Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
869/10.0TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA DE OUVIR DIZER AO ARGUIDO VALORAÇÃO PROBATÓRIA
Data do Acordão: 06/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INST. CENTRAL DA SECÇÃO CRIMINAL DE VISEU - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 125.º E 127.º DO CPP
Sumário: I - O depoimento de ouvir dizer a arguido, que, estando presente em audiência de julgamento, ainda que se remetendo ao silêncio, tem toda a possibilidade de exercer o contraditório, é susceptível de ser valorado, de acordo com os princípios gerais de liberdade de prova e de livre valoração da prova.

II - Todavia, a valoração do depoimento de ouvir dizer requer alguma prudência, devendo, sempre que possível, encontrar sustentação noutros meios de prova, sejam directos ou indirectos.

Decisão Texto Integral:


Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum coletivo n.º 869/10.0TAVIS, da Comarca de Viseu, Viseu – Inst. Central – Secção Criminal – J1, mediante acusação pública, foi o arguido A... , melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, alíneas a) e e), com referência ao artigo 201.º, alíneas b) e d), do C. Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual foi comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos, subsumindo-os ao crime de furto qualificado, p. e p. pelas alíneas a) e e) do n.º 2 do artigo 204.º do C. Penal, por acórdão de 30.04.2014, deliberou o Coletivo:

Julgar a acusação do Ministério Público parcialmente procedente por provada e, consequentemente:

1) Convolar o crime de furto qualificado, p.p.p artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al a) e e) do CP pelo qual o arguido se encontra acusado para um crime de furto qualificado mas previsto pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 2, alíneas a) e e) do mesmo diploma.

2) Condenar o arguido A... , como autor material da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, nº 1 e 204.º, n.º 2 alíneas a) e e), por referência ao artigo 202.º alínea b) e d), todos do Código Penal, na pena de três (3) anos e seis (6) meses de prisão.

3. Não se conformando com o assim decidido recorre o arguido, extraindo as seguintes conclusões:

1.ª A Prova existente nos autos, em particular a reproduzida ou obtida em Audiência de Julgamento não aconselha a condenação do arguido.

2.ª A confissão da prática de um crime perante terceiro, sem qualquer prova que a corrobore, não deve servir como prova que sustente a condenação do arguido.

3.ª A expressão “não passem por Fagilde porque houve lá um furto e anda lá a GNR” não pode ser considerada como uma confissão.

4.ª O depoimento da testemunha B... é vago, nada sabendo do furto, o que sublinha o facto da má interpretação da expressão. Enquanto a testemunha falou voluntariamente, sem indicação ou orientação de resposta, limitou-se a dizer que o arguido lhe disse apenas para não ir para a zona de Prime. Nem sequer disse que entendeu a advertência do arguido como uma “confissão”.

5.ª A consideração de valia probatória à testemunha B... , (que contrariamente ao recorrente era na altura autor condenado em vários processos pela prática do crime de furto de cobre) impunha fundamentação adequada na apreciação critica, mesmo que comparativa, com os restantes depoimentos. Não tendo sido prestada tal fundamentação será nula a decisão que considerou tal meio de prova.

6.ª O espaço temporal relativo à utilização do telemóvel do arguido não permite colocá-lo no local do crime.

7.ª O crime dos autos ocorreu na noite de 17 para 18 de maio de 2010.

8.ª A prova por georreferenciação só poderá ser valorada quando suportada por outra prova consistente (visto que é totalmente falível) o que salvo o devido respeito não ocorre no caso concreto.

9.ª Os dados fornecidos pelas telecomunicações não são suficientes para colocar o Recorrente no local do furto, em particular à hora do furto.

10.ª Não existe qualquer prova de que tivesse sido o Recorrente a cometer o crime, assim como não existe qualquer prova de que detivesse o material furtado nas suas instalações.

11.ª Os pais do Recorrente vivem nas imediações das instalações, pelo que e juntando ao facto de os dados de georreferenciação serem falíveis, não é por si só suficiente para o condenar.

12.ª O crime de furto pressupõe uma apropriação de bens, o que no caso não é possível provar.

Crê-se violado o disposto no art.º 203º do CP, artigo 276º, do CPP, artigo 283º, n.º 1 do CPP, artigo 356º, n.º 7, 345.º, n.º 4, artigo 32º, n.º 2, CRP.

Em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPP, especifica:

a) A autoria do crime; o conteúdo das declarações da testemunha B... ; o valor probatório das informações prestadas pela TMN.

b) Declarações da Testemunha B... , C... e D... ; análise dos documentos apresentados pela TMN: Doc. de fls. 14.

c) As declarações prestadas pelas testemunhas referidas em b) não sendo possível avaliar o seu conteúdo, sem a audição integral das mesmas (apesar da transcrição parcial feita).

Termos em que,

Dando provimento ao presente recurso e a consequente absolvição do Recorrente, crê que seja reposta a Justiça ao caso.

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Ao recurso respondeu o Exmo. Procurador da República, concluindo:

1. O tribunal a quo fez criteriosa aplicação do princípio da livre apreciação da prova, vertido no art. 127º do Código do Processo Penal, encontrando-se a justificação justamente na fundamentação da matéria de facto, no exame crítico das provas, atendendo a que se pode ler no acórdão criticado toda a estrutura do pensamento que presidiu à criação da convicção por banda dos julgadores.

2. O acreditar fundamentalmente na testemunha B... não surgiu para aqueles como uma operação puramente subjetiva e emocional. Pelo contrário. O Tribunal a quo acreditou fundamentalmente naquela testemunha, porque a versão dos factos por ele apresentada, quando confrontada com os demais elementos de prova, designadamente do que resultou das informações das operadoras de telemóvel, se mostrou sustentável, racional e lógica.

3. Baseando-se o tribunal a quo, fundamentalmente em dois argumentos probatórios para firmar a condenação do arguido, o recorrente tenta descredibilizar cada um daqueles fundamentos em si mesmo considerados, como se nada mais existisse em termos probatórios, esquecendo, por completo, o efeito corroborante que, desde logo, cada um daqueles fundamentos tem em relação ao outro.

4. A “confissão” que o arguido efetuou à testemunha B... não é uma mera interpretação e conclusão da própria testemunha, a que o mesmo chegasse por ter sido orientada pelas instâncias, pois não se pode esquecer, desde logo a forma como se iniciou tal depoimento, no âmbito do qual, a testemunha em causa indicou espontaneamente, sem qualquer tipo de sugestão, quem tinha sido o autor do furto e a correspondente razão de ciência para essa afirmação.

5. É evidente o esforço (diríamos inglório!) por parte da defesa em tentar dar um sentido e uma significação às declarações da testemunha, de acordo com a sua própria interpretação ou conveniência de participante processual, não tendo, todavia, outra alternativa senão a de se conformar com as respostas que aquele acabou por dar com toda a segurança e firmeza, corroborando assim o diálogo que manteve com o arguido, no âmbito do qual este lhe confessou ter sido o autor do furto, revelando ampla solidez e convicção nas respostas, utilizando expressões, como por exemplo “se tou a dizer que disse é porque disse!” e “ele disse para mim que tinha sido ele e não vou mentir!”.

6. É justamente a circunstância da testemunha B... já ter sido julgada e condenada pela prática de crimes que, entre outras razões, dá consistência e verosimilhança ao seu depoimento, na justa medida em que traduz um conhecimento privilegiado das rotinas e hábitos do arguido.

7. Sejam quais forem as contradições e incongruências que o recorrente procure encontrar nas declarações da testemunha B... , certo é que a mesma prestou em audiência de discussão e julgamento um depoimento seguro e objetivo, realizado com toda a serenidade, e no âmbito do qual relatou a conversa que tinha tido com o arguido, que lhe confessou, sem margem para qualquer tipo de dúvida, ter sido ele o autor dos factos, a merecer, portanto, toda a credibilidade, por estar, aliás, totalmente em conformidade com a demais prova produzida em julgamento (informações das operadoras de telemóvel, devidamente conexionadas com os elementos extraídos do processo n.º 94/10.0GDCBR da comarca da Pampilhosa da Serra), em conjugação com a qual foi possível alcançar em termos harmónicos a reconstituição do facto histórico.

8. O depoimento da testemunha B... , o qual relatou o que o arguido lhe havia contado não pode deixar de ser valorado como meio de prova, não obstante o arguido se ter abrigado no seu direito ao silêncio, atendendo a que se impõe concluir que o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas que relatem conversas tidas com um arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio e, ainda, que tal interpretação não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.

9. A incriminação resultante do depoimento do que se ouvir dizer do arguido, não foi o único meio de prova que o tribunal a quo se socorreu para dar como provada a autoria do furto por parte do arguido, existindo ainda outros elementos de prova corroborantes, tais como a informação resultante do cruzamento de dados relativos à localização celular e registo de trace-back dos telemóveis do arguido no período temporal em que ocorreu o furto e aqueles provenientes dos levantamentos de georreferenciação no local onde o furto ocorreu que, devidamente conjugada com o depoimento da testemunha E... (então companheira do arguido) e com os elementos extraídos do processo n.º 94/10.0GDCBR da comarca da Pampilhosa da Serra, permite colocar o arguido, sem margem para grandes dúvidas, no local e madrugada em que ocorreu o furto.

10. É totalmente infrutífera e falaciosa a tentativa do arguido, ora recorrente, em querer antecipar por 24 h. a ocorrência do furto (madrugada do dia 18, em vez da madrugada do dia 19, conforme ficou provado), com apoio numa informação de serviço da Polícia Judiciária (cf. fls. 14), cuja data e hora (18.05.2010, pelas 9h15m) se deve a manifesto lapso, desde logo porque em oposição com os demais elementos dos autos como sejam, não só o relatório tático de inspeção ocular elaborado pela G.N.R. – que se deslocou ao local no dia 19.05.2010, pelas 15h40m, circunscrevendo a ocorrência do furto entre as 18h00m do dia 18 e as 8h25m do dia 19, com base nos elementos recolhidos no local (cf. fls. 17 a 25) – mas, relevantemente, a informação fornecida pela TMN, com a relação das chamadas de telemóvel efetuadas e recebidas nas coordenadas correspondentes ao local do furto (cf. fls. 53), de onde resulta a realização de várias chamadas entre os números de telemóvel utilizados pelo arguido, entre as 00h49m16s e as 3h53m58s do dia 19.05.2010 (cf. fls. 118 a 123), não havendo pois quaisquer dúvidas que o furto ocorreu na madrugada do dia 19, tal como ficou provado.

11. Se é verdade que os dados de georreferenciação telefónica não garantem o sítio exato onde o telemóvel opera e muito menos a identificação da pessoa que o utiliza, não é menos verdade que a circunstância dos telemóveis utilizados pelo arguido terem acionado célula da antena TMN que cobre a área onde ocorreu o furto, na madrugada imediatamente à sua descoberta, tudo conjugado com toda a restante factualidade apurada e com toda a demais prova produzida, levam à conclusão ineludível, em face das regras da experiência comum de vida, ter sido efetivamente o arguido quem, na verdade, se deslocou ao local do furto, naquele período temporal.

12. A correspondência constante entre a célula ativada pela comunicação efetuada pelo arguido com a que cobre a área onde ocorreu o furto, na madrugada imediatamente anterior à descoberta do furto é um forte indício de que o arguido esteve naquele local e ali efetuou comunicações, naquele período, o que conjugado com outros elementos (v.g. prova testemunhal) e ponderado à luz das regras da experiência comum, permitem concluir, sem margem para dúvidas, não se verificando qualquer alternativa razoável, se essa pessoa a autora do furto.

13. É uma “estranha coincidência” existirem comunicações do arguido contemporâneas à perpetração dos factos que acionaram células de comunicação que dão cobertura à zona onde esses factos ocorreram. Tanto mais estranha é se atender a que os factos terão ocorrido durante a noite, num lugar ermo, sem que o arguido tivesse prestado uma explicação credível e lógica, e sem que se vislumbre qualquer outro motivo para que o mesmo ali pudesse estar, estando assim, afastada, a nosso ver, à luz das regras da lógica e da experiência comum, qualquer dúvida de que tenha sido essa pessoa a autora do furto.

14. Considerando que o arguido se abrigou no seu direito ao silêncio e, portanto, sem dar qualquer explicação para o facto de ter efetuado comunicações telefónicas, naquelas concretas circunstâncias de espaço e de tempo, a única explicação plausível para a existência de tais comunicações, é que o arguido teve efetivamente intervenção nos factos pelos quais foi condenado, conforme o Tribunal a quo judiciosamente concluiu.

15. Se é verdade que os dados de georreferenciação não fazem prova direta da participação do arguido, ora recorrente, na consumação dos factos criminosos, não é menos certo que, conjugados com outros indícios, podem fundamentar, como fundamentaram, a convicção do julgador.

16. O Tribunal a quo fundou a sua convicção na circunstância de tais dados de georreferenciação virem precisamente a corroborar as declarações daquela testemunha, o que, segundo as regras da experiência comum e do normal acontecer, permitem concluir, para além de qualquer tipo de dúvida razoável, ter sido o arguido, ora recorrente, que, na madrugada do dia 19 de maio de 2010, se deslocou às instalações da sociedade ofendida e furtou os objetos nelas existentes, nos termos doutamente surpreendidos pelo tribunal a quo.

17. Que outra razão poderia haver para que o arguido se encontrasse no local do furto, a altas horas da madrugada, pouco tempo antes do momento que o mesmo foi descoberto.

18. Impõe-se, pois concluir, como fez o Tribunal a quo, que a existência de comunicações telefónicas efetuadas a partir dos telemóveis do arguido, naquelas concretas circunstâncias espácio-temporais em que as mesmas foram efetuadas, escasso tempo antes do mesmo ser descoberto, é indício seguro, conjugado com outros (o efetivo assalto das instalações da ofendida, sem que o arguido pudesse ter alguma outra razão para ali ter estado no período temporal que ocorreu o furto), para concluir, à luz das regras da lógica e da experiência comum, com certeza e para além de toda a dúvida razoável, que foi ele o autor do furto em questão, conforme o mesmo não deixou, aliás, de reconhecer perante a testemunha B... .

19. Não há, pois, margem para qualquer tipo de dúvida, quanto à autoria por parte do arguido dos factos pelos quais veio a ser condenado, não havendo, assim, que falar-se no princípio do in dubio pro reo, que, como é sabido, só autoriza uma decisão favorável ao arguido quando a dúvida seja concreta, real e positiva, que se apoia em factos concretos.

20. Todo o circunstancialismo em que se deram os factos, do qual se logrou fazer prova direta, nomeadamente a subtração das bobines de cabo elétrico, com fio de cobre do interior das instalações da ofendida, situada em local onde, na madrugada imediatamente anterior à descoberta do assalto foram efetuadas comunicações telefónicas a partir dos telemóveis do arguido, devidamente integrado, além do mais, pelo depoimento da testemunha B... , a quem o arguido havia reconhecido a autoria dos factos, levam à conclusão ineludível, em face às regras da experiência comum da vida, que foi efetivamente o arguido, quem, naquela madrugada, se deslocou às instalações da ofendida e levou as bobines de fio, nos termos doutamente surpreendidos pelo Tribunal a quo.

21. Fixada, exemplarmente, a matéria de facto, a condenação do arguido é a decorrência normal do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de furto qualificado, p.p. pelo art.ºs 203º, n.º 1 e 204º, nº 2, als. a) e e), por referência ao art. 202.º - b), todos do Código Penal.

22. Assim, bem andou o Tribunal ao condenar o arguido pela prática do crime de furto, não se mostrando por qualquer forma violadas normas jurídicas, designadamente as referidas pelo recorrente.

Nestes termos e nos demais de direito, negando provimento ao recurso, V.ªs Ex.ªs farão Justiça!

6. Remetidos os autos à Relação, o Exmo Procurador-Geral Ajunto proferiu parecer, no qual, acompanhando a resposta apresentada em 1.ª instância, de pronunciou no sentido de o recurso não merecer provimento.

7. Cumprido no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

       De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões, sem prejuízo das questões que importe oficiosamente conhecer ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso concreto cabe apreciar:

- Se ocorre a nulidade do acórdão;

- Não sendo o caso, se foi indevidamente valorado o depoimento de testemunha de ouvir dizer ao arguido; De qualquer modo se o dito depoimento não encontra sustentação em qualquer outro meio de prova fiável.

2. O acórdão recorrido

Vem consignado no acórdão recorrido [transcrição parcial]:

Factos Provados:

1. O arguido, durante a noite de 18 para 19 de Maio de 2010, dirigiu-se às instalações do armazém sito no Lugar designado de Moinho do Inferno, Prime, Fagilde, Fragosela, Viseu, pertença da sociedade “ G... , Lda”, de que é sócio gerente F... .

2. Aí chegado o arguido com a ajuda de um objeto não identificado, destruiu a fechadura da porta lateral direita do armazém, abrindo, dessa forma a porta, e, por aí, acedeu ao seu interior de onde retirou e levou consigo os seguintes objetos:

- bobines de cabo elétrico, com condutor elétrico em fio de cobre, cada uma com 100 a 200 metros de fio, no valor global de € 100 000,00;

os quais fez seus como era seu propósito.

3. Tais objetos encontravam-se no mencionado armazém pelo facto de aí se proceder à manufatura de estruturas em ferro que depois de ornamentadas com iluminação elétrica para posteriormente serem instaladas nas ruas de locais em festa.

4. O arguido, naquela data, dedicava-se ao comércio de sucatas e materiais ferrosos.

5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de fazer seu o material supra referido apesar de saber que não lhe pertencia, que não estava autorizado a entrar no armazém, que atuava contra a vontade do/a legitimo/a proprietário/a, causando-lhe prejuízo e obtendo assim um benefício a que não tinha direito.

6. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e que incorria em responsabilidade criminal.

7. Do CRC do arguido constam os seguintes antecedentes:

- No âmbito do PCS nº 56/06.2TANLS, o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 4.6.2007, na pena de 16 meses de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática de um crime de abuso de confiança p.p.p artigo 205.º do CP, por factos de 2000, suspensão essa depois prorrogada por mais um ano;

- No âmbito do PCS n.º 1938/05.4TDLSB, da comarca de Nelas, o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 22.10.2007, na pena de 120 dias de multa, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p.p.p artigo 105.º do RGIT, por factos de 2001;

- No âmbito do PCC n.º 9/10.6GCCBR, da comarca de Mangualde, o arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 4.2.2013, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p.p artigo 86º, nº 1, al. a) da Lei 5/2006, por factos de 5 de Maio de 2010.

8. O arguido esteve preso preventivo no âmbito do PCC 94/10.00GDCBR, da comarca de Pampilhosa da Serra, onde foi condenado, em primeira instância na pena única de seis anos e seis meses de prisão, pela prática de diversos furtos, encontrando-se a decisão em recurso.

9. Tem o 6.º ano de escolaridade.

10. É casado.

11. Reside com a mulher três filhos a companheira de um dos filhos e um neto.

12. Dedica-se quer à construção civil quer à recolha de sucata.

13. É diabético.

14. A família é beneficiária do RMI, no valor de 500 €.

Para além destes factos outros não se provaram, nomeadamente que o arguido tenha cortado uma rede de vedação do logradouro do armazém.

Convicção do Tribunal

Na fixação da matéria de facto o Tribunal teve em conta a totalidade da prova produzida a qual, depois de conjugada entre si e analisada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador permitiu fixar a mesma.

Desde logo, no que tange aos bens furtados e a forma como o agente do furto se introduziu no armazém em causa o Tribunal teve em conta o depoimento da testemunha F... , legal representante da ofendida, que mencionou, em audiência que, de manhã, quando o funcionário entrou ao serviço constatou que tinham desaparecido várias bobines de cobre, entre 50 a 60 que tinham entre 100 a 200 metros de cobre, no valor aproximado de 100 mil euros.

A testemunha mencionou ainda que o autor, ou autores, do furto entrou por uma porta lateral, a qual forçou, confirmando as fotografias de fls. 19.

A testemunha esclareceu ainda que a rede de proteção é a rede da A25, ou seja da autoestrada e não do armazém.

Assim, o depoimento desta testemunha conjugado com os elementos documentais de fls. 19 e seguintes, revelaram-se suficientes para o Tribunal concluir pela forma de atuação e bens furtados, mostrando-se tal depoimento perfeitamente credível, tendo, aliás a testemunha sido perentória em afirmar que desconhecia o autor do furto.

Além disso, a mesma não deduziu pedido de indemnização civil, tendo ainda sido perentória ao afirmar o valor do furto, aproximadamente 100 mil euros, esclarecendo que levaram várias bobines de cobre, fazendo uma limpeza ao armazém.

Contudo, do depoimento em causa não se extrai que o arguido foi o autor do furto, na medida em que a testemunha desconhece o seu autor.

Acontece que a este respeito foram inquiridas as seguintes testemunhas:

- B... , companheiro da sobrinha do arguido, que mencionou que na manhã a seguir ao furto o arguido, a quem vendia sucata, lhe disse para não passar na zona de Prime/Fragosela, pois tinha havido lá um assalto nas G... , onde se encontrava a GNR.

A testemunha acrescentou ainda que durante essa conversa o arguido lhe disse que tinha sido ele o autor do furto, chegando mesmo a constatar que existia muito material no estaleiro do arguido.

A testemunha quando confrontada com o motivo pelo qual o arguido lhe teria dito aquilo, esclareceu que transportava material, nomeadamente ferro e que por esse motivo é que o arguido lhe disse para não passar naquela zona, pois como não tinha guias do material transportado poderia ser apanhado pela GNR, acrescentando mais uma vez que o arguido lhe disse expressamente que tinha sido ele o autor do furto.

- C... , que apenas referiu que vendeu sucata ao arguido e que não se recordava de alguma vez o arguido lhe ter dito que tinha sido ele o autor do furto.

- D... , ex companheiro da irmã do arguido, e que confirmou ter ido, no dia a seguir ao furto, descarregar, com a testemunha B... , ferro ao arguido A... e que este disse ao B... , para não irem para a zona de Prime, pois tinha lá havido um furto e, como tal, para não andarem por ali ao ferro.

Com interesse, a testemunha mencionou ainda que depois o arguido e o B... se afastaram, não tendo ouvido mais nada.

Desde logo, do depoimento da testemunha B... resulta que o arguido terá sido o autor do furto em causa nos autos, tendo sido o próprio que o confidenciou à testemunha, sendo certo que dos outros depoimentos, nomeadamente do depoimento da testemunha D... não resulta que o arguido não terá tido tal conversa com a testemunha B... , antes pelo contrário, esta testemunha confirmou, pelo menos, que o arguido disse ao B... para evitarem a zona de Prime, onde tinha havido um furto, acrescentando, posteriormente que eles se afastaram e que não ouviu mais nada.

Assim, nada obsta à valoração, de acordo com a livre convicção, do depoimento da testemunha B... .

É certo que se tentou descredibilizar o depoimento desta testemunha, nomeadamente, por ser arguido em vários processos, inclusive por furto de cobre, por estar de relações cortadas com o arguido e pela circunstância de, alegadamente, os elementos do NIC terem pago um almoço às testemunhas aquando dos depoimentos das mesmas prestadas em inquérito.

Acontece que em audiência de julgamento foi inquirida a testemunha L..., militar da GNR do NIC de Viseu, que esclareceu que no âmbito da investigação solicitaram às operadoras de telemóveis que informassem que números tinham operado naquela zona do armazém, na noite do furto, tendo chegado ao número 96 (...) , o qual vieram a constatar, através dos carregamentos multibancos, que poderia pertencer a E... .

Inquirida esta testemunha, E... , em audiência de julgamento, a mesma confirmou ter sido companheira do arguido A... , que o número em causa era dela e que só ela e o companheiro tinham o multibanco da conta em causa, concluindo que se não foi ela que fez os carregamentos foi o arguido.

A isto acresce a circunstância de, em consequência dos elementos solicitados pelo Tribunal ao PCC nº 94/10.0GDCBR, onde o arguido também foi arguido resultar que o telemóvel com o número em causa foi apreendido precisamente ao arguido o qual era seu titular e foi por si utilizado entre Maio e Julho de 2010, tendo aliás estado sob escuta pouco depois dos factos ocorridos nestes autos (cf. fls. 382 dos autos-informação dada pelo Tribunal da Relação).

Como mencionamos e como nos disse a testemunha L... e resulta de fls. 44 e seguintes foi solicitado às operadoras, nomeadamente à TMN que informassem a localização celular dos telemóveis que atuaram na noite do furto precisamente no local onde o furto ocorreu, tendo esta operadora informado que o número 96 (...) atuou naquela zona, naquele período.

Como também já mencionamos o referido número era utilizado pelo arguido tendo sido apreendido ao mesmo.

Acontece que o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento, no exercício de um direito inquestionável, mas que, obviamente embora não o prejudique, não pode impedir o Tribunal de concluir, com a certeza exigida em sede de julgamento, que, atento o depoimento da testemunha B... e os elementos mencionados relativos ao número de telemóvel, o mesmo foi o autor dos factos em causa.

Na verdade, mesmo que se entendesse que o depoimento da mencionada testemunha por si só era insuficiente para permitir concluir pela autoria dos factos por parte do arguido, o certo é que o mesmo se encontra corroborado pelos elementos por nós aludidos, o que permite credibilizá-lo e concluir que o arguido foi o autor do furto.

O Tribunal valorou ainda o CRC do arguido e o relatório social junto aos autos.

O Tribunal não deu como provado que o arguido cortou a rede do armazém, uma vez que da prova produzida resultou que o armazém não tinha rede e que a rede que se fala é da A25.

3. Apreciação

a.

Nas conclusões não deixa o recorrente de aflorar a questão da nulidade do acórdão, decorrente de uma não adequada fundamentação da valia probatória atribuída à testemunha B... , concluindo: não tendo sido prestada tal fundamentação será nula a decisão que considerou tal meio de prova.

Significa, portanto, que em causa estaria a violação do artigo 374.º, n.º 2 do CPP, geradora da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma.

Tendo presente que o dever constitucional de fundamentação da sentença se basta com a exposição dos motivos de facto e de direito que suportam a decisão, bem como com o exame crítico das provas de que o tribunal se socorreu para formar a sua convicção, incluindo os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios de lógica, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formasse em determinado sentido, ou a que o julgador valorasse de determinada forma os meios de prova produzidos e analisados em audiência – [cf., entre muitos outros, o acórdão do STJ de 14.06.2007, proc. n.º 1387/07 – 5.ª], perscrutada a motivação da matéria de facto é manifesta a falta de razão ao recorrente.

Efetivamente e no que à dita testemunha concerne a decisão não deixa uma réstia de dúvida sobre a valia que foi atribuída ao respetivo depoimento, não escamoteando, embora, a tentativa de descredibilização de que foi alvo por parte da defesa.

Senão vejamos.

Diz-se, a certo passo, no acórdão: «Contudo, do depoimento em causa não se extrai que o arguido foi o autor do furto, na medida em que a testemunha desconhece o seu autor.

Acontece que a este respeito foram inquiridas as seguintes testemunhas:

- B... , companheiro da sobrinha do arguido, que mencionou que na manhã a seguir ao furto o arguido, a quem vendia sucata, lhe disse para não passar na zona de Prime/Fragosela, pois tinha havido lá um assalto nas G... , onde se encontrava a GNR.

A testemunha acrescentou ainda que durante essa conversa o arguido lhe disse que tinha sido ele o autor do furto, chegando mesmo a constatar que existia muito material no estaleiro do arguido.

A testemunha quando confrontada com o motivo pelo qual o arguido lhe teria dito aquilo, esclareceu que transportava material, nomeadamente ferro e que por esse motivo é que o arguido lhe disse para não passar naquela zona, pois como não tinha guias do material transportado poderia ser apanhado pela GNR, acrescentando mais uma vez que o arguido lhe disse expressamente ter sido ele o autor do furto.

(…)

Desde logo, do depoimento da testemunha B... resulta que o arguido terá sido o autor do furto em causa nos autos, tendo sido o próprio que o confidenciou à testemunha, sendo certo que dos outros depoimentos, nomeadamente do depoimento da testemunha D... não resulta que o arguido não terá tido tal conversa com a testemunha B... , antes pelo contrário, esta testemunha confirmou, pelo menos, que o arguido disse ao B... para evitarem a zona de Prime, onde tinha havido um furto, acrescentando, posteriormente que eles se afastaram e que não ouviu mais nada.

Assim, nada obsta à valoração, de acordo com a livre convicção, do depoimento da testemunha B... .

É certo que se tentou descredibilizar o depoimento desta testemunha, nomeadamente, por ser arguido em vários processos, inclusive por furto de cobre, por estar de relações cortadas com o arguido e pela circunstância de, alegadamente, os elementos do NIC terem pago um almoço às testemunhas aquando dos depoimentos das mesmas prestadas em inquérito.

Acontece que em audiência de julgamento foi inquirida a testemunha L... , militar da GNR do NIC de Viseu, que esclareceu que no âmbito da investigação solicitaram às operadoras de telemóveis que informassem que números tinham operado naquela zona do armazém, na noite do furto, tendo chegado ao número 96 (...) , o qual vieram a constatar, através dos carregamentos multibancos, que poderia pertencer a E... .

Inquirida esta testemunha, E... , em audiência de julgamento, a mesma confirmou ter sido companheira do arguido A... , que o número em causa era dela e que só ela e o companheiro tinham o multibanco da conta em causa, concluindo que se não foi ela que fez os carregamentos foi o arguido.

A isto acresce a circunstância de, em consequência dos elementos solicitados pelo Tribunal ao PCC nº 94/10.0GDCBR, onde o arguido também foi arguido resultar que o telemóvel com o número em causa foi apreendido precisamente ao arguido o qual era seu titular e foi por si utilizado entre Maio e Julho de 2010, tendo aliás estado sob escuta pouco depois dos factos ocorridos nestes autos (cf. fls. 382 os autos – informação dada pelo Tribunal da Relação).

Como mencionamos e como nos disse a testemunha L... e resulta de fls. 44 e seguintes foi solicitado às operadoras, nomeadamente à TMN que informassem a localização celular dos telemóveis que atuaram na noite do furto precisamente no local onde o furto ocorreu, tendo esta operadora informado que o número 96 (...) atuou naquela zona, naquele período.

Como também já mencionamos o referido número era utilizado pelo arguido tendo sido apreendido ao mesmo.

Acontece que o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento, no exercício de um direito inquestionável, mas que, obviamente embora não o prejudique, não pode impedir o Tribunal de concluir, com a certeza exigida em sede de julgamento, que, atento o depoimento da testemunha B... e os elementos mencionados relativos ao número de telemóvel, o mesmo foi o autor dos factos em causa.

Na verdade, mesmo que se entendesse que o depoimento da mencionada testemunha por si só era insuficiente para permitir concluir pela autoria dos factos por parte do arguido, o certo é que o mesmo se encontra corroborado pelos elementos por nós aludidos, o que permite credibilizá-lo e concluir que o arguido foi o autor do furto».

Da transcrição que se vem de fazer resulta óbvio haver-se o depoimento da testemunha em causa, já por via das explicações adicionais que lhe foram pedidas - e prestou -, já em função da produção de outra prova que, ainda que indireta e/ou sobre aspetos circunstanciais, lhe atribuem consistência, apresentado ao Coletivo como fiável, merecedor de crédito.

Não ocorre, pois, a invocada nulidade do acórdão.

b.

Coisa diferente é a da valoração do depoimento de testemunha na parte em que transmita ao tribunal o que lhe foi dito pelo arguido que, perante si, assumiu a prática dos factos.

A questão não é nova e tem suscitado diferentes entendimentos.

Assim, ao nível doutrinário, a maioria dos autores [cf., entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCP, págs. 363/364; Damião da Cunha, O Regime Processual de Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7, 3, Julho – Setembro, 1997, pág. 438; Frederico da Costa Pinto, Depoimento Indireto, Legalidade da Prova e Direito de Defesa, in Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, volume III, Coimbra Editora, pág. 1080 e ss.] rejeitam que possa ser considerado depoimento indireto, nos termos do artigo 129.º do CPP, aquele que se reporta ao que se ouviu dizer ao arguido, considerando mostrar-se o preceito reservado ao que se ouviu dizer a testemunha em sentido formal, ou seja nunca o mesmo seria aplicável quando a pessoa-fonte fosse o arguido.

Com efeito, impondo o n.º 1 do artigo 129.º um poder-dever de chamamento de pessoa determinada, como condição de validade do depoimento indireto, sendo essa pessoa determinada uma testemunha-fonte que, por sua vez, terá de prestar depoimento, o direito de defesa do arguido e as prerrogativas inerentes dificilmente se compatibilizariam com semelhante regime. Desde logo, pelo facto de o arguido não ter o dever de colaborar com o tribunal para a descoberta da verdade; por encerrar o seu estatuto direitos e deveres diferentes dos da testemunha e por não poder ser, simultaneamente, arguido e testemunha.

Diferente, porém, tem sido o caminho trilhado pela jurisprudência dos tribunais superiores como decorre do acórdão de 19.09.2012 [proc. n.º 438/07.2PBVCT.G1.S1], enquanto refere: «Não se ignora a controvérsia doutrinária sobre a valoração do depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer a arguido, sustentando alguns (…) que não vale como prova o depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao assistente e às partes civis porque as “pessoas” a que a ressalva do n.º 1 se refere são apenas as testemunhas e, sendo o artigo 129.º uma norma excecional, ela não pode, em prejuízo do princípio constitucional da imediação, ser aplicada analogicamente ao depoimento de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, assistente e partes civis. Às limitações do regime do depoimento indireto decorrentes do princípio constitucional da imediação acrescem, no caso de depoimento de ouvir dizer a arguido, as limitações decorrentes do direito constitucional do arguido ao silêncio, consagrado entre as garantias de defesa do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Não é essa, porém, a posição que, na matéria, o Tribunal Constitucional já adotou, no processo n.º 268/99, pelo acórdão n.º 440/99, de 08/97/1999, em situação paralela à subjacente ao recurso.

A questão de constitucionalidade de que conheceu foi enunciada, como segue:

«Recorda-se que a questão de constitucionalidade de que unicamente se vai conhecer é a que tem por objeto a norma constante do artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128º, n.º 1), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o tribunal pode valorar como meio de prova, sujeitando-o à sua livre apreciação, o depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata, quando este, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu direito ao silêncio. E, ainda assim, apenas na parte em que o acórdão recorrido valorou, apreciando-os livremente, os depoimentos das testemunhas mencionadas atrás, no ponto em que os seus depoimentos sejam mera reprodução de factos que elas não presenciaram e que ouviram da boca do referido A

Trata-se, pois, de uma situação com contornos absolutamente idênticos: valoração do depoimento de uma testemunha, na parte em que exclusivamente se baseia no que ouviu dizer a arguido, ou seja, de que essa testemunha não tem qualquer conhecimento direto, quando o arguido, no exercício do seu direito ao silêncio, não quis prestar declarações.

A fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional, quanto à questão enunciada, é a seguinte:

«No artigo 128.º, n.º 1, do Código de processo Penal, preceitua-se que “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto de prova”. E, no artigo 129.º, n.º 1, do mesmo Código, acrescenta-se: “Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”.

«Destes preceitos legais decorre que, embora o testemunho direto seja a regra, o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso – tal como se mostrou no acórdão n.º 213/94 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Agosto de 1994), para cuja fundamentação aqui se remete -, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due processo of law.

«Escreveu-se nesse aresto:

«Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do n.º 1 do artigo 129.º do Código de processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).

«A disciplina contida no referido artigo 129.º, n.º 1 – mostrou-se no mesmo aresto – também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório: de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination.

«Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor), se a sua inquirição não for possível, “por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”. Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indireto.

(…)

«No caso dos autos, existe impossibilidade absoluta, decorrente da própria lei, de interrogar o coarguido A., pois que este, no exercício do seu direito ao silêncio, se escusou a prestar declarações.

(…)

«Sendo este o quadro em que se verificou a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação, que, de resto, puderam ser contraditas pelos recorrentes; não havendo nenhum facto cuja prova tenha assentado exclusivamente nos referidos depoimentos indiretos; e sendo esses depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência; é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova (…).

«Há, assim, que concluir que o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um coarguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido».

À luz do entendimento exposto, o qual, ademais, encontra apoio na jurisprudência do Tribunal Constitucional, os depoimentos de ouvir dizer, que reproduzam conversas com arguidos, podem ser objeto de valoração, aplicando-se, neste caso, os princípios gerais de liberdade de prova e de livre valoração da prova – artigos 125.º e 127.º do CPP.

Na verdade, proteger o direito ao silêncio do arguido presente que, confrontado com o depoimento de ouvir dizer, no exercício de um seu direito, opta por não falar, de forma a que, sem mais, resulte inviabilizada a valoração do depoimento da testemunha [de ouvir dizer ao arguido] afigura-se-nos, com o devido respeito, desproporcionado tendo em conta os vários interesses em presença no processo criminal.

Como, a propósito, escreve Adérito Teixeira, in Depoimento Indireto e Arguido [Revista CEJ, n.º 2, 1.º Semestre, Centro de Estudos Judiciários, 2005, pág. 169] «sabendo o arguido que está inocente e desejando, por isso mesmo, que se alcance a verdade, humanamente é difícil conceber uma hipótese em que aquele deixe correr o marfim, sem intervir, sem procurar esclarecer o tribunal da desfaçatez da imputação … Mais frequente a situação de o arguido, sabendo da sua responsabilidade criminal (e é inequívoco que ele verdadeiramente sabe), é natural que a sua postura e interesse sejam opostos à prossecução da verdade e, bem assim, à produção da melhor prova disponível. E como a melhor prova disponível seria a sua audição, enquanto pessoa-fonte de declarações pretensamente incriminatórias que alguém diz ter ele proferido, manda o seu interesse que não fale e, assim, o seu silêncio teria por virtualidade inibir a utilizabilidade da prova indireta e por eventual consequência a formação de uma verdade, naturalmente formal, as mais das vezes contrária à convicção do julgador».

Na realidade, o contraditório, podendo sempre efetivar-se - no caso de impossibilidade de inquirição da testemunha-fonte, onde se inclui a impossibilidade absoluta, por via do exercício do direito ao silêncio, de ouvir o arguido, sempre que este foi a razão de ciência da testemunha de ouvir dizer - no contra-interrogatório da testemunha de ouvir dizer, não resulta irremediavelmente comprometido.

Perfilhamos, assim, a posição no sentido de que o depoimento de ouvir dizer a arguido, que, estando presente, ainda que se remetendo ao silêncio, tem toda a possibilidade de exercer o contraditório, é suscetível de ser valorado, de acordo os princípios gerais acima enunciados respeitantes à prova.

É claro que a valoração do depoimento de ouvir dizer requer alguma prudência, devendo, sempre que possível, encontrar sustentação noutros meios de prova, sejam diretos ou indiretos, encontrando-se, também ele, sujeito ao crivo da livre apreciação, não dispensando, contudo, nas palavras de Figueiredo Dias, a tal convicção objetivável e motivável capaz de se impor aos outros – [cf. Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1981, págs. 204/205].

O problema reconduz-se, pois, à fiabilidade que o depoimento de ouvir dizer ao arguido, em cada caso, inspira.

Retomando a situação em apreço nos autos, podemos, assim, assentar, ao invés do que defende o recorrente, por não ocorrer, sem mais, uma proibição de valoração do depoimento de ouvir dizer ao arguido, sempre que este, estando presente, optando, embora, por não falar, o possa contraditar, resultando, deste modo, salvaguardado o cross examination, garantindo-se, do mesmo passo, um processo regular e justo [due process of law].

Aqui chegados, impõe-se reconhecer, na parte em que diz haver-lhe o arguido transmitido ter sido ele o autor do furto, a natureza indirecta do depoimento da testemunha B... .

Com efeito, não sendo a conversa que o arguido teve consigo o facto relevante para o processo, mas antes a de saber se foi aquele quem subtraiu as coisas em causa, parece inegável tratar-se de um depoimento de ouvir dizer, porquanto relativamente à ação típica não possui a testemunha conhecimento direto, fundando-se a sua razão de ciência naquilo que ouviu dizer ao arguido [cf., por todos, o acórdão do TRG de 11.02.2008, proc. n.º 2181/07, CJ, Ano XXXIII, T. I, pág. 296].

Ora, em face da tentativa de desvalorização, ensaiada pelo recorrente, do dito depoimento, v.g. por alegadamente sugerido, não deixámos de proceder à audição do correspondente registo áudio, donde decorre que logo no início da inquirição, quando questionado sobre se tinha alguma coisa a ver com os factos, de imediato reagiu, imputando-os ao arguido. E, insistentemente, perguntado, no decurso da audiência, inclusive pela defesa, sobre se foi com base na advertência levada a efeito por aquele no sentido de não se deslocar para a zona de Prime, porque tinha lá ocorrido um assalto nas « G... », que concluiu ter sido o arguido a praticá-lo, foi assertivo, na resposta, afirmando, repetidamente, que o aviso lhe foi feito – explicando, de forma plausível, a razão de ser do mesmo, qual seja o facto do arguido saber que circulava sem guias de transporte do material, circunstância que, por via da presença no local de agentes da GNR, desaconselhava que passasse junto às instalações da dita empresa, sendo, por isso, prudente ir à volta pela estrada de Alcafache – mas que, logo na ocasião, o arguido lhe transmitiu haver sido ele o autor do furto às instalações da empresa em questão.

Por outro lado, pese embora ter dado a conhecer encontrar-se, desde há cerca de três meses, de relações cortadas com o arguido, é possível detetar uma significativa contenção no seu depoimento, nomeadamente quando refere não ter conhecimento sobre se os artigos furtados eram, ou não, os que aquele, no momento em que lhe fez a advertência - na quinta onde o arguido exercia a atividade de sucateiro –, tinha nas instalações [Não posso afirmar uma coisa que não sei! (sic.)].

O certo é que no decurso de um depoimento nada exuberante – contido, mesmo -, do qual não ressuma um propósito gratuito de incriminar o arguido, foi sistematicamente confrontado sobre as suas palavras, enquanto se reportou à confissão daquele, o que o levou a afirmar: Se estou a dizer que ele disse é porque disse! (sic.)

Acresce que, também, a testemunha D... , que na ocasião acompanhou a testemunha B... à dita quinta, se referiu ao aviso do arguido no sentido de não irem para a zona de Prime por causa do assalto, adiantando, contudo, que ao pé de si o mesmo não disse que tinha sido ele a praticá-lo, esclarecendo, porém, que enquanto descarregava o ferro eles - reportando-se ao arguido e ao B... – afastaram-se e estiveram a conversar!

Neste cenário nenhuma razão se deteta para que o dito depoimento não se revelasse – como se veio a revelar – fiável, logo credível, aos olhos do Coletivo.

Para além disso, não deixa o acórdão de convocar outros meios de prova, como seja o depoimento da testemunha E... – relevante quanto aos carregamentos do telemóvel – e a informação fornecida pela operadora TMN [fls. 118 a 123] relativamente às chamadas efetuadas e recebidas nas coordenadas correspondentes ao local do furto, donde resulta a realização de várias chamadas [entre as 00h49m16s e as 3h53m58s do dia 19.05.2010] entre os números de telemóvel utilizados pelo arguido, elementos que por o «colocarem», na noite em questão, junto às instalações assaltadas, conferem sustentação ao depoimento de ouvir dizer ao arguido.

E, como realça o Digno Procurador, sendo certo que os dados de georreferenciação telefónica não garantem o sítio exato onde o telemóvel opera, não é menos verdade a circunstância dos telemóveis utilizados pelo ora recorrente terem acionado célula da antena da TMN que cobre a área onde ocorreu o assalto - isto na madrugada em que o mesmo se verificou – constituindo, assim, um forte e sério indício da sua presença no local.

Pertinente, ainda, a resposta ao recurso enquanto aduz: «Por outro lado, é inquestionável que o número de telemóvel (96 (...) ) que acionou a célula da antena que cobre a área onde ocorreu o furto, na madrugada imediatamente anterior à sua descoberta está inequivocamente associado ao arguido, bem como aquele com quem foram mantidos os contactos telefónicos naquela madrugada (961522459), conforme resulta, não só dos elementos extraídos do proc. 94/10.0GDCBR da Comarca da Pampilhosa da Serra – de onde se extrai que aquele mesmo número de telemóvel (96 (...) ) esteve sob escuta ainda nesse mês de maio de 2010, com a interceção das conversações mantidas pelo arguido, em cuja posse viria a ser posteriormente apreendido -, como também dos elementos bancários de fls. 181 a 183 – dos quais se obtém que foram efetuados carregamentos de multibanco naquele número de telemóvel (961522459) de uma conta titulada pela companheira do arguido que, em julgamento, esclareceu terem sido efetuados pelo arguido (…)».

Sem surpresa, embora, e para o caso do tribunal não sucumbir à alegada incerteza dos dados de georreferenciação telefónica, avança o recorrente argumentando com o facto de ter na zona familiares, não sendo, por isso, de estranhar que por ali andasse. Defesa, contudo, tendo em conta as caraterísticas do local – um ermo, isolado - [cf. relatório fotográfico junto a fls. 19 a 25 dos autos], nada crível e de todo inverosímil se conjugada com as horas a que se reportam os registos relativos aos números de telemóveis [entre as 00h49m16s e as 3h53m58s do dia 19.05.2010].

Perante tal estado de coisas, como transparece do acórdão, o Coletivo não teve dúvidas sobre a responsabilidade do arguido – cuja estreita relação entre a atividade, na ocasião, por si desenvolvida e a natureza dos objetos subtraídos, não pode ser de todo ignorada - nos factos, dúvidas, essas, que, ponderada a prova - no seio da qual cabe, naturalmente, a prova por inferência, as presunções naturais que permitem ao julgador, através de um processo lógico-intelectual, fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinando facto não diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além da dúvida razoável, de um facto conhecido -, não se colocam a este tribunal.

Ainda destituído de fundamento surge a tentativa de aproveitamento do lapso constante da Informação de Serviço da Polícia Judiciária [cf. fls. 14] ao reportar-se à comunicação dos factos, situando-a às 9h15m do dia 18 de Maio de 2010, quando o Relatório Tático de Inspeção Ocular indica como data da ocorrência a noite de 18 para 19 de Maio de 2010 e, sobretudo, quando a testemunha F... , legal representante da empresa, sem o mínimo de hesitação, se reportou à noite de 18 para 19 de Maio de 2010, localizando, assim, temporalmente o assalto.

Igualmente sem sustentação a indicação, como violadas, das normas dos artigos 356.º, n.º 7 e /ou 345.º, n.º 4, ambos do CPP, já porque não se assiste à valoração de depoimento de órgão de polícia criminal que tenham recebido declarações de leitura não permitida, tão pouco à de pessoa que, a qualquer título, tenha participado na sua recolha, já porque em momento algum se coloca, no caso, o problema da valoração de declarações prestadas por co-arguido.

Inócuo, também, por via das consequências – que o recorrente bem demonstra conhecer - o alegado desrespeito do prazo estabelecido para a realização do inquérito.

Incompreensível, ainda, o apelo, feito em sede de motivação, aos depoimentos prestados durante o inquérito, quando foi precisamente o arguido que, ao opor-se à leitura dos mesmos [de todos, cuja leitura foi requerida] no decurso da audiência de julgamento, inviabilizou qualquer hipótese de valoração.

Concluindo: Não sendo de afastar a valoração, de acordo com os princípios gerais enunciados nos artigos 125.º e 127.º do CPP, do depoimento da testemunha de ouvir dizer ao arguido; apresentando-se, no caso, o mesmo fiável, credível, colhendo, ainda, à luz das regras da experiência comum, arrimo na demais prova, incluindo indiciária, produzida e analisada em sede de audiência de julgamento; tendo-se o recorrente eximido ao cumprimento, na dimensão legalmente exigida, quer nas conclusões, quer na correspondente motivação, dos ónus de impugnação especificada [cf. artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do CPP]; não se assistindo à valoração de prova proibida, tão pouco se identificando os vícios relativos à confeção técnica da decisão, apreensíveis a partir do seu texto, sequer que na dúvida – a qual manifestamente não se colocou ao Coletivo, não vendo este tribunal motivo para que assim devesse ter sido – os julgadores hajam decidido contra o arguido, só resta, na parte colocada em crise no recurso, confirmar o acórdão recorrido, do qual não resulta haverem sido violadas as normas convocadas.

III. Decisão

Termos em que deliberam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 [quatro] Ucs – artigos 513.º e 514.º do CPP e artigo 8.º do RCP.

Coimbra, 1 de Junho de 2016

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)