Cada Prestação 188,43; N.º de Prestações 60; Periodicidade Mensal; Data de Vencimento da Primeira Prestação 05.05.2004; TAEG 21,10% Anual; Preço do Bem 7.000,00€; Bem Financiado Moto; Marca e Modelo Yamaha Moto 4; Matrícula ...; Declaro que, por minha autorização, o montante do empréstimo, nesta data, entregue ao Fornecedor C..., LDA.(…)”;
4- Do referido documento, como Condições Gerais, consta, além do mais, o seguinte: “(…)
MORA
1 – No caso de mora no pagamento da prestação de capital e/ou juros, incidirá sobre o montante dessa prestação, e durante o tempo em que a mora se verificar, a taxa de juro fixada neste contrato, acrescida de uma sobretaxa de mora de 4% (quatro por cento) ao ano, ou de outra que estiver legalmente em vigor.
PERÍODO DE REFLEXÃO
O(s) mutuário(s) declara(m)-se conhecedor(es) do seu direito de revogação da declaração negocial produzida no presente contrato, devendo tal direito ser exercido através do envio à F... e recepção por esta, de uma carta registada com aviso de recepção, nos sete dias úteis contados a partir da data da assinatura do presente contrato, com a declaração que constitui anexo a este contrato ou em declaração notificada à F..., por qualquer outro meio, no mesmo prazo. (…)
GARANTIAS
Livrança
O(s) Mutuário(s) obriga(m)-se a entregar à F..., a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida, pela F..., designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a F... seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A F... poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos. (…)
ENCARGOS
Nos termos e de acordo com o preçário em vigor, correrão por conta dos Mutuários os encargos com a abertura, alteração e modificação de mútuo, nomeadamente os relativos ao imposto de selo a que se refere a TGIS.
Serão também da conta do(s) Mutuário(s) todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e solicitador, que a F... haja fazer para garantia e cobrança de tudo quanto constituir o seu crédito.
INCUMPRIMENTO
O não cumprimento do(s) Mutuário(s), de qualquer das obrigações aqui assumidas, tanto de natureza pecuniária como de outra espécie, facultará à F... – Instituição Financeira de Crédito, S.A., o direito de resolver o contrato por simples declaração escrita da sua parte e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto constitui o seu crédito.
VENCIMENTO ANTECIPADO
Constitui-se como causa de vencimento antecipado de todas as obrigações do presente contrato, o não cumprimento, total ou parcial, de quaisquer obrigações decorrentes de outros contratos, incluindo as emergentes da prestação de qualquer garantia, celebrados com a F... e/ou com qualquer outra sociedade integrada no denominado grupo F...
(…);
5- No âmbito da celebração do acordo referido em 3 e 4 foi assinada pelos embargantes a livrança referida em 2, tendo a mesma sido entregue à exequente sem estar preenchida;
6- Alega a exequente no requerimento executivo apresentado que “1. M... - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., é a actual denominação de F...– INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., (…) 2. A Exequente é uma instituição financeira de crédito que se dedica à concessão de crédito ao consumo de bens e serviços.3. No âmbito da sua actividade a Exequente celebrou com P... e A... o contrato de mútuo n.º ... destinado a financiar a aquisição de uma moto, marca Yamaha moto 4, com a matrícula ... 4. O montante global do referido contrato foi o de €11.422,80 (onze mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos), a ser liquidado em 60 (sessenta) prestações mensais e sucessivas com o valor de prestação mensal de €188,43 (cento e oitenta e oito euros e quarenta e três cêntimos) (…) 5. Para garantia do pagamento daquelas prestações os Executados assinaram e entregaram à Exequente a livrança em branco n.º ..., conferindo expressamente à Exequente direito de a preencher, apondo-lhe a data de vencimento, o local de pagamento e a importância do título pelo valor correspondente ao capital mutuado em dívida, aos juros compensatórios e moratórios convencionados e demais encargos e penalizações contratualmente estabelecidos. 6. O contrato teve início em 8.4.2004, vencendo-se a primeira prestação em 5.5.2004. 7. No entanto, no decorrer do contrato os Executados não cumpriram todas as obrigações emergentes do mesmo, nomeadamente no que respeita ao pagamento integral das prestações previstas nas condições particulares. 8. O contrato chegou ao seu termo, sem que tivessem sido liquidadas todas as prestações acordadas, pelo que, por comunicação datada de 20.11.2014, enviada pela Exequente aos Executados para a morada constante do contrato (…) a Exequente comunicou que, na sequência do termo do contrato, e não tendo sido cumpridas todas as obrigações emergentes do contrato, foi a livrança preenchida pelo valor de €4.545,43 (…), quantia esta correspondente ao somatório das seguintes quantias: €3.278,57 de prestações vencidas; €748,77 de juros de mora por cada prestação vencida e respectivo imposto de selo e €518,09 relativos a demais despesas e encargos contratuais. 9. Apesar de interpelados para o respectivo pagamento na data de emissão, o valor titulado pela referida livrança não foi pago naquela data, nem posteriormente. (…) 11. Os Executados são, pois, devedores à Exequente da quantia titulada pela livrança referida, acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, e do respectivo imposto de selo. 12. Os juros vencidos, contados desde a data de vencimento da livrança até 27.9.2018 ascendem a €685,92, e o imposto de selo a €27,44. 13. Devem, assim, os Executados à Exequente o montante de €5.258,79 (cinco mil duzentos e cinquenta e oito euros e setenta e nove cêntimos), acrescido dos juros vencidos calculados sobre o capital em dívida desde a data referida no número anterior e vincendos, à taxa legal, e respectivo imposto de selo, custas e demais encargos legais, tudo até efectivo e integral pagamento. 14. A livrança em questão constitui título executivo que serve de base à presente execução, ainda que como mero quirógrafo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 703.º do Código de Processo Civil. (…)’.
7- Os embargantes são pessoas humildes, sem conhecimento do mercado.
8- A exequente aceitou que o contrato atingisse o seu termo, sem que tivesse dado à execução a livrança.
3. O Direito aplicável
3.1. A decisão recorrida
M... deduziu execução contra os embargantes, pretendendo a cobrança das prestações em dívida respeitantes à obrigação assumida por aqueles em contrato de mútuo outorgado em 8.04.2004 de amortizarem o capital mutuado em 60 prestações mensais, com início em 5.05.2004, que incluíam o pagamento de juros remuneratórios, as quais somavam €3.278,57, além de juros de mora vencidos.
Apresentou como título executivo uma livrança que os embargantes haviam subscrito em branco, aquando da celebração do contrato de mútuo, e que foi preenchida pelo Exequente em 20.11.2014, com o valor de €4.545,43 (quatro mil quinhentos e quarenta e cinco euros e quarenta e três cêntimos), e com data de vencimento em 2014.12.20.
A obrigação cambiária resultante da subscrição daquela livrança já se encontrava prescrita quando foi proposta a execução, como já se reconheceu por despacho transitado em julgado proferido neste processo, pelo que a mesma foi junta como título executivo quirógrafo da obrigação exequenda, nos termos do art.º 703º, c), do C.P.C.
Daí que esse despacho tenha referido que a prescrição da obrigação cambiária não afetava a sua valia como título executivo.
A sentença recorrida veio, porém, a julgar procedentes os embargos deduzidos, por ter entendido que ‘a exequente, ao propor o processo executivo quatro anos depois do preenchimento da livrança, no contexto em que o fez, age com manifesto abuso de direito, na modalidade de supressio, procedendo a alegação de abuso de direito efectuada pelos embargantes, que determinará a extinção da execução.’.
O contexto considerado foi o seguinte:
‘O contrato foi celebrado em Abril de 2004; a livrança foi preenchida com data de vencimento de 20.12.2014 e, sem qualquer outra interpelação dos embargantes, a execução só veio a ser proposta em 27.09.2018, ou seja, quase quatro anos depois.
Considerando o tempo decorrido, bem como a humildade e inexperiência dos embargantes, é de todo legítimo que os mesmos se tenham convencido que nada mais lhes iria ser exigido em função do celebrado contrato.’.
3.2. A suppressio
O termo suppressio é a tradução latina proposta por Menezes Cordeiro, na sua tese de doutoramento “Da boa fé no direito civil” [1], da figura da Verwirkung do direito alemão, a qual conheceu as suas primeiras manifestações no último quartel do século XIX, ainda em tempos anteriores à entrada em vigor do B.G.B [2].
Com essa designação pretende-se abarcar as hipóteses em que, devido ao titular de um direito não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, as circunstâncias que rodearam essa inação criaram na contraparte a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido, merecendo essa confiança a proteção da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio ou da atribuição à contraparte de um direito subjetivo obstaculizador (a surrectio, como tradução latina da Erwirkung alemã, e que constitui com a suppressio as duas faces da mesma moeda).
Fruto da teorização desta figura no direito português, introduzida por Menezes Cordeiro, a mesma tem vindo a ser objecto de profusa equação nos tribunais desde os últimos anos do século XX, invocando as mais diversas decisões que ponderaram a sua aplicação, em diferentes situações, o instituto do abuso de direito, consagrado no art.º 334º do C. Civil.
É opinião corrente entre nós que a suppressio abrange situações próximas ou que constituem uma modalidade da figura do venire contra factum proprio [3], em que o exercício de um direito se revela contraditório com um anterior comportamento de inação prolongada, que, atentas as circunstâncias que caracterizam o caso concreto, induzem o sujeito obrigado por esse direito a, legitimamente, confiar que o mesmo já não será exercido, pelo que a sua ativação ofende os ditames da boa fé.
Seguindo a opinião de Menezes Cordeiro [4], costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura:
- um não exercício prolongado do direito;
- uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;
- uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação ao não exercente da confiança criada.
Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes [5].
Relativamente à prescrição dos direitos, a suppressio, tendo em comum o pressuposto da inércia do titular do direito durante um significativo período de tempo, afasta-se destas figuras ao depender da existência de um concreto investimento de confiança por parte do devedor para operar. Se é verdade que o recurso à Verwirkung, na jurisprudência alemã, no início, se deveu, em larga medida, à existência dos extensos prazos de prescrição, o que nos poderia conduzir a identificar erradamente a suppressio com uma prescrição de facto ou como um encurtamento judicial dos prazos de prescrição, o núcleo axiológico desta figura reside antes na boa-fé violada pelo exercício de um direito perante quem havia legitimamente confiado que a sua ativação já não ocorreria, não tendo, por isso, limites fixos de tempo [6].
A prescrição e a suppressio não se confundem, nem se excluem, daí que a suppressio não deixe de ter espaço num sistema jurídico, como o nosso, dotado de um quadro minucioso das repercussões do tempo nas situações jurídicas.
A supressio não desempenha entre nós um papel complementar da prescrição, atuando em situações em que a prescrição falha na obtenção da justiça do caso concreto, obedecendo antes a uma finalidade própria – a proteção de uma situação de confiança legítima da contraparte do direito inativado durante um período significativo de tempo (um não exercício eloquente) [7].
É equívoca, pois, a afirmação que tantas vezes se encontra na doutrina e na jurisprudência que a suppressio tem uma natureza subsidiária, sendo insusceptível de aplicação sempre que a ordem jurídica prescreva outro caminho [8].
3.3. A prescrição do direito exequendo
O Exequente, com a execução embargada, além dos respectivos juros de mora, pretende cobrar parte das prestações mensais relativas à amortização da quantia mutuada e ao pagamento de juros remuneratórios, acordadas em contrato de mútuo celebrado com os embargantes em 8.04.2004.
Foi acordado que o pagamento dessas prestações, no número de 60, se iniciaria 5.5.2004.
Dispõe a alínea d) do art.º 310º do C. Civil que prescrevem no prazo de cinco anos os juros convencionais e a alínea e) do mesmo art.º que prescrevem em igual prazo as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
Com estas prescrições de curto prazo pretendeu-se evitar que, devido à inércia do credor, se acumule excessivamente o valor de uma dívida cujas prestações, somadas, possam atingir uma dimensão que provoque a insolvência do devedor [9].
Como a alínea d) prevê, especificamente, que entre essas dívidas periodicamente renováveis se encontram os juros convencionais, o legislador entendeu que com eles deveriam também prescrever as quotas de amortização de capital, quando devam ser pagas conjuntamente com os juros. Esta solução foi inspirada no B.G.B., como esclareceu Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do Código Civil: com os juros devem prescrever as quotas de amortização, se deverem ser pagas como adjunção aos juros (Código alemão § 197), pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e tratá-lo como juros.
Acrescentamos nós que não poderia ser outra a solução, uma vez que seria, no mínimo, estranho o concurso de duas prescrições com prazos distintos sobre as mesmas prestações compósitas (uma quanto aos juros e outra quanto à amortização do capital).
As prescrições de curto prazo das alíneas d) e e) do art.º 310º do C. Civil  abrangem assim as hipóteses de obrigações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas, englobando o pagamento de juros convencionais e a amortização de capital mutuado, com origem na celebração de um contrato de mútuo [10].
Conforme resulta dos termos do contrato de mútuo celebrado entre o Exequente e os Embargantes, estes obrigaram-se ao pagamento àquele de 60 prestações mensais, no valor unitário de 188,43€, com início em 5.5.2004, englobando o reembolso do capital mutuado – 7.000,00 € – e juros remuneratórios, à taxa anual de 21,10%, pelo que estamos perante uma hipótese subsumível ao regime dos prazos de curta duração, previstos no art.º 310º do C. Civil.
Apesar do Exequente não ter indicado a que prestações se reporta a quantia exequenda, uma vez que os 60 meses previstos para o pagamento das referidas prestações terminaram em 05.04.2009, pode concluir-se que o vencimento das obrigações periódicas, cuja cobrança se pretende com a interposição da execução embargada, ocorreu necessariamente até aquela data.
Daí que pelo menos em 05.04.2014 os respetivos direitos de crédito já se encontravam prescritos, atendendo ao disposto no art.º 310º, d) e e), do C. Civil.
Contudo, os embargantes não invocaram a prescrição do crédito exequendo, tendo apenas alegado a prescrição do crédito cambiário, a qual apesar de ter sido reconhecida no despacho saneador, foi considerada irrelevante para o mérito dos presentes embargos.
Ora, o tribunal não pode suprir oficiosamente a falta de invocação da prescrição, necessitando esta figura de ser invocada por aquele a quem aproveita para poder ser aplicada – art.º 303º do C. Civil.
3.4. A verificação da suppressio no caso sub iudice
O facto de o tribunal não poder concluir pela prescrição do crédito exequendo, apesar de se mostrar largamente ultrapassado o prazo prescricional do mesmo, por falta de invocação da prescrição pelo seu beneficiário, não obsta, contudo, a que se conheça da alegação do devedor de que a cobrança deste crédito passados todos estes anos após o seu vencimento constitui um abuso de direito.
Como já acima se constatou, a figura da suppressio não tem uma aplicação puramente complementar, dependendo da verificação de requisitos próprios, pelo que pode ser aplicada, mesmo quando o ordenamento forneça outros meios, como a invocação da prescrição, para impedir um exercício abusivo do direito.
Embora o recurso à figura da suppressio ocorra habitualmente em situações em que ainda não se completou o prazo de prescrição do direito exercido após um período, mais ou menos longo de inação, é também possível a utilização desta figura numa situação em que, apesar de já ter decorrido o prazo de prescrição, o seu beneficiário não a invoque (provavelmente por erro técnico do mandatário), antes alegando verificar-se uma situação de exercício abusivo do direito, por violação de uma situação de confiança.
Esta será uma das raras situações em que, não sendo o período de inação inferior ao prazo de caducidade, o recurso à suppressio não perde utilidade [11].
Note-se que respeitando o legislador os escrúpulos que o beneficiário da prescrição possa ter em beneficiar da figura da prescrição, ao exigir que aquele a invoque para que possa ser conhecida pelo tribunal – art.º 303º do C. Civil -[12], não pode impedi-lo de utilizar outros meios reconhecidos pela ordem jurídica, para se opor à satisfação do direito prescrito, como seja o abuso de direito e, mais especificamente, a suppressio.
Importa, pois, verificar se a sentença recorrida tinha razões justificativas para, neste caso, fundamentar a sua decisão na figura da suppressio.
Dos requisitos acima enumerados para se verifique uma situação que justifique a utilização da figura da suppressio, no caso concreto é exuberante a existência de um prazo muito dilatado entre o vencimento da prestação exequenda (que ocorreu o mais tardar em 5.04.2009) e a instauração da execução - 27.09.2018 -, o qual quase que duplica o prazo de prescrição do crédito exequendo.
Esse não exercício prolongado deste direito de crédito, atendendo à sua extensa duração, é susceptível de causar na contraparte, tendo em consideração as expetativas de um contraente comum (o bonnus pater familiae), um sentimento de confiança justificada de que o crédito já não lhe seria cobrado.
Na verdade, apesar de não existirem elementos circundantes à relação contratual em causa que sustentem a constituição dessa situação de confiança e do Exequente, em Novembro de 2014 (sensivelmente a meio do período de inação), ter comunicado aos Embargantes que tinha o direito a reclamar os valores em dívida, e que iria preencher a livrança subscrita em branco pelos embargantes no momento da celebração do contrato de mútuo, pelo valor da dívida existente, acrescida de juros de mora, não é, neste caso, suficiente para impedir a verificação de uma situação objetiva de confiança.
Note-se, em primeiro lugar, que estamos perante uma inação do credor durante um período que excede largamente o prazo máximo que o legislador entendeu ser o adequado para o exercício do direito em causa, tendo em conta os valores da segurança jurídica e da certeza do direito, o que é suficiente para a constituição de uma situação objetiva de confiança no não exercício do direito, sendo dispensável a verificação de outras circunstâncias circundantes que confirmem essa situação.
Em segundo lugar, tendo a comunicação do Exequente aos Embargantes, em que revelava a sua vontade em cobrar o crédito em causa, sido feita já para além do prazo prescricional desse crédito, não tem a mesma a virtualidade de afastar a possibilidade daquela situação objetiva de confiança se verificar, uma vez que o Exequente já havia perdido o direito de exigir a satisfação do seu crédito - art.º 304º, n.º 1, do C. Civil.
É certo que, no caso sub iudice, não se encontra presente um qualquer investimento na situação de confiança no não exercício do direito de crédito do Exequente. Mas considerando a fortíssima intensidade do não exercício prolongado do direito, atenta a longa duração do período de inação, que excedeu em muito o prazo de prescrição desse direito, processando-se a articulação dos pressupostos da suppressio de acordo com os mecanismos de uma sistemática móvel, em que a falta de algum deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes, é possível fazer uso desta figura, mesmo numa situação em que está ausente um qualquer investimento na confiança no não exercício do direito.
Por estas razões não merece censura a sentença recorrida que, recorrendo à figura da suppressio, considerou ilegítimo o pedido executivo, julgando procedentes os embargos.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Exequente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente.
                                       Coimbra, em 24/11/2020

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[1] Pág. 797 e seg., do vol. II, Almedina, 1984.

[2] Sobre a evolução da Verwirkung no direito alemão, Menezes Cordeiro, ob. e loc. cit. na nota anterior, e em Tratado de Direito Civil Português, I, tomo 4, Almedina, 2005, pág. 315-318.

[3] Sobre os problemas da integração desta figura na proibição do venire contra factum proprio, Batista Machado, Obra Dispersa, vol. I, pág. 422, Scientia Iuridica, 1991, e Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., vol. II, pág. 212-215.
[4] Tratado de Direito Civil Português, ob. cit., pág. 324, e Código Civil Comentado, vol. I, pág. 936, Almedina, 2020.

[5] Sobre a elasticidade dos requisitos de aplicação do venire contra factum proprio, Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., vol. II, pág. 759.
[6] Batista Machado, ob. cit., pág. 421.

[7] Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., vol. II, pág. 819-821.

[8] Menezes Cordeiro dá nota desse entendimento doutrinal (em Da boa fé no direito civil, cit., vol. II, pág. 812, para mais adiante afastar a atribuição à suppressio de uma função complementar (ob. cit., pág. 819-820).
[9] Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, B.M.J. n.º 106, pág. 119, Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Anotação aos Art.ºs 296.º a 333.º do Código Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 124-125, Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 755, e Rita Canas da Silva, Código Civil Anotado, Almedina, 2017, pág. 382.

[10] Filipa Morais Antunes, ob. cit., pág. 128-129, e os Acórdãos do S.T.J. de 29.9.2016, relatado por Lopes do Rego, e de 6.06.2019, relatado por Abrantes Geraldes, da Relação de Coimbra, de 8.05.2007, relatado por Freitas Neto, e de 26.04.2016, relatado por Maria João Areias, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, ob. cit., pág. 322, refere que o quantum do tempo necessário para concretizar a suppressio, deve ser inferior ao da prescrição, sob pena daquela figura perder utilidade, não tendo previsto a hipótese da prescrição não poder ser conhecida por falta de invocação pelo beneficiário.

[12] Vaz Serra, ob. cit., B.M.J. n.º 105, pág. 148.