Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
767/11.0TACTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO
SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE PROFISSÃO
DE FUNÇÃO E DE ACTIVIDADE
CONDIÇÕES DE APLICABILIDADE DA MEDIDA DE COACÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 66.º DO CP; ARTS. 198.º, 204.º E 191.º, DO CPP
Sumário: I - Com a medida de coacção prevista no artigo 199.º do CPP pretende a lei acautelar a eficácia punitiva da sanção acessória prevista no artigo 66.º do CP.

II - Por conseguinte, aquela medida cautelar tem por objecto a função, profissão ou actividade no âmbito da qual o arguido manifestou indignidade ou desadequação para as exercer e não qualquer acto concreto no âmbito do seu específico quadro profissional.

III - A aptidão dos factos à aplicação da sanção acessória do artigo 66.º do CP não determina necessariamente a imposição da medida de coação correspondente, ou seja, a regulada no artigo 199.º do CPP, uma vez que, para tanto, é indispensável a verificação de algum dos requisitos elencados no artigo 204.º, a par das condições descritas no artigos 191.º, n.ºs 1 e 2 (ambas as normas do último dos dois diplomas legais referidos).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I – Relatório

No processo supra referido, foi, em 30.06.2014, deduzida acusação contra o arguido A... , melhor identificado nos autos, fls. 32 e seg., que lhe imputou factos integradores de um crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário; p.p. pelo art.º 368º do C. Penal; e, um crime de violação de segredo de justiça, p.p. pelo art.º 371º nº1 do C. Penal.

Entendendo a que ao arguido devia ser aplicada, em caso de condenação, a pena acessória de proibição de exercício de função, a que se reporta o art.º 66º do C. Penal, na mesma data e na mesma peça, o Ministério Público, requereu a aplicação ao arguido da medida de coacção de Proibição do exercício da função de oficial de justiça com a respectiva comunicação ao COJ, além de TIR.

Com vista à aplicação da medida de coacção, foi o arguido ouvido em declarações pelo Ex.mo Juiz de Instrução em 11de Julho de 2014, que nesse mesmo dia proferiu o seguinte

Despacho

“ Compulsados os autos, resulta indiciado que o arguido terá cometido os factos descritos na acusação e que se reconduzem à prática dos crimes de favorecimento pessoal praticado por funcionário e de violação de segredo de justiça, punidos respectivamente nos art.º 368º, 371º nº1 e 66º, todos do C. Penal, que abrange a pena acessória do exercício de funções.

O processo foi instruído e tramitado no “DIAP” de Coimbra, a acusação data do passado dia 30/06/2014, encontrando-se a decorrer o prazo para a abertura de instrução, impondo-se no entanto apreciar se a medida de coacção “TIR” a que o arguido se encontra sujeito deve ou não ser agravada para a proibição do exercício da função de Oficial de Justiça com a respectiva comunicação ao “COJ”, como promovido, ou se lhe deve ser aplicada medida diferente.

Aqui dando por reproduzidos os fundamentos que constam da promoção em causa diremos o seguinte:

Nos termos do art.º 212º do CPP, as medidas de coacção podem ser revogadas, substituídas ou alteradas sempre que a alteração das condições que estiverem subjacentes à sua aplicação o justifiquem.

Isto porque, atentos os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, as medidas de coacção devem salvaguardar as exigências cautelares que o caso requerer e respeitar a proporcionalidade face à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Diga-se ainda que, nos termos do art.º 204º do CPP nenhuma medida de coacção à excepção do TIR” pode ser aplicada se no momento da aplicação da medida não existir perigo fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou ainda se existir perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, o que deve ser avaliado em razão da natureza das circunstancias do crime ou da personalidade do arguido.

Se é certo que os crimes em causa são crimes graves e para os quais a sociedade em geral e o sistema de Justiça apresentam, e devem apresentar, pouca tolerância, é igualmente verdade que nesta sede apenas se apreciam fundamentos de natureza cautelar e não fins pedagógicos de punição como terá de ser necessariamente alcançado em sede de decisão final.

Quanto aos requisitos gerais em concreto:

(…)

            No entanto, no que concerne ao perigo de continuação da actividade criminosa não podemos olvidar que este arguido tem um acesso privilegiado aos presentes autos pois que exerce funções no juízo o mesmo se encontra.

No mesmo juízo corre o processo nº 953/10.0JACBR, que esteve na origem dos factos alegadamente praticados pelo arguido.

É verdade que as suas funções lhe permitem aceder, consultar, movimentar os processos em causa permitindo-lhe um acesso que a grande generalidade dos arguidos não tem.

Por outro lado, o processo já é público, não está em segredo de justiça, e, em nosso entendimento, nada de superveniente permite concluir que haja um perigo da continuação da actividade criminosa pois não se conhecem incidentes similares desde que o arguido terá praticado os factos até à presente data, sendo que não deixou de trabalhar nestes 2 anos, com excepção do período de 90 dias, entre Outubro de 2013 e Janeiro de 2014, em virtude de sanção disciplinar aplicada pelo “COJ” a qual é do meu conhecimento funcional.

Ainda assim, se é certo que o perigo da continuação da actividade criminosa ou o perigo de perturbação da instrução não são muito patentes mormente pelo tempo decorrido desde a prática dos factos, é verdade que não deixam de existir riscos pelos fundamentos já invocados.

Entendemos contudo que tais perigos ficam acautelados com a proibição do exercício de funções ou seja com a proibição de movimentar, consultar ou qualquer forma de aceder e tramitar os presentes autos e bem assim o processo nº 953/10.0JACBR e respectivos apensos.

De modo a colmatar ainda quaisquer riscos que se venham a verificar, uma vez que o arguido se manterá em funções, igualmente se impõe a proibição de contacto com qualquer um dos arguidos do processo nº 953/10.0JACBR e ainda com os pais e irmão do arguido B... , de nome, a mãe, C... , o pai D... e o irmão E... .

Assim, pelo exposto determino:
a) Sujeitar o arguido a novo “TIR”:
b) Nos termos do disposto no artº 204. al. b) e c) e artº 200º do CPP, proibir o arguido A... de contactar com os arguidos do processo nº 953/10.0JACBR e respectivos apensos.
c)  Nos termos do disposto no artº 204º al. b) e c) e artº 200 nº1 al. d) do CPP proibir o arguido A... de contactar com B... , E... , D... e C... .
d) Nos ternos do disposto no art.º 204º al. b) e c) e art.º 199º nº1 al. a) do CPP limitar parcialmente o exercício de funções por parte do arguido consistente na proibição de movimentar, consultar, aceder ou por qualquer forma tramitar os presentes autos e bem assim o processo nº 953/10.0JACBR e respectivos apensos.

(…)

*

Desagradado com a medida de coacção aplicada ao arguido, veio Ministério Público, interpor recurso despedindo a respectiva motivação com longas

Conclusões

1 Ao sujeitar o arguido à medida de coacção de “suspensão do exercício de profissão, de funções, de actividade e de direitos” limitando “(…) parcialmente o exercício de funções por parte do arguido consistente na proibição de movimentar, consultar, aceder ou por qualquer forma tramitar os presentes autos e bem assim o processo nº 953/10.0JACBR e respectivos apensos”, o despacho recorrido violou as disposições previstas nos artºs 191º, 193º, 199 e 204º, todos do CPP.

2. A factualidade cujo cometimento é imputada ao arguido e se encontra indiciada

e enunciada na acusação proferida a fls. 743 e ss. que se dá por integralmente reproduzida, é consubstanciadora da prática pelo arguido A... , em autoria material e concurso efectivo, do crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário, p. e p. no artº. 368° do Penal e crime de violação de segredo de justiça, p, e p. no artº, 371°, 811º nº 1, C. Penal, estando o arguido igualmente incurso na pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no art.º, 66° do C. Penal.

3. Em face de tal factualidade é evidente, recorrendo aos critérios proporcionalidade, necessidade e adequação e de forma a prevenir as imposições cautelares que aqui se fazem sentir no caso em apreço de perigo de continuação da actividade criminosa, de perigo de perturbação do decurso dos subsequentes termos do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, impor-se a aplicação ao arguido requerida medida de coacção de "suspensão do exercido de profissão, de função, de actividade e de direitos" prevista nos art.º 199º do C.P.P.

4. ln casu encontram-se verificados todos os requisitos - específicos e gerais -aplicação da medida de coacção "Suspensão do Exercício de Profissão, Função, Actividade e de Direitos".

De facto,

5. Um dos crimes indiciados e cuja prática é imputada ao é o crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário previsto no art.º 368º do C. Penal e punível com pena de prisão até cinco anos de prisão, ou seja, com pena de prisão de máximo superior a dois anos.

6. Atentas as funções exercidas pelo arguido (oficial de justiça), no exercício das quais praticou os factos descritos na acusação, é previsível que, em sede de julgamento, pela prática dos crimes em análise, lhe seja aplicada a pena acessória de proibição do exercício de funções, prevista no art. 66º nº1 e 2 do C. Penal, na qual está incurso, porquanto praticados com manifesta e grave violação dos deveres inerentes ao título/cargo, nomeadamente, de lealdade, imparcialidade, confiança pública, reserva e zelo e com implicação da perda de confiança necessária ao exercício desse cargo/funções.

7. No presente caso revela-se, de modo significativo e claro, a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do decurso dos subsequentes termos do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, e conservação ou veracidade da prova e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

8. Resulta indiciado, conforme é exposto no próprio despacho recorrido, “(…) eu o arguido terá cometido os factos descritos na acusação e que se reconduzem à prática dos crimes de favorecimento pessoal praticado por funcionário e de violação de segredo de justiça (…)”, ou seja:

Que o arguido, no exercício das suas funções de oficial de justiça, agiu voluntária, livre e conscientemente ao informar E... sobre o desenvolvimento da investigação, sobre as concretas diligencias que iriam ter lugar e pessoas visadas na investigação, bem como, ao facultar-lhe cópia do teor dos actos praticados no inquérito nº 953/10.0JACBR, que sabia estar sujeito ao regime de segredo de justiça, que o fez com o propósito de impedir, frustrar e iludir a actividade probatória das autoridades policiais e judiciárias com consciência e intenção de permitir que o aí arguido B... , na posse de tais informações e cópias, se pudesse eximir de responsabilidade criminal, evitando a sua condenação futura numa pena, deste modo, abusando da função que exerce de oficial de justiça e com violação manifesta e grave dos deveres inerentes a esse cargo e desrespeito pelas mais elementares regras inerentes ao exercício da sua profissão, não revelando probidade necessária ao exercício dessa função/cargo.

9. Actividade delituosa perpetrada pelo arguido que não se cingiu a um acto isolado num determinado e único circunstancialismo de tempo e lugar como o arguido, em sede de declarações prestadas no passado dia 11.07.2014, pretendeu fazer crer.

10. Muito pelo contrário:

O arguido desenvolveu essa actividade criminosa durante um largo período temporal - desde logo e pelo menos através do sistema informático de gestão processual do Tribunal - CITIUS e com a utilização das suas credenciais, encontra-se indiciada essa prática criminosa desde o mês de Abril até ao mês de Setembro de 2011.

11. Pautando a sua conduta da forma indiciada, o arguido revela uma personalidade desadequada e imprópria ao exercício das mesmas, resultando haver fundado receio que possa voltar a praticar factos idênticos integradores da prática do crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário ou de crimes análogos ou da mesma natureza noutras situações/no âmbito de outras investigações.

12.Tendo em conta:

A personalidade do arguido manifestada nos factos praticados

A gravidade desses mesmos factos;

A natureza do crime imputado, cometido pelo arguido no exercício das suas funções;

A grave negação dos valores e deveres, nomeadamente, de lealdade, imparcialidade, confiança pública, reserva e zelo a que o arguido, enquanto oficiai de justiça, devia respeitar, não dispõe aquele de condições para a sua manutenção como oficiai de justiça e, entendemos, manifestar aptidão para, no exercício do cargo, voltar a praticar factos integradores do cometimento, designadamente, crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário de crimes análogos ou de crimes da mesma natureza.

13. Perigo de continuação da actividade criminosa essa que não se limita pois como estrema o despacho recorrido, a actos que o arguido possa vir a perpetrar por referência/no âmbito do P.C.C. nº 953/10.0JACBR ou dos presentes autos.

14. É igualmente patente no caso em apreço, um elevado, claro e real perigo de perturbação do decurso dos subsequentes termos do processo e nomeadamente com efectivo risco para a aquisição conservação e veracidade da prova.

15. Decorrente das funções que exerce tem o arguido possibilidade de ter acesso em tempo real às posições processuais assumidas e aos demais actos a praticar no âmbito dos presentes autos, o que, a suceder, numa posição privilegiada para, por um lado, se precaver, destituindo de útil eventuais procedimentos cautelares que cumpram ser tomados e, por lado, organizar a sua defesa ao ter conhecimento antecipado de toda a tramitação processual/instrução do processo.

16. Ao contrário do que decorre do despacho recorrido, a expressão "instrução processo" decorrente da alínea b) do art.º 204° do CPP reporta-se aos vários e subsequentes procedimentos e termos do processo até ao trânsito em julgado da decisão final, não se restringindo, como aí é feito constar, à fase processual facultativa de "instrução" prevista técnica e processualmente no nosso ordenamento jurídico nos artºs 286º e ss. do CPP.

17. A gravidade da conduta do arguido, por inclusive pôr em crise a exigência lealdade, imparcialidade, confiança pública, reserva e zelo os operadores judiciários têm de revelar no seu ofício, é de molde a causar grave perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, face aos sentimentos insegurança e desconfiança que os cidadãos comuns passam a ter em relação à administração da justiça.

18. Estão em causa interesses relevantes de todos os processualmente envolvidos no âmbito dessa e de outras investigações criminais, bem o interesse público no bom andamento e êxito das mesmas.

19. As condutas indiciadas contribuem para a descredibilização sistema judiciário perante a comunidade locai e nomeadamente a que directamente recorre aos serviços do Tribunal Judiciai de Castelo Branco, bem a comunidade em geral e sentidas por estas com intolerabilidade e incompreensibilidade.

20. São claros, elevadíssimos e concretos os perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do decurso dos subsequentes termos do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas que se fazem sentir no caso em apreço.

21. Considerando os factos que estão fortemente indiciados nos autos, a gravidade, concreta e abstracta, das imputações criminosas indiciadas, o elevado grau de ilicitude da conduta do arguido, o amplo período temporal em que a mesma decorreu e o dolo que é intenso porque directo, afigurando-se-nos que a medida capaz de acautelar as exigências cautelares que se fazem sentir no caso em apreço e que se revela adequada, necessária e proporcional é a de Suspensão do Exercício de Profissão, Função, Actividade, e de Direitos" nos exactos termos em que se encontra prevista no art.° 199º do C.P.P.

22. A qual, como as todas as medidas de coacção previstas no nosso ordenamento jurídico-penal, obedece ao princípio estrito de legalidade se determina a tipicidade e o carácter taxativo das medidas de coacção admitidas e do seu âmbito de aplicação.

23. O art.º 199º do CPP não se prevê a possibilidade de alargamento ou limitação do seu âmbito de aplicação ao contrário do decidido no despacho.  

24. Não pode o julgador, como o fez no caso em apreço, entender adequada, necessária e proporcional a sujeição do arguido à medida de coacção de suspensão de exercício de funções e ao mesmo tempo determinar essa suspensão apenas se verifica quanto à tramitação de dois concretos processos.

25. O despacho recorrido violou, dessa forma, o princípio da legalidade   estrita e,

concretamente, dos artºs 191°, 193°, 199° e 204°, todos    C.P.P pela natureza da medida de coacção de "suspensão de exercido de funções" e razões subjacentes ao juízo de aplicação da mesma e que supra se elencararn ao longo da presente peça processual de recurso.

*                                                    

Recebido o recurso, aprestou-se a responder-lhe o arguido, defendendo que não praticou o crime de favorecimento pessoal que a acusação lhe imputa, defendendo que das 6 testemunhas arroladas, apenas uma ousou insinuar que o arguido teria transmitido informações sobre o desenvolvimento da investigação, sobre concretas diligencias que iriam ter lugar e pessoas visadas na investigação, sendo manifesta a contradição entre as suas declarações e as prestadas pela também testemunha E... e da inquirida no inquérito, F... , D... e C... .

Acrescenta ainda que nesta altura não faz qualquer sentido a submissão do arguido à medida de coacção proposta, por já ter decorrido o prazo da instrução, que não foi requerida.

Defende que a aplicação da medida deve ser relegada para a audiência de julgamento, tanto mais que actualmente o arguido encontra-se a prestar serviço na Unidade Local Cível no tribunal da Comarca de Castelo Branco, pelo que não lhe será aplicada a medida constante da alínea d) do despacho recorrido.

*

Instruídos os autos de recurso, vieram a ser remetido a esta Relação, onde foram continuados ao Ex. mo Procurador Geral Adjunto que lavrou Parecer onde se pronunciou pela existência de indícios da prática de um crime de favorecimento pessoal e defendeu a aplicação da medida cautelar proposta pelo Recorrente, defendendo que o arguido, embora tenha mudado de funções, continua a trabalhar no mesmo edifício e a ter acesso ao sistema informático de todos os processos em suporte físico incluindo o presente processo bem como aquele de onde subtraiu as informações.

Por último defende que as medidas aplicadas no despacho recorrido violam a lei, artº 191º nº1 do CPP, uma vez que as mesmas não estão previstas. O artº 199º nº 1 al. a) não prevê a suspensão parcial de funções, sendo que o artº 200º nº1 também as não contempla.

Defende assim, a procedência do recurso. 

*

O arguido respondeu reiterando o que já havia aportado na resposta.

*

Questões a decidir:

É consensual quer na doutrina quer na jurisprudência que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades e vícios a que se reporta o art.º 410º do CPP.

Pois bem, das prolixas e extensas conclusões supra descritas resulta que o recorrente visa que se sujeite o arguido à medida de coacção de suspensão de funções, e se revogue o despacho que procedeu à suspensão parcial dessas funções.

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Decisão do recurso

Contra o arguido foi deduzida acusação pela prática de um crime de favorecimento pessoal p.p. pelo art.º 368º do C. Penal, e outro de violação do segredo de justiça, p.p. pelo art.º 371º do Cód. Penal.

Na mesma peça, o Ministério Público requereu a aplicação ao arguido da pena, acessória de proibição de exercício de função, prevista no art.º 66º do Cód. Penal.

Requereu ainda o Ministério Público a sujeição do arguido à medida de coacção de suspensão de funções.

O despacho recorrido, supra transcrito, no que a esta medida diz respeito, decretou a proibição de o arguido consultar ou por qualquer forma aceder aos presentes autos, bem como aqueles em que é arguido B... , e que o arguido terá favorecido, prestando-lhe informações do processo, bem como contactar com os familiares directos deste arguido pais e irmão. 

Em tese geral, as medidas de coacção são meios processuais penais limitadores da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar, aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam indícios ou fortes indícios da prática de um crime.

O art.º 191º nº1 do CPP( como serão todos os que doravante se indicarem sem menção de diploma) consagra o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coacção, o que significa que só as medidas expressamente prevista da lei (no CPP ou em lei especial) podem ser aplicadas.

Defende o Ministério Público em ambas as instâncias que o despacho recorrido, ao restringir as funções do arguido proibindo-o de aceder a estes autos, e aqueles a que se reporta o crime que terá praticado, e de contactar com os familiares do arguido que quis beneficiar, violou esta norma e “ pour cause”, o despacho recorrido é ilegal.

De facto se a proibição de contactar com determinadas pessoas, in casu os familiares do arguido B... , e arguidos no processo onde este também é arguido, se podem incluir, no art.º 200º nº1 al. d), ao abrigo da qual foram decretadas, não se vê que a proibição de o arguido movimentar ou sequer manusear os dois processos em causa, caiba em qualquer das várias alíneas do nº1 do art.º 200º.

Por outro lado, o art.º 199º nº1, à sombra do qual estas proibições foram decretadas, que tem por epígrafe “ suspensão do exercício de profissão, de funções, de actividades” está inelutavelmente ligado ao art.º 66º do Código Penal.

Ora, como resulta claro do art.º 66º o que aqui se visa é punir, com a respectiva sanção acessória, é a indignidade para a profissão resultante do crime que se puniu a título principal.

Daqui resulta que a eficácia da punição que se visa acautelar com a medida de coacção prevista no artigo 199º, é a sanção acessória a que se reporta o art.º 66º do C. Penal ( neste sentido Ac. TRL de 28-09-2011 in www.dgsi.pt) .

Como, bem, refere o Ex.mo PGA, “o que se visa com a suspensão do exercício de função é proteger o cabal desempenho desta e não o contacto do funcionário com determinadas parcelas do seu exercício, mormente, no caso, o acesso a determinados processos, como decorre inclusivamente da pena de proibição de exercício, a que a suspensão anda associada, consignada no artº 66º nº1 do CPP, sendo que a situação se enquadra claramente na al. a) deste número”.

Por conseguinte, a medida cautelar a aplicar tem de ter por objecto a função, profissão ou actividade no âmbito da qual o arguido manifestou indignidade ou desadequação para as exercer e não qualquer acto concreto dentro da sua profissão, tanto assim é que se vem entendendo que a medida de coacção do artº 199º, deve ser descontada na pena acessória a que se reporta o artº 66 do Cód. Penal (neste sentido Paulo Pinto Albuquerque in Comentário ao Código de Processo Penal, 2º ed. pag. 562 e jurisprudência das relações aí citada).

Estando as medidas de coacção sujeitas ao princípio da tipicidade, só se podem aplicar aquelas que estão previstas no código e não quaisquer outras que o julgador entender necessárias, como é o caso de não movimentar determinados processos no exercício da sua profissão de oficial de justiça.

Esta proibição além de não caber em nenhuma das medidas a que se reportam os artigos 196º a 202º, também não acautela os perigos que as medidas de coacção visam prevenir, pois que não é o manuseamento de um processo, mas o uso dos conhecimentos adquiridos através dele e depois difundidos, que constitui conduta censurável susceptível de ser sancionada com a pena correspondente ao crime, com a sanção acessória a que se reporta o art.º 66º do Código Penal (verificados como é óbvio os respectivos pressupostos), e, por outro lado também não é interditando o arguido de manusear o processo A ou B que se previne a continuação da actividade criminosa, se este perigo se justificar, porque ela pode ser levada a cabo no âmbito de outros processos. 

Assim, conclui-se que o despacho recorrido na medida em que decretou uma suspensão parcial de actividade ou função violou o princípio da tipicidade, e por isso, é ilegal, não podendo se mantido.

*

Mas será que ao arguido devia ter sido aplicada a medida de suspensão da sua profissão de oficial de justiça?

As medidas de coacção, como ensina Germano Marques da Silva, (curso de Processo Penal, vol. II, pág. 201) «são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias”.

Vigora nesta sede, como já referimos, o princípio da legalidade, o que significa que tais medidas são apenas as que constam taxativamente da lei, obedecendo a sua aplicação aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (artº 193º do CPP).

Na área das medidas de coacção, o princípio da legalidade também designado por princípio da tipicidade, explicitado no artº 191º do CPP, tal como os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade, mais não são do que corolários do princípio da presunção de inocência até ao trânsito da sentença condenatória.

Como diz o Prof. Jorge Figueiredo Dias, tendo em atenção o princípio da presunção de inocência acolhido no artº 32º nº1 da CRP “exige-se que só sejam aplicadas ao arguido as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente”.

O princípio da necessidade decorre da exigência legal de “a liberdade das pessoas só poder ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar” (artº.191º nº 1).

De onde resulta que, de entre as medidas coactivas previstas o julgador deve escolher, em cada caso concreto, a ou as que forem adequadas e proporcionadas tendo em atenção as exigências contidas no citado artº 193º.

A medida de coacção a que se reporta o art.º 199º, que o recorrente quer ver aplicada ao arguido, além dos requisitos de caracter genérico, a que se reporta o do artº 204º, (fuga ou perigo de fuga de perturbação do inquérito ou da instrução; e, perigo de continuação da actividade criminosa o de perturbação da ordem e tranquilidade públicas), ao quais devem obedecer todas as medidas de coacção excepto o TIR, exige ainda dois requisitos de caracter genérico, que o crime imputado seja punido com pena de prisão superior a dois anos; e que a interdição do exercício da profissão, função ou actividade possa vir a ser decretada como efeito desse crime.

Além disso, toda a medida de coacção deve ser necessária adequada e proporcional aos fins a que se destina, artº193º.

O crime de favorecimento pessoal pelo qual o arguido está acusado - crime que sem qualquer sombra de dúvida, está indiciado nos autos, tanto assim, que foi proferida acusação contra o arguido, não sendo aqui e agora, o meio próprio para se produzir prova tendente a invalidar esses indícios, mas a instrução, que ao que se infere não foi requerida, e, posteriormente, o julgamento – é punido pelo art.º 368º do Cód. Penal, com prisão até cinco anos. 

Por outro lado, o art.º 66º nº1 do Código Penal, sanciona com pena acessória de proibição do exercício de funções, por um período de dois a cinco anos, o funcionário que cometer crime punido com pena de prisão superior a três anos, nos seguintes casos:
a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou
c)  Implicar a perda de confiança necessária ao exercício da função.

Ora, a comprovarem-se em julgamento os indícios contidos nos autos de que o arguido abusando do exercício das suas funções de oficial de justiça, deu informações das vicissitudes de um processo de inquérito que tinha a seu cargo, visando com elas favorecer um dos arguidos, B... , informando os familiares deste, não só que contra ele corria um processo por tráfico de droga, mas ainda da realização concreta de diligências de prova com a intenção de frustrar a actividade probatória contra o mesmo arguido, está em condições de lhe ser aplicada a sanção acessória a que se reporta o art.º 66º do Código Penal,

Com efeito, quem assim procede, não só revela indignidade para o cargo de oficial de justiça, como revela manifesta e grave violação dos deveres que são inerentes à profissão que exerce; com da sua actividade resulta perda de confiança para o desempenho da profissão que exerce, encontrando-se assim preenchidos os requisitos de caracter geral de que a lei faz depender a aplicação desta medida.

Mas, apesar de os factos acusados serem idóneos à aplicação da sanção acessória do art.º 66º do C. Penal, daqui não resulta que sejam suficientes para a aplicação doa medida de coacção correspondente, pois que para tal é necessário que se verifique algum (são alternativos) dos requisitos de caracter específico a que se reporta o artº 204º, a saber:

- Fuga ou perigo de fuga;

- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

A estas acrescem ainda outras condições: a de insuficiência de outras medidas menos gravosas, artº 201º nº1 e 193º nº2; e, as da adequação e proporcionalidade.

Ora, aqui chegados, não podemos deixar de concordar com o despacho recorrido quando refere: «nesta sede apenas se apreciam fundamentos de natureza cautelar e não fins pedagógicos de punição como terá de ser necessariamente alcançado em sede de decisão final».

E mais á frente, referindo-se ao perigo de continuação da actividade criminosa, único que se pode equacionar nestes autos: «no que concerne ao perigo de continuação da actividade criminosa não podemos olvidar que este arguido tem um acesso privilegiado aos presentes autos pois que exerce funções no juízo onde o mesmo se encontra. No mesmo juízo corre o processo nº 953/10.0JACBR, que esteve na origem dos factos alegadamente praticados pelo arguido (o que a avaliar pela informação constante dos autos já não acontece, por ter sido transferido para outro serviço no âmbito da reforma judiciária).

É verdade que as suas funções lhe permitem aceder, consultar, movimentar os processos em causa permitindo-lhe um acesso que a grande generalidade dos arguidos não tem.

Por outro lado, o processo já é público, não está em segredo de justiça, e, em nosso entendimento, nada de superveniente permite concluir que haja um perigo da continuação da actividade criminosa pois não se conhecem incidentes similares desde que o arguido terá praticado os factos até à presente data, sendo que não deixou de trabalhar nestes 2 anos, com excepção do período de 90 dias, entre Outubro de 2013 e Janeiro de 2014, em virtude de sanção disciplinar aplicada pelo “COJ” a qual é do meu conhecimento funcional»

Tem entendido as instâncias que os perigos a que se reporta o art.º 204º tem de ser concretos, ou seja, retirados das circunstâncias reais do caso concreto.

Concretamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, como refere Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pág. 880): «Para respeitar o princípio da presunção de inocência, a medida de coacção deverá fundar-se num juízo muito rigoroso e preciso de plausibilidade de reiteração criminosa, apoiado nas circunstâncias do caso e na personalidade revelada pelo arguido»

Por outro lado, e seguindo o mesmo autor: «O perigo de perturbação do processo, embora a letra da lei se refira apenas ao inquérito e à instrução, abrange todas as fases do processo, pelo menos enquanto a prova não estiver fixada. Todavia, esse perigo é obviamente mais intenso na fase de inquérito e da instrução»

E, continua, «Este perigo deverá também ser avaliado em concreto, analisando-se a capacidade efectiva do arguido para impedir ou perturbar a investigação e especialmente a recolha de prova ou a sua conservação ou genuinidade».

Por fim, e no que tange ao alegado alarme social:   

«Para que a medida de coacção não sirva finalidades de prevenção criminal ou (antecipadamente) punitivas, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas só poderá ser invocado em situações em que a libertação do arguido ponha em causa, com alto grau de probabilidade, e gravemente, a ordem ou a tranquilidade públicas, ( …) não é suficiente um alegado “alarme social” que não se traduza num perigo concreto, derivado da conduta ou da personalidade do arguido».

Pois bem:

Ora, no caso vertente, nada existe nos autos que nos permita afirmar que a actuação do arguido não redundou num acto isolado e que a sua personalidade é propensa à prática de crimes da natureza daqueles pelos quais foi acusado.

Por outro lado, estando já o processo em fase de julgamento o perigo de perturbação do processo é bem menor senão insignificante.

Por último, o alarme social se é que o houve, está ultrapassado nesta fase do processo.

Vale tudo isto para dizer que neste contexto aplicar ao arguido a medida de coacção prevista no art.º 199º, significava tão só um adiantamento da pena acessória que em caso de condenação venha a ser aplicada ao arguido, não sendo a punição antecipada a vocação das medidas de coacção, mas evitar que os perigos do art.º 204º se tornem efectivos.

Destarte tem de se concluir que a aplicação, nesta fase, da medida de coacção proposta pelo Ministério Público, ofende os princípios da adequação e proporcionalidade.

Improcede, assim, esta parte do recurso.  

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, revoga-se a decisão recorrida na parte em que aplica medida de coacção ilegal, por não estar tipificada na lei, e quanto ao mais, julga-se improcedente o recurso e confirma-se o despacho recorrido expurgado da nulidade referida.

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Sem custas.

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Coimbra, 11 de Março de 2015

 (Texto elaborado e revisto pela relatora, artº 94º nº2 do CPP, que escreve com a grafia anterior ao novo acordo ortográfico)

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)