Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53075/18.5YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: OPORTUNIDADE DE DEDUÇÃO DA DEFESA
FACTOS COMPLEMENTARES OU CONCRETIZADORES
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: DECISÃO SUMÁRIA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5º, N.º 1 E Nº 2, B), E 573.º, AMBOS DO CPC.
Sumário: I - Se a ré se defende através de excepção de compensação e se, depois de notificada de documentos juntos para provar a cessão de créditos da autora a terceira entidade, via factoring, se mantém passiva até à audiência de julgamento e só nesta, por entender que a autora deixou de ser titular dos créditos peticionados, pretende que seja apreciada a correspondente excepção substantiva de inexistência de dívida, está-lhe defeso ter tal conduta processual, por desrespeito do aludido princípio da concentração da defesa e inerente falta de alegação dos factos essenciais que integrariam a dita excepção.

II - Não pode o tribunal a quo conhecer de factos complementares/concretizadores de factos essenciais (art. 5º, nº 2, b), do NCPC), quando estes - factos essenciais – não foram alegados.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

 

1. S..., S.A., com sede em ..., instaurou (em Maio de 2018) procedimento de injunção que deu origem a acção declarativa, contra A..., S.A., com sede em ..., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 24.561,37 €, abrangendo capital de 22.996,09 € e juros de mora vencidos, custo com a constituição de mandatário e taxa de justiça paga.

Alegou, para tanto, o não pagamento pela ré, apesar de interpelada a tal, de várias facturas referentes a fornecimentos de areia fina.

A ré contestou, alegando que a autora facturou fornecimentos para a mesma obra a valores unitários diferentes dos contratualmente aceites e sem o convencionado transporte incluído, tendo ela suportado os custos de carregamentos por si transportados. Com esta base invocou compensação de 16.235,56 € a seu favor, sendo apenas devedora de 6.670,53 €.

Foi proferido despacho que não admitiu a referida compensação.

Em 11.1.2019 a autora juntou aos autos documentos, os nºs 20 a 26, também assinados pela ré, comprovativos de conhecimento por esta, em Agosto e Setembro de 2017, da cessão dos créditos daquela sobre a ré ao B..., via contrato de factoring, docs. que foram notificados à ré e que foram admitidos.  

Foi requerida pela autora a redução do pedido, no montante de 6.670,53 €.

Na sessão de audiência de julgamento de 13.1.2022 a ré suscitou a questão de a autora não ser a titular dos créditos que reclama, face aos aludidos docs. nºs 20 a 26, por ter havido cessão de tais créditos ao B..., como decorre do art. 583º, nº 1, do CC.

Em 20.1.2022 a autora juntou aos autos um contrato de factoring, que alegou ser o que se refere nos autos, sobre o qual a R. tomou posição, impugnando-o por um lado e por outro pronunciando-se sobre o seu teor.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

A) Condenou a R. a pagar à A. a quantia de 17.167,87 €, acrescida de juros de mora comerciais, vencidos e vincendos, desde a data da instauração do procedimento de injunção (9.5.2018) até integral pagamento;

B) Absolveu a R. do restante pedido (não abrangido pela redução resultante do pagamento efetuado pela ré à autora no decurso da ação)

*

2. A R. recorreu, formulando as seguintes conclusões:

I. O Tribunal recorrido não aderiu à posição da recorrente, formulada no requerimento antes do inicio da produção de prova na audiência de julgamento de 13-01-2022 e reiterada em sede de alegações.

II. Entendeu o Tribunal recorrido que o requerimento (facto extintivo integrador de uma exceção)

oferecido pela Ré ora recorrente – gravados « através do sistema H@bilus Media Studio existente no Tribunal (das 09:54:40 até às 10:06:50 horas) do dia 13-01-2022, trata de uma questão que foi intempestivamente alegada pela Recorrente, porquanto o deveria ter efetuado antes, designadamente na sua contestação, por via do ónus processual de concentração da defesa na oposição, aquela que podia e devia ter sido invocada na oposição. Ora,

III. Após petição e oposição, foi proferido despacho saneador (em 10/12/2018 ref.ª Citius ...) onde foi dispensada a realização e audiência prévia e notificada a Autora para, querendo, juntar documentos, o que o fez em 11/01/2019 ref.ª Citius ....

IV. Nesse requerimento probatório a Recorrida, por sua livre iniciativa e já depois da petição e oposição, juntou os documentos que - ao que nos importa numerou como n.ºs 20 a 26 -, cuja junção foi admitida pelo Tribunal recorrido no despacho de 20/02/2019, ref.ª citius ..., que designou a data da audiência de julgamento.

V. A fase dos articulados terminou com a prolação do despacho saneador (em 10/12/2018) proferido antes da junção dos documentos pela recorrente (em 11/01/2019).

VI. Após o término da fase dos articulados e como o saneador dispensou a realização da audiência

prévia, as questões de direito e de facto e o exercício do contraditório pela recorrente – que no caso ocorrem da junção dos documentos pela Autora - teriam de ser debatidas oralmente antes do inicio da produção de prova em Audiência de julgamento.

VII. Nesse contexto antes do inicio da produção de prova em Audiência de julgamento a recorrente formulou o seu requerimento, onde se pronunciou sobre os documentos juntos pela Recorrida e dele extraiu/subsumiu a aplicação do direito aos mesmos.

VIII. Tal requerimento foi admitido, concedido o contraditório à recorrida, que juntou 1 documento – contrato de factoring (req. de 20/01/2022 ref.ª Citius ...) para contradizer a posição da Recorrente.

IX. E, o requerimento formulado prende-se com os documentos juntos pela Recorrida (após o término dos articulados) dos quais resulta que a recorrida cedeu os créditos que reclama à Recorrente.

X. A partir do momento das comunicações de cessão de créditos juntas como docs. 20 a 26, verifica-se a produção de efeitos da cessão – art.º 583.º do C.Civ. -, modifica-se a pessoa do credor, que deixa de ser o cedente (Recorrida) e passa a ser o cessionário, in casu, o B....

XI. Uma das consequências dessa modificação é a inoponibilidade ao cessionário do crédito de qualquer pagamento realizado pelo devedor ao cedente, pelo que a sentença recorrida não extingue a obrigação e obriga a Recorrente a correr o risco de pagar duas vezes – cfr. art.º 770.º do C.Civ.

XII. Decorrendo dos documentos que a Recorrida juntou a falta de interesse processual primário,

porquanto não é titular dos créditos que reclama na presente, pelo que, sem alegar e provar que readquiriu o crédito cedido, não o poderá reclamar à recorrente.

XIII. Concluindo-se pois que o requerimento formulado pela Recorrente onde requer a improcedência do pedido por falta de interesse processual primário da recorrida no que às faturas constantes nos documentos n.º ...0 a ...6 juntos diz respeito, foi efetuado no inicio da audiência de julgamento e antes da produção de prova - em momento próprio porquanto os documentos foram juntos depois de terminada a fase dos articulados – deviam as subsunções jurídicas aos documentos juntos pela Recorrida ter sido apreciadas e a recorrente absolvida do pedido.

XIV. De todo o modo, sempre essa questão e direito suscitada pela Recorrente podia e devia ter sido apreciada oficiosamente pelo Tribunal.

XV. A reforma do processo civil atribuiu ao Tribunal a assunção de uma posição muito mais ativa,

por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo.

XVI. Reconhecendo-se agora ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de

alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

XVII. Pela mão da recorrida chegou ao conhecimento do Tribunal – vide docs. 20 a 26 por ela juntos – que esta cedeu os créditos ao B... e que aqui reclama à recorrente.

XVIII. Sabendo o Tribunal desse facto – cedência de créditos que foi objeto de contraditório e de

prova durante a discussão da causa -, estava, na nossa opinião, obrigado a conhecer matéria de direito, de conhecimento oficioso, a que se deixou de atender.

XIX. A partir do momento das comunicações de cessão de créditos juntas como docs. 20 a 26, verifica-se a produção de efeitos da cessão.

XX. Não sendo a Recorrida titular desses créditos, carece de interesse processual primário para requerer o pagamento à Recorrente, o que devia ter sido apreciado e julgado pelo Tribunal.

XXI. Devendo por isso ser determinada a absolvição do pedido da recorrente quanto aos pedidos

referentes às faturas cujo crédito foi cedido.

Termos em que, concedendo provimento à presente apelação, nos termos expedidos nas alegações e conclusões supra, farão V.ªs Ex.ªs a acostumada, Justiça!

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

a. O tribunal a quo decidiu em conformidade com a prova produzida, tendo considerado, e bem, a procedência parcial da acção, tendo condenado a ré ao pagamento do valor das facturas efectivamente em dívida, emitidas pela autora à ré.

b. Entendemos que o Tribunal recorrido efectuou a correcta valoração da matéria dada como provada, bem como de todos os elementos que foram carreados para o processo.

c. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada e o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e valoração da factualidade apurada e de todas as provas produzidas nos autos.

d. Entendemos que a sentença recorrida não enferma de qualquer vício ou reparo, devendo a mesma ser confirmada, mantendo-se inalterada.

e. A recorrente não tem razão, pelo que deverá improceder o seu recurso.

f. Não há qualquer reparo a fazer à decisão proferida nos autos, devendo a mesma ser mantida.

g. O tribunal recorrido efectuou uma correcta valoração da matéria de facto e de todos os factos que foram carreados para o processo, não havendo qualquer reparo a fazer.

h. O Mmo. Juiz a quo formou a sua convicção pela avaliação de todas as provas carreadas para os autos, e nomeadamente, através dos documentos juntos aos autos e pelos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela Autora.

i. A questão previa apresentada na audiência final pela recorrente é insuscetível de produzir os efeitos almejados pela ré, nomeadamente, o de alterar ou corrigir a defesa que, conscientemente, apresentou nos autos.

j. Deve a sentença recorrida ser confirmada e manter-se inalterada.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o recurso interposto pelo recorrente ser julgado improcedente, e ser a sentença recorrida confirmada,

Só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

 

II – Factos Provados

A) No exercício da sua atividade comercial, a autora forneceu à ré, a pedido desta, areia fina 0/2, ao custo unitário de € 10,75 €, com transporte incluído.

B) A autora emitiu as seguintes faturas que se reportam aos fornecimentos referidos na alínea A):

– n.º 16357, emitida em 10/08/2017 com vencimento em 08/11/2017 no valor de € 1.686,67;

– n.º 16358, emitida em 10/08/2017 com vencimento em 08/11/2017 no valor de € 4.127,23;

– n.º 16418, emitida em 21/08/2017 com vencimento em 19/11/2017 no valor de € 355,95;

– n.º 16419, emitida em 21/08/2017 com vencimento em 19/11/2017 no valor de € 3.073,86;

– n.º 16521, emitida em 28/08/2017 com vencimento em 26/11/2017 no valor de € 858,32;

– n.º 16593, emitida em 31/08/2017 com vencimento em 29/11/2017 no valor de € 928,92;

– n.º 16777, emitida em 11/09/2017 com vencimento em 10/12/2017 no valor de € 1.433,59;

– n.º 16778, emitida em 11/09/2017 com vencimento em 10/12/2017 no valor de € 914,05;

– n.º 16873, emitida em 18/09/2017 com vencimento em 17/12/2017 no valor de € 825,88;

– n.º 16874, emitida em 18/09/2017 com vencimento em 17/12/2017 no valor de € 1.090,86;

– n.º 16875, emitida em 18/09/2017 com vencimento em 17/12/2017 no valor de € 3.146,20;

– n.º 17035, emitida em 25/09/2017 com vencimento em 24/12/2017 no valor de € 3.301,79;

– n.º 17178, emitida em 30/09/2017 com vencimento em 29/12/2017 no valor de € 451,10;

– n.º 17583, emitida em 23/10/2017 com vencimento em 21/01/2018 no valor de € 375,52;

– n.º 17584, emitida em 23/10/2017 com vencimento em 21/01/2018 no valor de € 932,84;

C) A autora emitiu as seguintes notas de crédito, relativamente aos fornecimentos referidos na alínea A):

– n.º 533, emitida em 31/08/2017 no valor de € 20,6;3

– n.º 537 emitida em 14/09/2017 no valor de € 480,51; e

– n.º 554 emitida em 30/09/2017 no valor de € 5,55.

III – Do Direito

 

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Inexistência de crédito da A.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Enquanto facto constitutivo do direito da autora, competia-lhe provar a existência de um contrato de onde derivasse uma obrigação a cargo da ré, decorrendo do disposto no artigo 799.º do Código Civil uma presunção culpa do devedor. Por sua vez, à ré incumbia alegar e demonstrar a ocorrência de quaisquer factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor, bem como ilidir a referida presunção de culpa.

A autora provou a causa da sua pretensão (a celebração do contrato, resultando ainda dos factos provados que cumpriu integralmente –e nos termos acordados – a sua prestação contratual).

Não sendo atendível a exceção da compensação, a ré não logrou demonstrar os factos suscetíveis de integrar outra exceção invocada na oposição.

Não foi oportunamente alegado qualquer outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito que a autora invocou.

Admitindo-se que os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa possam ser considerados pelo juiz, à ré cabia alegar os factos essenciais em que se baseiam as eventuais exceções, devendo toda a defesa – por impugnação e por exceção –ser deduzida na oposição (ressalvando as exceções legalmente previstas) (cf. artigos 5.º, n.os 1 e 2, al. b), 573.º e 574.º do Código de Processo Civil).

Por conseguinte, excetuados os casos em que pode ser deduzida defesa fora da contestação, vigora o princípio da concentração da defesa e a consequente preclusão dos meios de defesa.

No caso em apreço, os factos a partir dos quais a ré extraiu as conclusões que na audiência final apresentou, como questão prévia, e que reiterou em alegações finais não foram alegados na oposição, quando, sendo anteriores, eram também do conhecimento da ré.

Aliás, a ré nem pretendeu alegar quaisquer factos modificativos ou extintivos do direito invocado pela autora nesse momento, assumindo que essa alegação não será sequer necessária, bastando suscitar uma questão de direito para suprir a omissão da oportuna alegação dos factos relevantes (sendo que, se a nova defesa que só na audiência final considerou pertinente se traduzisse apenas na impugnação de factos constitutivos alegados pela autora no requerimento de injunção, ainda assim teria que ter sido oferecida na oposição, aí tomando posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pela autora – cf. artigos 573.º, n.º 1 e 574.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

De todo o modo, caso esse requerimento da ré na audiência final visasse, ainda que implicitamente, a alegação desses factos, cabia-lhe a prova da sua superveniência (cf. artigos 573.º, n.º 2 e 588.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil). Essa superveniência nem foi provada nem sequer foi alegada, resultando inequivocamente dos documentos juntos aos autos – inclusive, pela própria ré (cf. docs. juntos em 04/04/2019, com data de 06/02/2017) – que não só os factos em causa teriam ocorrido em momento anterior à apresentação da oposição, como também foram conhecidos pela ré antes de apresentada (toda) a defesa através desse articulado.

Neste sentido, independentemente da conformação jurídica que a ré tenha dado à invocação da matéria que, só na audiência final, lhe ocorreu ser importante, para contornar o regime processual que impõe o referido ónus processual de concentração da defesa na oposição, aquela invocação assenta num facto extintivo integrador de uma exceção que podia e devia ter sido invocada na oposição (estando a ré ciente que, neste caso, a aquisição processual dos factos relevantes dependia da sua oportuna alegação e prova, na medida em que, em relação à contraparte, quando esta alega factos suscetíveis de configurar uma contra-exceção, não deixou de esgrimir esse argumento – cf. ref. ...15).

De resto, estando já ciente das eventuais ocorrências posteriores relacionadas com o crédito da autora, na oposição a ré alegava que aquela “era credora, tão-só, do valor de 6.770,53”, acrescentado mesmo que “só existe o referido valor por regularizar à Requerente, e o mesmo só ainda não foi regularizado porque a Requerente insiste em não resolver as questões pendentes com a Requerida” Acresce que é a própria ré que, em 04/04/2019, refere, em requerimento apresentado neste processo, que “procedeu nesta data ao pagamento do valor que existe em conta corrente a favor da Autora, no total de 6.670,53 EUR (…) e fê-lo nos exatos termos contratualizados entre as partes“ concluindo que “atento este pagamento, o pedido da presente Ação deverá ser retificado em conformidade” (cf. ref. ...01)

Ou seja, tendo exatamente o mesmo conhecimento dos factos, quer na oposição quer naquele requerimento a ré reconhece sempre a autora como credora, contestando apenas o montante da dívida.

Nestes termos, a questão previa apresentada na audiência final é insuscetível de produzir os efeitos almejados pela ré, nomeadamente, o de alterar ou corrigir a defesa que, conscientemente, apresentou nesta ação (não sendo essa conduta processual, no entanto, suscetível de, por si só, configurar uma atuação dolosa ou de negligência grave que se traduza num uso manifestamente reprovável do processo, merecedora de sancionamento por litigância de má-fé processual).

Assim, comprovada a celebração do contrato entre as partes (e não tendo sido oportunamente alegado qualquer evento posterior suscetível de modificar ou extinguir o direito de crédito que dele adveio para a esfera jurídica da autora), sem que a ré tivesse cumprido integralmente a sua prestação, assumindo uma conduta ilícita e culposa que causou danos à autora, caberia a esta pagar as quantias correspondentes aos preços convencionados, com dedução dos montantes a que se referem as notas de crédito perfazendo o total de € 22.996,09.”.

A R. discorda de acordo com os argumentos que apresenta nas suas conclusões de recurso. Mas não tem qualquer razão. Vejamos, então, as objecções que se podem apontar à argumentação da R.

- a 1ª e desde logo a mais importante e decisiva é a de que a recorrente não deduziu impugnação de facto, pelo que este tribunal de recurso apenas considera os factos provados acima elencados. E deles não resulta que a A. não tenha o crédito que reclamou, bem pelo contrário. Só por aqui o recurso da R. teria de improceder in totum.

- em 2º lugar, tendo os docs. 20 a 26, sido juntos aos autos pela recorrida em 11.1.2019, e sido notificados à R./recorrente, a mesma dispunha do prazo normal para se pronunciar sobre os mesmos em 10 dias, impugnando-os – arts. 444º, nº 1, e 446º, nº 1, do NCPC. O que não fez.

Ou, então, considerando-os como relevantes e deles pretender aproveitar-se processualmente a seu favor.

Pronunciar-se sobre tais docs. 20/26, no início da audiência de julgamento é que não podia, por o momento para tal se mostrar precludido.   

- em 3º lugar, a defesa por excepção substantiva, no caso inexistência de dívida à A. por a mesma não ser titular dos créditos reclamados, dada a invocada cessão de créditos, via factoring, que necessariamente se terá de consubstanciar em determinado acervo factual essencial, tinha de ser apresentada na contestação ou supervenientemente, em momento próprio (arts. 5º, nº 1, e 573º, nº 1 e 2, do NCPC). O que a R. não fez - confundindo factos com documentos quando estes apenas visam comprovar aqueles -, tentando contornar tal obrigatoriedade, no início da audiência de julgamento, o que a lei, obviamente, não consente, ou não permite fora do indicado condicionalismo legal.

- em 4º lugar, tentar subsumir ao direito o que desses documentos decorre eventualmente a seu favor não podia ser guardado para o início da audiência, é o contrário. Na verdade, de tais documentos assinados pela R. decorre que esta teve conhecimento, em Agosto e Setembro de 2017, da cessão dos créditos da A. sobre si própria ao B..., via contrato de factoring. Portanto, aquando da apresentação da sua contestação, podia e devia ter invocado logo a excepção peremptória e substantiva de inexistência de créditos peticionados na titularidade da A. Conduta que não adoptou. Sibi imputet.

E mesmo em hipótese, que não se divisa, de conhecimento superveniente subjectivo de tais factos que emanavam de tais documentos, então ainda tinha à sua mão, desde a notificação de tais docs., a possibilidade de apresentar eventual articulado superveniente (art. 588º, nº 1, 2 e 3, b), do NCPC), conduta que também não adoptou.   

- como 5ª objecção, dir-se-á que o tribunal não tinha de conhecer oficiosamente o acervo factual que deriva de tais documentos, ao contrário do que a recorrente defende. Sendo verdade que o tribunal pode conhecer de factos complementares ou concretizadores dos essenciais que as partes hajam alegado, nos termos do indicado art. 5º do NCPC, seu nº 2, b), - nas circunstâncias aí estabelecidas -, ponto ou pressuposto é que a respectiva parte, no caso a R., tivesse previamente, no seu articulado, alegado os ditos factos essenciais em que se baseia a excepção invocada. O que a R. não fez, pois na contestação a única defesa que apresentou, foi defesa por impugnação e por excepção fundada em compensação. Nada mais.

De maneira que é impróprio falar-se em eventuais factos complementares/concretizadores aos factos essenciais se estes nem sequer existem porque nunca foram alegados.      

- Em suma, verifica-se que a conduta processual da R. foi inadequada ao longo da lide, carecendo de fundamento legal a sua argumentação jurídica recursiva.

(…)

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas R./recorrente.

*

                                                                     Coimbra, 23.6.2022

                                                                     Moreira do Carmo