Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1475/09.8TBTMR-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: FALÊNCIA
EFEITOS
ADMINISTRADOR
EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 147, 155 CPEREF, 371 CPC
Sumário: 1.- O falido/insolvente não é um incapaz.

2.- A sua representação no que respeita à falência/insolvência, pelo Administrador desta, é limitada às questões de natureza patrimonial que interessem à massa insolvente.

3.- Mesmo que todos os bens do falido/insolvente estejam ou devam estar apreendidos para a massa insolvente, o estado daquele não afasta a sucessão.

4.- Em execução movida contra o falido, por acto praticado em momento posterior à declaração de falência, relativo a bem não apreendido para a massa, falecido aquele, devem ser habilitados os seus herdeiros, para com eles prosseguir o processo.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            E (…), habilitada herdeira de I (…), executado no apenso, inconformada com a decisão de habilitação de herdeiros, recorre desta e apresenta as seguintes conclusões:

            a) Versa a presente apelação sobre o despacho proferido pela Mma. Juiz do 3º. Juízo do Tribunal Judicial de Tomar que julgou a ora apelante, em conjunto com o seu irmão consanguíneo e com a viúva do seu pai, habilitada no lugar deste para que contra ela prosseguisse a execução;

            b) O pai da recorrente – o primitivo executado I (…) – foi declarado falido por sentença proferida em 28 de Fevereiro de 2000 no processo que corre (corre ainda) seus termos pelo 2º. Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, sob o nº. 177/98;

            c) Estando pendente o processo de falência, cujos efeitos e tramitação são regulados pelo Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL nº. 132/93, de 23 de Abril, mantinha-se a incapacidade do pai da apelante, quer no momento da prática dos actos objecto do processo executivo, quer aquando da instauração da execução e do falecimento do falido;

            d) O Senhor I (…) morreu na situação de falido, não sendo, por isso, possível habilitar herdeiros;

            e) Nos termos do art. 147º., nº. 1, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, todos os bens, presentes ou futuros, do falido passaram a integrar a massa falida, por efeito da declaração de falência;

            f) A representação do falido deveria já estar cometida, nos autos executivos, à Senhora Liquidatária Judicial, mas não o tendo estado em vida do falido, deverá passar a está-lo agora;

            g) Não deveria ter sido julgado procedente o incidente de habilitação por morte do falido Ilídio Godinho Ribeiro;

            h) A, aliás douta, decisão recorrida procedeu a errada interpretação e aplicação dos nºs. 1 e 2 do art. 147º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.


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            Contra-alegou a exequente do seguinte modo:

            1ª – O Executado Sr. I (…) juntamente com a sua cônjuge declararam-se fiadores e principais devedores do pagamento da quantia em divida mediante empréstimo dado à sociedade “(…)” da quantia de € 350.000,00 à ora Recorrida;

            2ª – Por falta de pagamento do valor em divida a ora Recorrida intentou uma acção executiva contra os três devedores a 03-12-2009;

            3ª – O Executado Sr. I (…) em 06 de Março de 2000 foi declarado falido nos termos do artigo 147.º n.º 1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril;

            4ª – Na pendência da acção executiva o Executado Sr. I (…) faleceu a 03 de Fevereiro de 2012;

            5ª – Tendo falecido na pendência da acção uma das partes, neste caso um dos executados, impõe-se que seja aberto de incidente de habilitação de herdeiros, se existirem, para tomarem o lugar do falecido os herdeiros do mesmo.

            6ª - Sendo que, nos termos do artigo 371.º e sgs do C.P.C requereu a ora Recorrida a habilitação dos herdeiros do referido falecido, tendo por base um  documento público que é uma escritura de habilitação de herdeiros, onde constam como herdeiros legais o cônjuge e filhos do de cujus.

            7ª – Sendo que, não houve repúdio da herança por parte de nenhum dos seus herdeiros. Pelo que, nos termos legais os herdeiros legais sucedem em todas as relações jurídicas do de cujus, de acordo com os artigos 2024.º e segs do C.C, após o seu chamamento.

            8ª – O Sr. I (…) faleceu na qualidade de falido, nos termos do artigo 147.º n.º1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril (CPERREF)

            9ª – A qualidade de falido apenas o priva da administração e disposição dos seus bens presentes e futuros nos termos do CPEREF.

            10ª – O falido, e no caso o executado Sr. I (…), mantém a capacidade e personalidade jurídica o que implica que seja titular de relações jurídicas, que apenas cessam com a morte, nos termos dos artigos 66.º e segs do C.C.

            11ª – Por isso, o falido mantém o poder de ser, entre outros, titular do direito de propriedade. Ou seja, o falido mantém o direito de propriedade sobre todos os seus bens, apenas não poderá dispor ou administrar os mesmos, sendo substituído pelo liquidatário judicial.

            12ª – É errada a afirmação da Recorrente de que o seu pai tendo falecido na condição de falido “não deixou herdeiros já que não era titular de bens ou direitos patrimoniais”.

            13ª – O Sr. I (…) era titular de bens ou direitos patrimoniais, de relações jurídicas, apenas não podia administrar ou dispor dos mesmos, sendo nestes actos substituído pelo liquidatário judicial.

            14ª – Pelo que, o Sr. I (…) sempre manteve os seus direitos, incluindo o direito de propriedade, mantiveram-se activos até ao seu falecimento, tal advinha da sua personalidade e capacidade jurídica que nunca perdeu, nem pela condição de falido. Aquelas apenas cessaram por sua morte.

            15ª – Significa isto que, o Sr. I (…) sempre teve personalidade e capacidade jurídica, até ao seu falecimento, por isso sempre foi titular de relações jurídicas, nomeadamente era proprietário dos seus bens e manteve a condição para ser sucedido pelos seus herdeiros, após o seu falecimento porquanto, os efeitos da declaração de falido não priva que o indivíduo tenha personalidade e capacidade jurídica, seja titular de bens e de relações jurídicas, nem tão pouco o privam de ter a qualidade de ser sucedido.

            16º - Deverá ser confirmado o douto despacho do Tribunal Judicial de Tomar e considerar como habilitados para suceder na acção executiva enunciada os herdeiros legais do Sr. (…), o cônjuge e filhos do de cujus, porquanto foram habilitados para tal em acto público (Escritura de Habilitação de Herdeiros), não houve repúdio da herança por parte daqueles no momento do seu chamamento. Se há aceitação da herança tal implica a sucessão na titularidade de bens (que o falido tinha porque aquela qualidade não priva o direito de propriedade), na titularidade de dividas, em todas as relações jurídicas, o que implica a substituição do de cujus na qualidade de devedor e executado perante a ora Recorrida.


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            A questão a resolver:

            Em execução movida por acto praticado pelo falido, em momento posterior à declaração da sua falência, relativo a bem não apreendido para a massa insolvente, falecido aquele, podem ser habilitados herdeiros?


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            Os factos a considerar são (admitidos por acordo e provados por documentos):

            Em 3.12.2009, a Recorrida intentou uma acção executiva contra a sociedade “(…)”, I (…) e sua mulher.

            O executado I (…) foi declarado falido por sentença proferida em 28 de Fevereiro de 2000 no processo que corre termos pelo 2º. Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, sob o nº. 177/98.

            Na pendência da execução, no dia 3.2.2012, o Executado I (…) faleceu.

            Com base em Escritura de Habilitação de Herdeiros, por despacho do Tribunal Judicial de Tomar foram habilitados, para com eles prosseguir a referida execução, os herdeiros legais do Sr. I (…): o seu cônjuge e filhos.

            A Recorrente E (…) é filha do falecido.

            O bem envolvido não foi apreendido para a massa falida (ver despacho recorrido).


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            A declaração de falência de (…) foi emitida no âmbito do DL nº132/93, de 23.4, interessando especificamente os seus arts.147º e 155º.

            Considerando a sucessão de leis (Código de Processo Civil, aquela lei e o regime posterior ao DL nº53/2004), no que respeita às limitações para o falido administrar e dispor dos seus bens e quanto à sua representação no que respeita à falência, o essencial do seu regime comum não se alterou.

            Apesar das divergências doutrinais quanto à qualificação do estado do falido, é ponto comum dizer-se que este não é um incapaz. Sempre se excluiu a ideia de uma incapacidade geral de exercício.

            Os negócios que praticar, violando a situação de indisponibilidade dos seus bens, conservam-se válidos, podendo produzir os seus efeitos, quando e onde não prejudiquem a massa falida.

            (Ver Mota Pinto, Teoria Geral, 1976, página 321; na sua 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2012, página 255; no Código Anotado por C. Fernandes, J. Labareda, em 1994, nas páginas 354 e 366, e em 2009, nas páginas 337 a 343; acórdão do STJ, de 23.9.2004, no processo 04B2274, em www.dgsi.pt.)

            Apenas os negócios por si realizados posteriormente à declaração de falência são "inoponíveis" à massa falida, podendo, contudo, ser confirmados pelo liquidatário judicial quando nisso haja interesse para a massa falida (art.155º do Código de 1993).

            O falido não sofre de qualquer limitação nos seus direitos pessoais, na sua profissão (estamos no âmbito do regime comum), é livre de aumentar o seu património e pode administrar os bens estranhos à falência, ou seja, os não incluídos na massa falida ou insolvente.

            Por outro lado, a sua representação no que respeita à falência, pelo Administrador desta, é limitada às questões de natureza patrimonial que interessem à massa.

            É certo que aqui não podemos assegurar que o pretenso acto praticado em 2009, pelo falecido, não possa ser atingido/limitado pelos efeitos decorrentes da declaração de falência.

            É esclarecido pelo despacho recorrido que o bem onerado e que está na execução não está apreendido para a massa falida.

            As questões relativas à inoponibilidade/ineficácia do seu acto não dizem respeito ao incidente de habilitação de herdeiros e estarão mesmo fora do processo executivo em questão.

            O crédito inerente e o bem envolvido poderão constituir uma realidade nova que escape à antiga falência.

            Pergunta-se agora: o estado de falido afasta a sucessão?

            Na sequência do afirmado, mesmo que todos os bens do falido estejam ou devam estar apreendidos para a massa falida, mesmo que o falido não tenha bens ou direitos patrimoniais, a posição daquele não será vazia.

            Mais, mesmo no caso da “herança vazia”, não é afastada a qualidade de herdeiro. (Ver O. Ascensão, Sucessões, Coimbra Editora, páginas 277 a 280.)

            A sucessão não pressupõe apenas bens ou preocupações patrimoniais (ob. citada, páginas 36 e 37).

            A sucessão procura resolver o facto de situações jurídicas terem ficado sem titular.

            Sendo certo que o estado de falido, só por si, não afasta a sucessão, no caso concreto há claramente situações jurídicas patrimoniais a merecer a definição do seu titular.

            Como a situação de pessoa falecida é mais ampla e complexa que a de pessoa limitada pela falência, a “representação” daquela não se fará com o Administrador desta. O suprimento das limitações dos poderes a que o falido é sujeito faz-se por via da representação naqueles poderes, o que é diferente da sua total posição jurídica.

            A intervenção do liquidatário na execução não é necessária. O acto em questão já foi praticado e se porventura afectar a massa falida, ele será inoponível a esta.

            Trata-se então de colocar na posição do falecido, que deixou múltiplas situações jurídicas, não apenas as da falência, as pessoas definidas na lei sucessória, nos termos desta – aquelas consideradas melhor colocadas para defender todos os interesses do falecido e não apenas os limitados à massa falida.

            Tem razão a exequente: a lei não priva o falido do seu património, o falido não perde a sua personalidade e capacidade jurídicas (salvo com a morte), o falido é apenas privado da administração e do poder de dispor dos seus bens, que integrem ou devam integrar a massa falida. O bem em questão não foi apreendido para a massa falida.

           

            Por tudo isto, respondendo à questão, em execução movida contra o falido, por acto praticado em momento posterior à declaração de falência, relativo a bem não apreendido para a massa, falecido aquele, devem ser habilitados os seus herdeiros, para com eles prosseguir o processo.

            Prosseguindo o processo, com eles, herdeiros, se discutirá as eventualidades subsequentes, nomeadamente uma suspensão inerente à apreensão do bem para a massa falida.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.


 

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura

 Luís Filipe Dias Cravo