Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
657/05.6TBPCV.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: TRESPASSE
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
FORMALIDADES
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 22º SS DO RAU
Sumário: 1) A transferência da posição de arrendatário independentemente de autorização do senhorio em caso de trespasse ou cessão de exploração do estabelecimento comercial traduz uma opção do Legislador em prol do favorecimento dos direito dotados de potencialidades geradoras de riqueza face ao arrendamento tout court de cariz estático.

2) Todavia a transmissão do direito ao arrendamento supõe, e nomeadamente no trespasse, que o senhorio seja informado da transferência do locado pelo trespassante sob pena de aquele poder resolver o contrato.

3) Cumpridas as formalidades legais para a transferência do arrendamento e na falta de aceitação das rendas o locatário trespassário tem o direito a efectuar o respectivo depósito em singelo nos termos do disposto no artigo 22º ss do RAU.

Decisão Texto Integral:      1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     A.... e mulher B...., residentes em ....., propuseram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário contra C...., residente na ...., e D....Lda, com sede em ....., pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento, celebrado entre Autores e o Réu C..., condenando-se os Réus a entregar aos Autores o imóvel arrendado livre e devoluto de pessoas e bens; condenando-se o Réu C...a pagar-lhes as rendas vencidas desde Janeiro de 2005, as vincendas que se apurarem até final e respectivos juros; e serem ambos os Réus condenados a pagar-lhes a indemnização que se vier liquidar em execução da sentença.

     Para tanto, alegam, em síntese, que por escritura pública de 07.03.1988, os pais do Autor marido, como senhorios, deram de arrendamento ao Réu C..., uma divisão no primeiro pavimento do prédio que corresponde actualmente à fracção “A” do artigo 1515 urbano, e anteriormente parte do artigo 371 urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o nº 00914/270494, pelo prazo de um ano e renovável, com início em 01.04.1988, com renda de 20.000$00, hoje actualizada para € 178,45. Tal prédio adveio à titularidade do Autor marido por escritura de doação de seus pais, outorgada em 20.08.1999; que no final do mês de Dezembro de 2004 ou nos primeiros dias de Janeiro de 2005, o Réu C... deixou uma nota escrita ao Autor a comunicar que os recibos de renda de 2005 em diante, deveriam ser passados à sociedade Ré, o que o Autor marido não aceitou. Por carta datada de 04.01.2005, este Réu informou o Autor marido que, por escritura notarial efectuada em 27.12.2004 tinha sido constituída a firma D... Lda. sendo certo que Réu C... comunicou, através de mandatário, por carta de 05.02.2005 aos Autores que tinha procedido ao depósito das rendas por estes as não aceitarem, mas que tal depósito, por ter sido efectuado em nome da 2ª Ré, não é liberatório; que não autorizaram, nem consentiram a cessão da posição contratual de arrendatário do Réu C... a favor da sociedade ré;

     A sociedade ré passou a exercer no locado a actividade de venda de medicamentos e outros produtos a utentes, não lhes tendo sido feita qualquer prévia comunicação. Não prestaram o consentimento para o exercício da actividade da sociedade cessionária no locado;

     O Réu C...cedeu a sua posição contratual sem a sua autorização e sem o seu consentimento em finais de Dezembro de 2004, deixando de pagar as rendas do locado desde o mês de Janeiro de 2005, até à presente data; A actividade comercial desenvolvida pela sociedade ré no locado, desde finais de Dezembro de 2004 até à presente data, tem-lhes causado prejuízos, não podendo ainda ser quantificado o seu montante total neste momento.

     Os Réus vieram apresentar contestação, aceitando a existência do contrato de arrendamento alegado pelos Autores, mas defendendo, em suma, a caducidade da acção de despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas atento o facto de terem efectuado o depósito das rendas e da indemnização legal; que comunicaram aos Autores, por carta registada com aviso de recepção, no mesmo dia em que efectuaram a escritura, o trespasse do estabelecimento de farmácia e armazém efectuado entre o Réu C... e a sociedade Ré; o Autor marido a partir de 11.05.2005 manteve o propósito de recusa em emitir o recibo e receber a renda respeitante ao locado a favor da sociedade Ré.

     Concluem pugnando pela declaração de caducidade da acção com fundamento na falta de pagamento das rendas; ou, caso assim não se considere, pela absolvição dos Réus do pedido, julgando-se infundada a recusa do Autor no recebimento das rendas. Batem-se ainda, pela condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização, consistente no reembolso das despesas que os Réus tiveram que efectuar e restantes prejuízos sofridos como consequência directa ou indirecta da má-fé dos Autores, cujo apuramento relegaram para posterior incidente de liquidação.

     No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância tendo sido elencados os factos provados e elaborada a Base Instrutória.

     Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente:

     - Absolveu os Réus C... e D.... Lda.. do pedido de resolução do contrato de arrendamento deduzido pelos Autores A... e B... com fundamento na al. f), do n.º 1, do artº 64º do RAU, por inexistência de cessão, não autorizada, da posição contratual;

     - Declarou, ao abrigo do disposto nos artsº 1048º, nº 1 e 1041º, nº 1 e 1042º do Código Civil, a caducidade do direito dos Autores A... e B... à resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, previsto na al. a), do nº 1, do artº 64º do RAU, e, consequentemente, determinou o levantamento, pelos Autores, do valor correspondente às rendas vencidas nos meses de Janeiro a Maio (inclusive), acrescidas da indemnização correspondente a 50% do valor global dessas rendas.

     - Absolveu os Réus de tudo o mais peticionado pelos Autores;

     - Absolveu os Autores do pedido de condenação por litigância de má-fé deduzido pelos Réus;

     - Condenou os Autores no pagamento das custas em dívida a juízo.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pelos AA. os quais no termo da sua alegação pediram que se substitua ou reforme a sentença apelada nos termos que propõem.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     1) Nos autos verifica-se estarmos perante a situação provista no artigo 64º nº 1 alínea f) do RAU que corresponde ao artigo 1 083º nº 2 alínea e) do Código Civil na redacção da Lei 6/2006 que aprovou o RAU que prevê que o senhorio possa resolver o contrato de arrendamento se o locatário ceder a sua posição contratual nos casos em que estes actos são ilícitos inválidos ou ineficazes em relação ao senhorio.

     2) No caso concreto verificou-se uma cedência ilícita da posição do arrendatário para terceiro ou seja do 1º R. para a 2ª R. sociedade, não autorizada ou consentida pelo senhorio e contra a sua vontade.

     3) A R. assumiu a qualidade de cessionária em vez do primitivo locatário, o 1.º R. sem que tal substituição tenha tido o consentimento do outro contraente, ou seja, o A.

     4) No caso concreto a R. sociedade unipessoal tem vindo a usar e a fruir o locado desde finais de Dezembro de 2004, aí procedendo à venda de medicamentos aos utentes sem que tivesse sido feita qualquer comunicação aos senhorios AA. que não prestaram o seu consentimento para o exercício da actividade da R. sociedade no locado.

     5) A partir de finais de Dezembro de 2004 passou a usar fruir e desenvolver actividade no locado, pessoa jurídica diversa da do arrendatário identificado no contrato de arrendamento

     6) Em 27 de Dezembro de 2004, foi criada a R. sociedade denominada “D,,,Lda.”,

     7) Sociedade registada definitivamente na Conservatória do Registo Comercial em 30 de Dezembro de 2004

     8) Passando a ter a partir de então existência jurídica e a gozar de personalidade jurídica autónoma,

     9) Data a partir da qual a R. sociedade se instalou no locado e aí passou a exercer a sua actividade comercial,

     10) Sendo de concluir que a partir desta data foi efectuada a cedência pelo arrendatário – 1º R. – do locado e ou da sua posição contratual a terceiro, a aqui R. sociedade,

     11) Cedência feita contra a vontade dos AA. enquanto senhorios e sem o seu consentimento

     12) O contrato de trespasse entre o 1º R. e a 2ª R. ocorreu em 8 de Maio de 2005, data posterior à cedência da posição contratual entre ambos, sendo já irrelevante para o caso concreto, não podendo concluir-se que a transmissão ou cedência do direito ao arrendamento só operou por força do trespasse que ocorreu em Maio de 2005 quando à Ré sociedade foi cedido o efectivamente o locado, dele fazendo a sua sede comercial, a partir de finais de Dezembro de 2004.

     13) Encontrando-se preenchidos os requisitos previstos no art. 64 nº 1 al. f) do R.A.U. conclui-se ter havido nos autos cessão ilegal do locado.

     14) Por outro lado não há depósito liberatório das rendas devidas, não cabendo a situação concreta no artº 22º do R.A.U. que regulamenta o depósito do arrendatário, porquanto os depósitos não foram efectuados pelo arrendatário mas por terceiro, sem qualquer título que legitimasse a sua posição de denominada arrendatária,

     15) Constituindo a falta de pagamento de rendas causa autónoma de resolução do contrato de arrendamento nos termos do art.º 64 n.º 1 al. a) do R.A.U.

     16) Estão invocados os prejuízos inerentes ao uso ilegítimo e ilícito do locado por parte da 2ª R., devendo ser considerado o pedido de indemnização peticionado e a liquidar a execução de sentença.

     17) A sentença apelada devia ter concluído pela existência de uma cessão ilícita da posição contratual do 1º R. face aos factos provados que se dão por reproduzidos para os legais efeitos e procedência do pedido dos AA.

     18) A sentença recorrida não apreciou correctamente os factos e violou o disposto no artº 668º alínea c) e d) do CPC

     19) Devendo a sentença recorrida ser substituída por outra que decida julgar procedente a acção e condenar os RR. no pedido.

     20) Face ao que ficou sobredito e exposto inicialmente, não se verifica inutilidade superveniente da lide, tendo os AA. interesse no prosseguimento dos autos apesar da entrega do locado,

     21) Seja para decisão de parte do pedido inicial no que se refere à improcedência da resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, e improcedência do pedido de indemnização a liquidar na execução de sentença,

     22) Seja para decisão do pedido integral inicial e correlativa decisão final do incidente de caução no que às garantias que a mesma visa acautelar e garantir, tendo por isso os AA. todo o interesse no prosseguimento dos autos

     23) Por forma a minorar os prejuízos dos AA. ora recorrentes, sendo que a morosidade do processo pode tornar iníqua a decisão em violação do artº 6º nº 1 da Convenção Europeia.

     Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirmação da sentença e acrescentando no entanto que em consequência da mesma o pagamento das rendas em dívida do locado a partir de 1 de Junho de 2005 deverá ser feito em singelo.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

     2. FUNDAMENTOS.

     2.1. Reapreciação da matéria de facto.

     Insurgem-se os AA. contra a resposta ao quesito único da Base Instrutória.

     Perguntava-se no quesito em análise o seguinte:

     "Desde finais de Dezembro de 2004 até à presente data a 2ª Ré tem vindo a proceder à venda de medicamentos e outros produtos a utentes no locado"?

     O Tribunal respondeu ao quesito em análise pela seguinte forma:

     "Provado que a sociedade Ré tem vindo a proceder à venda de medicamentos e outros produtos a utentes no locado".

     Defendem os recorrentes que deveria ficar a constar da resposta ao quesito suprareferido que a 2ª Ré tem vindo a proceder à venda de medicamentos e outros produtos no locado há pelo menos cerca de 6 anos, porque muito embora não houvesse unanimidade quanto ao depoimento das duas testemunhas inquiridas, o certo é que uma apontou para 4 anos e outra para seis, o que permitiria a resposta que destarte se pretende.

     Analisados os depoimentos concluímos como a 1ª instância. Na verdade, muito embora seja sabido que desde finais de Dezembro de 2004 se passaram a vender medicamentos no local não é de facto possível determinar a partir de que momento o estabelecimento deixou de ser explorado em nome pessoal para passar a sê-lo pela sociedade unipessoal.

     Nesta conformidade nada há a alterar ao decidido em matéria de facto.

                           +

     Com interesse para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes,

     2.2. Factos.

     2.2.1. O Autor marido tem inscrita a seu favor, na Conservatória do Registo Predial, a aquisição, por doação, do prédio urbano, actualmente constituído em regime de propriedade horizontal sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., constituído por edifício de rés-do-chão, 1º andar e sótão, com as fracções “A” a “C”, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., ..., sob o artigo 1.515, que proveio do artigo antigo 371 urbano e 744 rústico e descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o nº 00914/270494 (a/ A dos factos esquentes).

     2.2.2. Por escritura pública, celebrada a 20.08. 1999, no Cartório Notarial de ..., E.... e F...., pais do Autor marido, declararam doar a este último o prédio referido em A) (al. B) dos factos assentes).

     2.2.3. Por escritura pública celebrada em 07.03. 1988, no Cartório Notarial de ..., E... e F... pais do Autor marido, declararam dar de arrendamento a C..., CF. 174 753 697, uma divisão no primeiro pavimento do prédio descrito em A), que corresponde actualmente à fracção A do artigo 1515 urbano, e anteriormente parte do artigo 371 urbano, destinado à instalação de uma farmácia e armazém de produtos farmacêuticos, pelo prazo de um ano e renovável com início em 01.04.1988, com renda de 20.000$00, hoje actualizada para € 178,45 mensais, a ser paga na residência do senhorio no 1º dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito (a/ C dos factos assentes).

     2.2.4. Em data não concretamente apurada, situada entre os finais do mês de Dezembro de 2004 e os primeiros dias do mês de Janeiro de 2005, o Réu C..., deixou uma nota escrita ao Autor, que lhe foi entregue pela empregada da Farmácia, a comunicar que os recibos, de 2005 em diante, deveriam ser passados com o contribuinte n.º 507 141 040 à D... Lda. (al. D dos factos assentes).

     2.2.5. O Autor marido informou o Réu C... de que não aceitava tal situação, a sociedade D..., Lda., não era sua arrendatária, desconhecia aquele contribuinte (al. E) dos factos assentes).

     2.2.6. O Autor marido informou o Réu de que não emitiria recibos de renda, nem receberia a renda de outro arrendatário que não o primitivo (a/. F dos factos asseis).

     2.2.7. O Réu C..., após esta informação do Autor, deixou-lhe novo bilhete informando-o que lhe ia remeter uma carta pelo correio (al. G dos factos assentes).

     2.2.8. Por carta datada de 04.01.2005, o Réu C... comunicou ao Autor marido, que, tendo efectuado em 27.12.2004 a escritura notarial da firma D... Lda., com o número de pessoa colectiva 507 141 040, a partir de Janeiro de 2005 os recibos de renda do estabelecimento deveriam ser passados à D.... Lda., tendo em conta o número de contribuinte designado (a/ H dos facto assentes).

     2.2.9. Por carta datada de 18 de Janeiro de 2005, o Autor marido informou o Réu C... não concordar nem subscrever a alteração ocorrida, propondo a resolução consensual do assunto, sob pena de resolução do contrato de arrendamento, por ter havido cessão da posição contratual do arrendatário, por si não Autorizada (a/. I dos factos isentes).

     2.2.10. Por carta datada de 05 de Fevereiro de 2005 o Réu C... comunicou aos Autores, através de mandatário judicial, ter procedido ao depósito de renda por estes as não aceitarem (al. J) dos factos assentes).

     2.2.11. Os depósitos de renda foram efectuados em nome de D.... Lda., no campo destinado à identificação do “arrendatário’ nos talões de depósito (alínea K) dos factos assentes).

     2.2.12. Os Autores não prestaram o consentimento para o exercício da actividade da sociedade ré no locado (al. L dos factos assentes).

     2.2.13. O estabelecimento é denominado desde a sua abertura de D... (alínea M) dos factos assentes).

     2.2.14. O Réu C..., por intermédio do mandatário judicial, por cartas de 05.02.2005 e 25.02.2005, notificou o Autor ter procedido ao depósito das rendas (al N) dos factos assentes).

     2.2.15. A presente acção deu entrada em juízo no dia 01.08.2005 (alínea O) dos factos assentes).

     2.2.16. A sociedade Ré procedeu aos depósitos das rendas, em singelo, aos meses de Fevereiro a Outubro de 2005, no montante total de € 1.784,50 (a/ P dos factos assentes).

     2.2.17. Os Réus C... e a D..., Lda. depositaram as rendas – a título de depósito liberatório e condicional -respeitantes aos meses de Janeiro a Outubro, acrescidos de indemnização e juros, no montante de € 2.876,75 (a Q) dos factos assentes).

     2.2.18. Por escritura celebrada em 09.05.2005, no Cartório Notarial de ..., o Réu C... em nome próprio e em representação, na qualidade de único sócio e gerente da sociedade que gira sob a firma D... Lda., declarou trespassar à referida sociedade, pelo preço de € 80.848,03 o estabelecimento comercial da farmácia e armazém de produtos farmacêuticos instalado no locado em causa (a/ R dos factos assentes).

     2.2.19. Por carta registada de 09.05.2005 e sob aviso de recepção, o Réu C... comunicou ao Autor marido que, no dia 09.05.2005, havia procedido ao trespasse da farmácia à sociedade D... Lda.. (a/ S dos factos assentes).

     2.2.20. O Autor recebeu e assinou o aviso de recepção em 11.05.2005 (a/. T dos factos assentes).

     2.2.21. O Réu C... comunicou, ainda, a celebração da escritura referida em S) à A.N.F. e ao INFARMED (a/. U dos factos assentes).

     2.2.22. O Autor, a partir de 11.05.2005, manteve o propósito de recusa em receber as rendas da D... Lda., e em emitir os recibos em seu nome (a/ Y dos factos assentes).

     2.2.23. A sociedade Ré tem vindo a proceder à venda de medicamentos e outros produtos a utentes no locado (resposta ao quesito único)

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     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - Reflexos dos negócios sobre o estabelecimento comercial na transferência da posição de arrendatário. A cessão da posição contratual.

     - O caso vertente.

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     2.2.1. Reflexos dos negócios sobre o estabelecimento comercial na transferência da posição de arrendatário. A cessão da posição contratual.

     Para aquilatar da procedência ou improcedência da apelação não é despiciendo que se teçam previamente algumas considerações acerca dos negócios susceptíveis de serem realizados sobre o estabelecimento comercial com especial relevo para a "cessão de exploração" e o "trespasse". Isto porquanto não é igual o tratamento que a lei confere à transferência da posição de arrendatário consoante o estabelecimento seja ou não objecto de qualquer dos contratos citados.

     A "cessão de exploração" poderá definir-se como o negócio pelo qual o cedente concede ao cessionário o gozo das utilidades propiciadas pelo estabelecimento, mediante contra-prestação, sem deixar de ser todavia o seu dono. Este contrato apresenta-se-nos como o resultado de uma evolução jurídica que o autonomizou progressivamente do simples "contrato de locação" onde tinha a sua sede de regulamentação[1]. Com efeito só paulatinamente ganhou contornos a figura da "cessão de exploração" na Doutrina e Jurisprudência até ao seu reconhecimento legal no Código Civil de 1966, que no seu artigo 1 055º dispunha que não é havido como arrendamento do prédio urbano ou rústico o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado". Esta disposição passou posteriormente para o artigo 111º nº 1 do RAU. O estabelecimento comercial passa assim a autonomizar-se do local onde se encontra, podendo inclusivamente ser transmitido sem este[2].

     Como corolário desta evolução poderá pois hoje distinguir-se o "contrato de locação" do "contrato de cessão de exploração", nos seguintes termos: existe "contrato de arrendamento" tout court quando a locação incide sobre uma coisa imóvel obrigando-se o proprietário a proporcionar o gozo temporário de um espaço urbano a outrem mediante retribuição. Por seu turno a "cessão de exploração de estabelecimento comercial" configura "a disposição temporária e remunerada do mero gozo do estabelecimento ou da empresa"[3]. Essa transmissão é feita considerando não de forma atomística os elementos constitutivos do estabelecimento, mas globalmente, como "unidade de fim"[4]. O mesmo se passa aliás na figura próxima do "trespasse" que se distingue da cessão apenas pelo facto de a transferência do estabelecimento assumir, ao contrário da primeira, cariz definitivo[5]. Aqui também o trespassante tem, à face da alínea g) do artigo 1038º do Código Civil, o dever de comunicar ao locador a cedência do local, podendo este último, na ausência de tal comunicação, resolver o contrato a menos que tenha beneficiado da cedência como tal ou ainda se aquela comunicação lhe tiver sido feita por este – cfr. artigo 1 049º do Código Civil.

     As figuras supra-caracterizadas distinguem-se da "cessão da posição contratual" que na sua tese os apelantes pretendem ver presente no caso em análise. Sob este instituto o artigo 424º do Código Civil estatui que "No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão". Nesse normativo e seguintes se regulamenta o regime da cessão frisando-se, como regra geral, a necessidade de consentimento do outro contraente para que aquela se possa efectivar… regra que comporta todavia excepções, contando-se entre elas a "cessão da exploração comercial" do estabelecimento e o "trespasse"; por motivos ligados ao desenvolvimento económico e considerando a natureza não absoluta do direito de propriedade o legislador fomenta a criação de condições que estimulam os direitos mais produtivos e dinâmicos do tecido social por sua natureza susceptíveis de gerar riqueza em detrimento de outros de natureza estática, como é o caso da simples arrendamento quando limitado apenas à sua faceta de mera fruição. Entre esses direitos se contam aqueles a que acima fizemos referência.

     Todavia a política legislativa de estímulo supra-referida não esquece os direitos do locador procurando acautelar situações que podem ocorrer a coberto do exercício dos contratos em análise e nomeadamente quanto ao trespasse ao estatuir nos termos das alíneas a) e b) do artigo 115º do RAU que o mesmo não existe:

      a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento;

     b) Quando, transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de comércio ou indústria ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino.

                           +

     2.2.2. O caso vertente.

    

     Cabe agora proceder à análise jurídica do caso vertente à luz dos factos provados e das considerações expendidas.

     Insurgem-se os AA. contra o decidido na medida em que na sua óptica a transferência do arrendado configura uma cessão não autorizada da posição contratual, desde logo porque nunca lhes foi dado conhecimento daquela transferência que aliás não Autorizariam.

     O Sr. Juiz entendeu que se verifica in casu uma transferência da posição de arrendatário permitida à face do artigo 111º do RAU, já que foi celebrada escritura 09.05.2005, no Cartório Notarial de ..., escritura de trespasse em que o Réu C... em nome próprio e em representação, na qualidade de único sócio e gerente da sociedade que gira sob a firma D... Lda."., declarou trespassar à referida sociedade, pelo preço de € 80.848,03 o estabelecimento comercial da farmácia e armazém de produtos farmacêuticos instalado no locado em causa. Por carta registada de 09.05.2005 e sob aviso de recepção, o Réu C... comunicou ao Autor marido que, no dia 09.05.2005, havia procedido ao trespasse da farmácia à sociedade D... Lda. - Comunicação idêntica foi aliás transmitida ao Infarmed e à ANF.

     Não se apurou dos elementos recolhidos a data exacta da transferência do estabelecimento ficando assim por provar que o local tivesse sido trespassado sem que tivesse sido feita a comunicação atempada aos AA. ao arrepio do disposto na alínea g) do artigo 1038º do Código Civil, o que tornaria ineficaz em relação aos apelantes senhorios[6].

     Não se provou de igual modo qualquer facto que descaracterizasse o trespasse, nomeadamente que a transferência do estabelecimento não tivesse sido feita em globo com todos os elementos que o compunham.

     Assim sendo o trespasse apresenta-se como legal e eficaz em relação aos AA.

     Resta agora encarar a alegada falta de pagamento atempado das rendas arvorado também em causa de pedir da resolução do contrato, agora com o fundamento no artigo 1 038º alínea a) do Código Civil.

     Este fundamento encontra-se intimamente ligado à caracterização do contrato que esteve na origem da transferência do estabelecimento; na verdade constatando-se estar em causa um trespasse comunicado aos AA., não tinham estes fundamento para recusar o recebimento das rendas pelo que ao procederem ao respectivo depósito em singelo, de harmonia com o disposto no artigo 22º do RAU, actuaram no exercício de um direito que lhes assistia, no mínimo a partir do momento em que o trespasse lhes foi comunicado, i.e. 9 de Maio de 2005, pelo que a partir de 1 de Junho do mesmo ano só haverá lugar ao pagamento das rendas em singelo.

     Nesta conformidade impõe-se a confirmação da sentença.

     Poderá então concluir-se o seguinte:

     1) A transferência da posição de arrendatário independentemente de autorização do senhorio em caso de trespasse ou cessão de exploração do estabelecimento comercial traduz uma opção do Legislador em prol do favorecimento dos direito dotados de potencialidades geradoras de riqueza face ao arrendamento tout court de cariz estático.

     2) Todavia a transmissão do direito ao arrendamento supõe, e nomeadamente no trespasse, que o senhorio seja informado da transferência do locado pelo trespassante sob pena de aquele poder resolver o contrato.

     3) Cumpridas as formalidades legais para a transferência do arrendamento e na falta de aceitação das rendas o locatário trespassário tem o direito a efectuar o respectivo depósito em singelo nos termos do disposto no artigo 22º ss do RAU.

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     3. DECISÃO.

    

     Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada com o esclarecimento de que as rendas devidas aos AA. reportadas ao locado a partir de 1 de Junho de 2005, o são em singelo.

     Custas pelos Apelantes.

     [1] Cfr. v.g. Orlando de Carvalho "Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial" Atlântida Coimbra 1967, pags. 454, nota 98 e Ac. desta Relação de 11-1-2000 (R. 994/99) in Col. de Jur., 2000, I, 7. Cassiano dos Santos "Direito Comercial Português" I, Coimbra Editora, 2007, pags. 351 ss.

      [2] Cfr. Henrique Mesquita in RLJ 129 pags. 79 e 80,

      [3] Cfr. Pais de Sousa "Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano" Rei dos Livros" pags. 54; Filipe Cassiano dos Santos "Direito Comercial Português", I, Coimbra Editora 2007, pags. 351 ss.

      [4] Poderá consultar-se acerca da destrinça das duas figuras de um modo geral Fernando de Gravato Morais "Alienação e Oneração do Estabelecimento Comercial" Almedina, Coimbra 2005. Na Jurisprudência, ver também Acs. do S.T.J. de 8-1-2004 (R. 3093/2003) in Col. de Jur., 2004, I, 15; desta Relação de 11-01-2000 (R. 994/99) in Bol. do Min. da Just., 493, 426; da Rel. de Lisboa de 15-12-1999 (R. 7384/99) in Bol. do Min. da Just., 492, 476; da Rel. do Porto de 18-10-1999 (R. 9910890) in Bol. do Min. da Just., 490, 318;

      [5] Para além dos Autores citados na Doutrina refiram-se na Jurisprudência os Acs. do S.T.A. de 12-04-2000 (R. 22 347) in Bol. do Min. da Just., 496, 300; desta Relação de 27-10-1992 (R. 564/92) in Col. de Jur., 1992, 4, 93.


      [6] Anotação do Prof. João Calvão da Silva ao Ac. da Rel. de Coimbra de 29-02-2000 in Rev. de Leg. e Jur., 133, 276.