Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
577/18.4T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 892 CPC, LEI Nº 49/2018 DE 14/8
Sumário: 1. O Regime do maior acompanhado, introduzido pela Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, é de aplicação imediata aos processos pendentes, quer no que respeita ao regime processual quer quanto ao regime substantivo nele contido.

2. A sentença a proferir após a entrada em vigor da nova lei deverá respeitar os novos moldes previstos no Regime do maior acompanhado.

Decisão Texto Integral:           







                                                                                     

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

O Ministério Público intenta a presente ação especial de interdição por anomalia psíquica relativamente a M (…), pedindo que se declare a sua inabilitação.

alegando, em síntese, que a Requerida nasceu a 3/12/1959 e padece de doença mental psicose maníaco depressiva que a torna incapaz de sobreviver sem o apoio permanente de outras pessoas;

a Requerida apenas toma a medicação prescrita pelo médico com a supervisão de terceiros.

a Requerida é capaz de se orientar no tempo e no espaço, mas tem receio de sair para o exterior para locais desconhecidos;

conhece o valor do dinheiro mas não sabe fazer contas;

não tem familiares próximos conhecidos;

apresenta um quadro clínico permanente e congénito, sendo incapaz de sobreviver sem o apoio de outra pessoa.

Foi publicada a propositura da ação nos termos do vertido no artigo 892.º, do Código de Processo Civil, não tendo sido possível citar pessoalmente a Requerida em virtude de a mesma não se encontrar capacitada para receber a citação e entender o respetivo conteúdo.

Como curadora provisória foi-lhe nomeada M (…) a qual veio informar que não pretendia deduzir contestação.

Nomeado Defensor Oficioso à Requerida, não apresentou contestação.

Procedeu-se à realização do exame da Requerida, na presença de perito médico, o qual juntou relatório pericial no sentido de se encontrarem preenchidos os pressupostos para a sua declaração de inabilitação, conforme fls. 33 a 38.


*

Foi proferida sentença julgando procedente a presente ação e, consequentemente,

a) Decretou a inabilitação, por anomalia psíquica, de M (…), declarando-a incapaz de, por si só e sem autorização do respetivo curador, dispor de quaisquer bens entre vivos, bem como de administrar quaisquer bens ou rendimentos.

b) Fixou a data do começo da incapacidade da Requerida no dia 3 de Dezembro de 1959.

c) Nomeou para desempenhar o cargo de curadora da Requerida M (…)

d) Nomeou, para desempenhar o cargo de subcurador da Requerida, F (…) e como vogal do Conselho de Família, A (…).


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Inconformado com tal decisão, o Magistrado do Ministério Público dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos a Mma. Juiz tentou agilizar o processado, proferindo uma sentença nos termos do anterior regime das interdições/inabilitações.

2. Os presentes autos tiveram início a 04.04.2018, seguindo os seus trâmites ao abrigo do antigo regime das interdições/inabilitações, previsto nos art. 138.º e ss. do Código Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro e art. 891.º e ss. do Código de Processo Civil na redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho;

3. Porém, antes da prolação da sentença de que agora se recorre, em 10.02.2019 entrou em vigor o Regime do Maior Acompanhado, tendo alterado o paradigma pelo qual se regia o anterior regime legal.

4. Nos termos do art. 26.º da Lei 49/2018 de 14 de Agosto, o supra mencionado Regime tem aplicação imediata aos processos pendentes, devendo o juiz utilizar os poderes de gestão processual para adequar os processos pendentes.

5. Nestes termos, e não obstante a intenção de agilização processual, a sentença de que se recorre deveria ter aplicado o novo regime legal anterior e não o revogado.

6. Assim, aplicando o anterior regime legal das interdições a sentença viola uma lei substantiva em vigor o que consubstancia uma nulidade.

7. Devendo tal sentença ser revogada e substituída por outra nos termos da legislação atualmente em vigor.


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Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de aplicar o novo regime do maior acompanhado instituído pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo entrado em vigor a 19 de fevereiro de 2019 a Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que aprovou o Regime do maior acompanhado, o juiz a quo, por despacho de 20 de fevereiro de 2019, decidiu ser de proferir sentença nos moldes anteriores por se adequarem ao que consta dos autos.

Insurge-se o Ministério Público contra tal entendimento, invocando o disposto no artigo 26º da Lei nº 49/2018, que determinou a aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

Desde já podemos adiantar ser de dar razão ao Apelante.

O artigo 26º da Lei nº 49/2018, não deixa margem para dúvidas no sentido de que o legislador pretendeu a aplicação imediata aos processos pendentes, não apenas das novas regras processuais mas igualmente do regime substantivo nele consagrado, regime este que será aplicável, inclusivamente, às interdições decretadas antes da sua entrada em vigor.

Tal orientação encontra a sua explicação na mudança de paradigma subjacente ao novo regime, reconhecendo a inadequação do anterior processo dualista de interdição/inabilitação, quer pela sua rigidez, quer por centrar os seus objetivos no suprimento de uma incapacidade de exercício de direitos e restringindo a atuação do representante legal aos atos conservatórios do património do interdito, e substituindo-o por outro que visa a máxima preservação da capacidade do individuo e assente em medidas a adotar casuisticamente e periodicamente revistas.

Nas palavras de António Pinto Monteiro, “proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU7 e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão[1].

E, uma vez que o conteúdo do acompanhamento é variável de acordo com as necessidades concretamente evidenciadas pelo sujeito acompanhado, a decisão a proferir nos novos moldes poderá implicar a realização de diligências prévias à mesma.

A utilização dos poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias aos processos pendentes, prevista no nº4 do artigo 26º, terá de ter em consideração os princípios subjacentes a este novo regime, entre os quais destacamos:

- o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário;

- sempre que possível se deverá ter em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva;

- ao Requerente deverá ser dada oportunidade de indicar qual a medida ou medidas que considere adequadas à luz das novas finalidades do procedimento em causa.

Concluindo, a apelação é de proceder, anulando-se a decisão recorrida, procedendo-se às diligências que eventualmente se mostrem necessárias à prolação de uma decisão de acordo com os novos moldes previstos no Regime do maior acompanhado.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando-se a decisão recorrida, determina-se que seja proferida nova decisão à luz do novo regime, procedendo-se as diligências que se afigurarem necessárias

Sem custas.                

                                                                Coimbra, 4 de junho de 2019


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. O Regime do maior acompanhado, introduzido pela Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, é de aplicação imediata aos processos pendentes, quer no que respeita ao regime processual quer quanto ao regime substantivo nele contido.
2. A sentença a proferir após a entrada em vigor da nova lei deverá respeitar os novos moldes previstos no Regime do maior acompanhado.

Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral


[1] António Pinto Monteiro, Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei nº 49/2018”, in Cadernos do CEJ – “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, p. 31. http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.