Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/08.2TBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PENHORA
REDUÇÃO
ISENÇÃO
SUBSISTÊNCIA ECONÓMICA
EXECUTADO
AGREGADO FAMILIAR
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO, CASTELO BRANCO, INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 738.º N.º 6 DO NCPC
Sumário: 1. O artigo 738.º nº 6 do Código de Processo Civil prevê excepcionalmente a possibilidade de redução ou mesmo de isenção de penhora, quando a penhora efectuada afecte a subsistência condigna do executado e do seu agregado familiar.
2. Para os efeitos do disposto no artigo 738.º n.º 6 do NCPC não podem ser consideradas as despesas dos executados com o auxílio monetário que prestam aos filhos desempregados que não fazem parte do seu agregado familiar.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

Na sequência das penhoras incidentes sobre as respectivas pensões de reforma, vieram os Executados, A... e B... , apresentar o requerimento com a referência n.º 215756, nos termos do qual vêm requerer que se decrete a isenção de penhora por um ano, da parte penhorável da pensão dos Executados e, após tal período, reduzir a penhora a 1/6, nos termos do artigo 738.º, n.º 6 do Código de Processo Civil.

Alegam, em síntese, que, sem prejuízo do valor das respectivas pensões de reforma auferidas, as quais, mesmo após a penhora sobre as mesmas incidente, ascendem ao valor total de € 2 098,48 (dois mil e noventa e oito euros e quarenta e oito cêntimos), é com esse valor que têm que fazer face, por um lado, às despesas mensais com água, electricidade e gás, vestuário e alimentação, para além de fazerem face a outros compromissos bancários assumidos.

Salientam ainda que um dos aludidos compromissos bancários foi assumido por um dos seus filhos, o qual não terá condições para suportar o respectivo pagamento.

Finalmente, referem ainda auxiliar os seus dois filhos e respectivos agregados familiares, na medida em que se encontram ambos desempregados.

Posteriormente, vieram ainda esclarecer que o seu agregado familiar é apenas constituído por ambos os Executados, sem prejuízo de reiterarem o auxílio facultado aos seus filhos.

Notificada, veio a Exequente, D... , manifestar a sua oposição ao requerimento apresentado pelos Executados, alegando, em síntese, por um lado, o valor das pensões de reforma auferidas pelos Executados, salientando desde logo o valor das mesmas, quando concatenado com o valor da retribuição mínima mensal garantida em vigor em Portugal; por outro lado, salienta a sua qualidade de credora dos Executados, sendo que, nessa medida, deverá ser igualmente ressarcidas dos valores em causa em paridade com os demais credores dos Executados.

Termina salientando que a penhora efectuada respeita os ditames legais estabelecidos, pelo que se deverá manter nos exactos termos em que foi efectuada.

Após o que, conclusos os autos à M.ma Juiz, foi proferida a decisão de fl.s 35 a 39, na qual se indeferiu o requerido pelos exequentes, com os seguintes fundamentos:

“Nos termos do artigo 735.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem corresponder a 20%, 10 % e 5% do valor da execução (para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação), consoante e respectivamente, este se compreenda na alçada da 1.ª instância, a exceda e seja inferior a quatro vezes a alçada do tribunal da Relação ou seja superior a este último valor.

Por seu turno, estipula o artigo 738.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que «[a] impenhorabilidade prescrita no número 1 tem como limite (…) mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional», o qual, actualmente, ascende a € 505,00 – cf. artigos 2.º e 4.º, n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de Setembro –, esclarecendo ainda os n.ºs 1 e 2 do citado artigo 738.º do Código de Processo Civil que são impenhoráveis dois terços da parte líquida das, inter alia, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, ou prestações de qualquer outra natureza que assegurem a subsistência do executado, sendo que, para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios.

Anote-se ainda que, nos termos do n.º 6 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, ponderando a natureza e montante do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excepcionalmente, e a requerimento daquele, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e, mesmo, por período não inferior a um ano, isentá-los de penhora.

Cumpre salientar que a possibilidade de redução ou de isenção de penhora se destina a salvaguardar o núcleo de dignidade na subsistência do Executado e respectivo agregado familiar, quando o mesmo se vê perante a penhora de rendimento mensalmente auferido, em conformidade com os ditames legais.

Com efeito, o plasmado no artigo 738.º do Código de Processo Civil visa possibilitar ao Executado trazer aos autos elementos que, após análise, importem a conclusão de que a penhora efectuada, ainda que sem qualquer violação dos preceitos legalmente fixados, afecta a capacidade de subsistência condigna daquele agregado familiar.

Da análise do requerimento apresentado pelos Executados e, bem assim, das despesas suportadas, e pelos mesmos comprovadas, cumpre desde logo anotar que invocam ficar com um rendimento mensal disponível no valor de € 2 098,48 (dois mil, e noventa e oito euros e quarenta e oito cêntimos), valor com que suportam as despesas normais para prover aos encargos do agregado relacionadas com água, electricidade, gás, alimentação e vestuário, e com compromissos pessoalmente assumidos perante entidades terceiras, para além de auxiliarem os seus filhos e respectivos agregados familiares.

Anote-se, por outro lado, que, nos termos do artigo 601.º do Código Civil, pelo cumprimento das obrigações assumidas, respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sendo ainda de sublinhar que, em conformidade com o disposto no artigo 604.º do mesmo diploma legal, não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para satisfação integral dos débitos.

De tudo quanto se expôs, cumpre salientar que, por um lado, o plasmado no artigo 738.º do Código de Processo Civil visa apenas a possibilidade de redução ou mesmo de isenção de penhora, quando a penhora efectuada afecte a subsistência condigna do executado e do seu agregado familiar – o que no caso dos autos não se pode ter como verificado na medida em que o agregado dos Executados apenas é constituído pelos próprios.

Em segundo lugar, afectados apenas se mostram os rendimentos próprios de ambos os Executados, sendo novamente de sublinhar que, após concretização das penhoras, os mesmos ficam com disponibilidade sobre valor superior a três vezes a retribuição mínima mensal garantida. Por conseguinte, em face do exposto, resulta dos autos que, por um lado, os limites legalmente determinados pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, se mostram respeitados, e, bem assim, que o valor que permanece na disponibilidade dos Executados permite salvaguardar a capacidade de subsistência consigna dos mesmos.

Por outro lado, e sem prejuízo dos mesmos alegarem suportar compromissos assumidos pelos seus filhos e auxiliar os respectivos agregados familiares, anote-se que o plasmado no artigo 738.º do Código de Processo Civil; mormente no seu n.º 6, visa salvaguardar a capacidade de subsistência condigna dos próprios Executados e respectivo agregado familiar, sendo esta uma excepção expressamente plasmada pelo legislador em que o direito do Exequente deverá ceder na medida do necessário em face do direito reconhecido aos Executados.

Como excepção consagrada legalmente, em face, desde logo, de ditames com raiz constitucional, a mesma não pode ter, s.m.o., a amplitude pugnada pelos Executados quando alegam a necessidade de auxiliar financeiramente os seus filhos e respectivos agregados.

Cf. salientado supra, a lei prevê a contracção do direito do Exequente em ver o seu crédito ressarcido apenas quando se constate que a subsistência condigna dos Executados e respectivo agregado esteja afectado, e também apenas na medida do necessário.

Destarte, pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, indefere-se o requerido pelos Executados.

Notifique.”.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os executados A... e B... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. Despacho, aqui junto a fl.s 2), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1ª Os recorrentes viram indeferida a sua pretensão de isenção de penhora por um ano da parte penhorável da pensão dos requerentes, após tal período reduzir a penhora da pensão a um sexto do vencimento líquido

2ª Considerou a meritíssima juiz “a quo” que resulta dos autos que, por um lado, os limites legalmente determinados pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, se mostram respeitados, e, bem assim, que o valor que permanece na disponibilidade dos Executados permite salvaguardar a capacidade de subsistência condigna dos mesmos.

3ª Previamente ao despacho recorrido ter sido proferido, consideram os recorrentes que a meritíssima juiz “a quo” deveria ter designado data para inquirição das testemunhas arroladas.

4ª O requerimento de isenção ou redução da penhora pode ser apresentado em qualquer momento, por nele além do mais se conter, uma matéria de direitos fundamentais, a salvaguarda do rendimento mínimo indispensável a uma sobrevivência condigna

5ª Entendem os recorrentes ao contrário da meritíssima juiz “a quo” que nos termos e para os efeitos do art.738º n.º 6 do CPC devem ser consideradas, in casu, as despesas dos executados com o auxílio monetário aos filhos desempregados, apesar de não fazerem parte do seu agregado familiar.

6ª Os ora recorrentes nunca irão deixar de auxiliar os filhos e netos, pelo que a manter-se a penhora nos moldes em que foi decretada, chega-se à conclusão de se estar perante uma penosa situação económica dos executados e do seu agregado familiar.

Nestes termos, requerem a V.Exªs se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência deferir o requerimento dos recorrentes.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigo 635, n.º 4 e 639.º, n.º1, do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se para os efeitos do disposto no artigo 738.º, n.º 6, do NCPC, devem ser consideradas as despesas dos executados, com o auxílio monetário que prestam aos filhos desempregados, apesar de estes não fazerem parte do seu agregado familiar.

            É a seguinte a matéria de facto dada como provada:

a) O Executado, A... , aufere, mensalmente, € 2 846,67 ilíquidos, a título de pensão de reforma.

b) A Executada, B... , aufere, mensalmente, € 1 550,50 ilíquidos, a título de pensão de reforma.

c) Os Executados, A... e B... , celebraram com o C... S. A., em 10 de Janeiro de 2012, um contrato de empréstimo, pelo valor de € 22.500,00, com a finalidade de liquidação da Conta Gestão de Tesouraria na conta n.º 292/5877927, com o prazo de sete anos, vencendo-se em 10 de Janeiro de 2019.

d) Em 17 de Novembro de 2014, os Executados pagaram € 79,40 aos Serviços Municipalizados de Água, Saneamento e Resíduos Urbanos da Câmara Municipal de Castelo Branco.

e) Em 15 de Dezembro de 2014, os Executados pagaram € 232,21 por conta de consumo de Electricidade.

f) Em 05 de Janeiro de 2015, foi efectuada a penhora das pensões de reforma auferidas pelos Executados, A... e B... .

g) O agregado familiar dos Executados é apenas constituído pelos próprios.

Se para os efeitos do disposto no artigo 738.º, n.º 6, do NCPC, devem ser consideradas as despesas dos executados, com o auxílio monetário que prestam aos filhos desempregados, apesar de estes não fazerem parte do seu agregado familiar.

Como resulta do exposto, circunscreve-se o objecto do presente recurso à questão da abrangência da excepção conferida pelo n.º 6 do artigo 738.º do NCPC.

Na decisão recorrida entendeu-se que, em face da natureza excepcional de tal norma, a mesma só se deve aplicar tendo em vista as necessidades do executado e do seu agregado familiar.

Por seu turno, os recorrentes pretendem estendê-la às necessidades dos seus filhos desempregados, a quem, referem, ajudar monetariamente, apesar de não integrados no seu agregado familiar.

Conforme resulta do preceito em referência, foi a seguinte a opção do legislador:

“Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excepcionalmente e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora.”.

Como se acentua no normativo em causa, trata-se de um benefício concedido ao executado, com carácter de excepcionalidade, a conceder, desde que ponderados os pressupostos nele definidos, ou seja:

- a ponderação do montante e natureza do crédito exequendo, por comparação com as necessidades do executado e do seu agregado familiar, tudo com vista, como corolário do disposto nos seus n.os 1 a 3, a salvaguardar uma existência com o mínimo de dignidade do executado e seu agregado familiar.

Como se refere no Acórdão desta Relação, de 21/10/2014, Processo n.º 434/13.0T6AVR.C1, disponível no respectivo sítio do itij “Tal faculdade excepcional, depende de ponderação judicial, tendo o executado requerente que alegar e provar que as necessidades sua e do seu agregado familiar merecem sobrepor-se ao interesse do credor na satisfação do seu crédito, cuja origem e montante são igualmente factores a sopesar.”.

Efectivamente, a satisfação do interesse do credor (embora mitigado ou o possa ser, com a possibilidade conferida ao devedor, pelo dispositivo em análise), também tem guarida constitucional, ao fazer parte da tutela da propriedade privada, tal como decorre do disposto no artigo 62.º, n.º 1, da CRP.

Também, Rui Pinto, in Manual Da Execução E Despejo, 1.ª, Edição, Coimbra Editora, Agosto de 2013, de pág.s 515 a 517, acentua que a faculdade conferida pelo artigo 738.º, n.º 6, do NCPC, tem um carácter excepcional e que os factores que determinam a decisão do juiz são a natureza e o montante da dívida exequenda e as necessidades do executado e do seu agregado familiar.

É aqui que reside o cerne deste recurso, no sentido de que não se verifica este último requisito: necessidades dos executados e do seu agregado familiar, mas sim de seus filhos, que não fazem parte do agregado familiar dos executados – cf. al. g), dos factos provados.

Não se nega que é dever de todos os pais ajudar os seus filhos, na medida das necessidades e rendimentos de cada um e é meritória a intenção dos executados em ajudar seus filhos, se estes disso necessitam.

Só que tal não pode servir como pretexto para que os executados não paguem (ou não o façam quando para tal solicitados) as suas próprias dívidas em benefício das dos seus filhos.

A “benesse” concedida pelo artigo 738.º, n.º 6, do NCPC, dada a sua excepcionalidade, só pode ser concedida nos estritos limites dos parâmetros nele definidos, o que exige que se trate das “necessidades do executado e do seu agregado familiar” e não de quaisquer outras, por mais meritórias que sejam. Foi esta a opção do legislador e não pode ser considerada e concedida, para além da previsão ali, saliente-se, excepcionalmente, considerada e concedida.

Assim, tal como considerado na decisão em recurso, não pode proceder a pretensão dos executados, ora recorrentes.

De resto, em conformidade com o disposto no artigo 11.º do Código Civil, o carácter excepcional da norma em apreço, impede que dela se faça uma aplicação, por analogia, nela abarcando as necessidades de outrem que não o executado ou o seu agregado familiar.

Como refere Rodrigues Bastos, Das Leis, sua Interpretação e Aplicação, edição do autor, 2.ª edição, 1978, a pág.s 45 e 46:

“As normas excepcionais são aquelas que consagram, para certos casos, soluções contrárias às dos princípios gerais de direito admitidos em determinado sistema.

(…)

A regra expressa neste artigo significa que não é permitido ao intérprete criar regras excepcionais sem disposição legal que as imponha.

Tais normas podem, porém, ser interpretadas extensivamente.

É que a interpretação extensiva limita-se a esclarecer o pensamento da lei em face de uma expressão demasiado restrita, sem intentar aplicá-la a casos que ela não previu, como já sucede no processo analógico.”.

Ora, aplicar o disposto no artigo 738.º, n.º 6, do NCPC, a uma situação, como a dos autos, em que se pretende abarcar as necessidades de pessoas que não fazem parte do agregado familiar do executado, quando na mesma tão só se prevê a sua aplicabilidade às necessidades do executado e do seu agregado familiar, é aplicá-la a casos nela não previstos, para além da sua expressa previsão, ou seja, uma aplicação por analogia, que a lei não consente.

Assim, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, pelos apelantes.

            Coimbra, 20 de Outubro de 2015.

           

Arlindo Oliveira (Relator)
Emidio Francisco Santos
Catarina Gonçalves