Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
195/14.6T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE EXPLICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
FORMULÁRIO PRÉ-IMPRESSO
RENÚNCIA ABDICATIVA
Data do Acordão: 05/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 809.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTS. 1.º, N.º 3, 5.º, 6.º E 8.º, ALÍNEAS A) E B) DO DL N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO
Sumário: I) Constitui renúncia abdicativa a declaração do lesado em acidente de viação na qual, após subscrever o recibo emitido por seguradora em seu nome, afirma que com o pagamento da quantia constante do recibo “considerar-se-á completamente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do sinistro (…)”.

II) A renúncia abdicativa outorgada pelo lesado num acidente de viação num formulário pré-impresso da seguradora está sujeita ao regime das cláusulas contratuais gerais, estando por isso a seguradora sujeita aos deveres de comunicação, informação e explicação previstos nesse regime, sem o cumprimento dos quais aquela renúncia é nula e não produtora de qualquer efeito.

III) A renúncia abdicativa antecipada é inválida se o renunciante não estiver de posse de todos os elementos que lhe possibilitem medir o alcance e consequências do seu acto, com a consequente inutilização absoluta da renúncia.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... instaurou no Juízo Central Cível de Viseu, Comarca de Viseu, uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B... – COMPANHIA DE SEGUROS S.P.A. – Sucursal em Portugal da C... , hoje B...– COMPANHIA DE SEGUROS S.A., pedindo a condenação da Ré a:

a) Facultar ao autor todos os tratamentos médicos necessários à reparação e minimização dos danos sofridos, suportando e custeando os encargos e valores inerentes a tais tratamentos;

b) Suportar e custear todas as despesas médicas e medicamentosas inerentes à reparação e minimização dos danos sofridos e das dores de que venha a padecer até ao fim dos seus dias;

c) Pagar à autora, a título de reparação pelos danos, por esta, sofridos, a quantia total de €59.305,41 (cinquenta e nove mil, trezentos e cinco euros e quarenta e um cêntimos). Alega, para tanto e em suporte da pretensão que formula e com a qual pretende obter ganho de causa, a ocorrência de um acidente de viação que traduziu num embate no veículo automóvel que conduzia, quando circulava na sua “mão de trânsito”, protagonizado por um veículo pertencente a sociedade, da qual o condutor era empregado/funcionário/vendedor, conduzindo o veículo em questão no interesse e sob a direcção da mesma sociedade, sua entidade patronal, a qual, por sua vez, havia transferido a sua responsabilidade civil para a sociedade Ré, por contrato de seguro então válido e eficaz; embora tenha assumido a responsabilidade decorrente do acidente, a Ré recusa-se a reparar na íntegra os danos sofridos pelo Autor, quer patrimoniais, quer não patrimoniais.

Citada, apresentou a Ré B... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., contestação na qual, em resumo, aceitou a existência do seguro invocado pelo A., bem como a inteira responsabilidade do condutor do veículo por si seguro pelos danos ocasionados no acidente descrito na p.i.; no entanto, conforme documento intitulado de “Acta de Acordo de Liquidação do Sinistro” que o A. subscreveu, foi este integralmente ressarcido pela Ré de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente mediante o recebimento da quantia de € 2.781,58; rejeita as limitações funcionais e necessidade futura de tratamentos e despesas médico-medicamentosas aduzidos pelo A. (dedo mindinho, olho direito, prótese dentária), bem como a incapacidade absoluta para o trabalho e a existência de despesas já realizadas no montante de € 2.000,00; termina adversando que o A. já foi indemnizado de todos danos através do seguro de acidentes de trabalho de que na altura beneficiava. Termina com a improcedência da acção e a correcção do valor da acção para € 34.305,41.

Respondeu o Autor refutando que a declaração por si subscrita e agora junta pela Ré configure a impossibilidade de reclamação de indemnização pelos danos agora invocados, uma vez que ao emiti-la o fez sem consciência do seu significado, ou, pelo menos, com erro; em todo o caso, mesmo depois de emitida tal declaração, a própria Ré reconheceu que subsistiam danos por reparar. Rematando como na petição inicial, requereu ainda a condenação do A. como litigante de má fé em multa e indemnização.

A final foi a acção julgada parcialmente procedente por parcialmente provada, e, em função disso, a Ré condenada a pagar ao Autor A... € 3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais; € 7.000,00 (sete mil euros) a título de perda da capacidade de ganho/dano biológico; € 7.305,41 de perdas salariais durante o período de baixa; a facultar ao Autor todos os tratamentos médicos necessários à reparação e minimização dos danos sofridos, suportando e custeando os encargos e valores inerentes a tais tratamentos, na parte relativa á dentição, por força da situação fixada nos factos; e, bem assim, a suportar e custear todas as despesas médicas e medicamentosas inerentes à reparação e minimização dos danos em causa.

Do mais peticionado foi a Ré absolvida.

Inconformada, deste veredicto recorreu a Ré B... , recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colheram-se os vistos.

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a recorrente levanta as seguintes questões:

Reapreciação da matéria de facto;

A quitação integral;

Reparação do dano biológico;

Reparação do dano patrimonial das perdas salariais;

Dedução do valor já pago pela seguradora apelante.

Contra-alegou o A e apelado, pugnando pela confirmação do decidido.

Reapreciação da matéria de facto.

(…)

Nesta conformidade, na parcial procedência da impugnação nos estritos termos que se deixaram exarados, é a seguinte a factualidade que se tem por definitivamente provada:

1 No dia 12 de Setembro de 2012, pelas 11:20h, o aqui Autor, portador da carta de condução n.º (...) , nascido a 21 de Setembro de 1951, foi vítima no acidente de viação que ocorreu, na Avenida Dr. Borges da Gama, na localidade de Prime, freguesia de Fragosela, concelho e comarca de Viseu, quando circulava ao volante do veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (...) PS, à data propriedade de D... , Lda.

2 No descrito circunstancialismo de tempo e lugar o Autor conduzia o PS na dita Av. Dr. Borges da Gama, no sentido Prime-FragoselaViseu, ocupando a metade direita da faixa de rodagem, visto o apontado sentido de marcha, circulando o mais à direita possível, enquanto que em sentido contrário circulava o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (...) HN, conduzido por E... , veículo registado em nome da sociedade F... Lda.

3 A certa altura o HN invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação do veículo conduzido pelo Autor atento o seu descrito sentido de marcha, vindo a embater na frente deste veículo.

4 O embate deu-se na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do PS.

5 Na data e local havia boa visibilidade e o embate deu-se em plena luz do dia, quando estavam boas condições atmosféricas.

6 Na sequência do acidente o Autor foi assistido no local pelos Bombeiros e a seguir transportado à Urgência do Hospital de São Teotónio em Viseu, onde foi assistido e em cuja ficha consta o seguinte: " ... Acidente de viação com choque frontal Rx dedos da mão sem evidentes lesões traumáticas agudas O doente refere que perdeu peças dentárias durante o acidente …queixas álgicas a nível da hemiface direita e cotovelo esquerdo. Nega cervicalgias ou dorso-lombalgia Queixas ligeiras a nível dos joelhos Clinicamente mobilidade pescoço normal, sem dor Mobilidade passiva do cotovelo esquerdo normal, sem crepitação. Escoriações várias nos membros superiores com mobilidade activa dos joelhos normal Rx da bacia coluna cervical, cotovelo e joelhos sem imagens sugestivas de fracturas ... ...TAC cerebral e maxilo-facial sem traços de fractura; hematoma dos tecidos moles da região malar… Levava cinto de segurança e bateu com a cabeça, apresentando várias escoriações da face com volumoso hematoma na região malar direita e ferida do nariz que se suturou com nylon 4/0 Hematoma do cotovelo esquerdo sem aparente limitação funcional refere queixas álgicas torácicas anteriores".

7 Mais consta de tal relatório que “Foram solicitadas avaliações complementares de Oftalmologia, Ortopedia e Medicina Dentária”.

8 No âmbito destas perícias consta o seguinte: Conclui a Oftalmologia que «Não é possível admitir nexo de causalidade entre o evento traumático e as lesões descritas. O examinando não apresenta sequelas oftalmológicas resultantes do evento traumático, e por conseguinte, não é quantificável défice funcional permanente, assim como, não é previsível a ocorrência de danos futuros ou necessidade de dependências correlacionadas. O examinando apresenta patologia não traumática (blefarite/olho seco) que requer avaliação clínica e terapêutica especializadas». Conclui a Ortopedia que «Atendendo à ausência de alterações/anomalias nos exames auxiliares de diagnóstico realizados (nomeadamente EMG do membro superior direito e RM da mão direita), bem como do exame objectivo realizado e descrito, concluímos não existirem sequelas do foro ortopédico relacionadas com o evento traumático em apreciação». Conclui a Medicina Dentária propôr ... «uma incapacidade permanente geral fixável em 15,45 pontos», acrescentando que « ... o examinado poderá beneficiar com o equilíbrio oclusal e a retenção da prótese superior», sendo que no relatório desta especialidade consta que o Autor se queixa que a “prótese superior está instável, cai quando está a comer e «morde-se». Refere ainda que a língua está áspera e que tem algumas limitações alimentares, que constrangem a vida social com os amigos”.

9 Ainda do relatório da Medicina Dentária consta que “os achados clínicos e imagiológicos decorrentes da observação do examinado revelam que existe uma instabilidade dos movimentos mandibulares, que prejudica a estabilidade da prótese e justifica as queixas do examinado”.

10 A seguir, no Relatório da Avaliação Médico-Legal conclui-se que “os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática e o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões”.

11 Em função da data da consolidação médico-legal das lesões ter ocorrido em 31 de Agosto de 2013, a perícia fixou os seguintes elementos: Défice Funcional Temporário Total: entre 12/09/2012 e 19/09/2012, fixável em 8 dias; Défice Funcional Temporário Parcial: entre 20/09/2012 e 31/08/2013, fixável em 346 dias; Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total: entre 12/09/2012 e 31/08/20013, fixável em 354 dias.

12 Em sede de quantum doloris ela foi quantificada no grau 2 numa escala máxima de sete graus, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados

13 No âmbito dos DANOS PERMANENTES são valorizáveis os seguintes: Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 15,45 pontos; Repercussão Permanente na Actividade Profissional: as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual; Dano Estético Permanente: fíxável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspectos: a alteração ao nível da voz e a alteração da mímica facial; Dependências de Ajudas: “o examinando poderá beneficiar com o equilíbrio oclusal e a retenção da prótese superior”.

14 No respeitante ao dedo mínimo - também conhecido por dedomindinho” - da sua mão direita, na pendência da acção o Autor queixase de não conseguir mexê-lo e suporta dores que dificultam o seu dia-a- dia e o limitam na execução de tarefa a realizar, como seja pegar em alguns objectos e atar os atacadores dos sapatos.

15 Também em consequência das dores de que padece, o Autor tem dificuldade em dormir repousadamente.

16 O olho direito do Autor, na actualidade, lacrimeja algumas vezes, com turbação da visão, causando-lhe um mau estar físico e psíquico.

17 Antes do acidente de viação o A já usava prótese dentária acrílica superior, para substituição da falta de 12 dentes, e prótese dentária acrílica inferior, também para substituição da falta de 12 dentes, sem qualquer queixa da sua eficácia.

18 No acidente dos autos o Autor perdeu não só as próteses removíveis, superior e inferior, como os dentes que as suportavam.

19 A expensas da Ré o Autor submeteu-se a tratamento clinico dentário, tendo o médico especialista recomendado reabilitação através de 1 prótese acrílica total superior, e uma total inferior suportada em dois implantes, pois a sua condição física não apresentava rebordo ósseo de volume suficiente para reter uma prótese muco-suportada.

20 O tratamento foi efectuado ao Autor, no decurso do ano de 2013.

21 Dado que o Autor se queixou à Ré, que se não adaptava convenientemente à prótese superior, em momento no qual já havia recebido a indemnização mencionada infra, a Ré designou consulta na Clínica Médica dentária dos Olivais, a 12 de Dezembro de 2013.

22 Nessa data o Autor compareceu sem prótese, e não pode ser avaliado pelo médico especialista Dr. G... , voltando para nova consulta a 30/01/2014.

23 Foi então consultado pelo Dr. G... , que considerou que as próteses estavam confortáveis ao uso, e que o A falava normalmente, pelo que concluiu que a prótese superior não apresentava deficiência de adaptação ou de uso, que justificasse a sua substituição ou outra solução.

24 Em relatório então enviado à Companhia de Seguros, em Janeiro de 2013, reafirmada em Junho de 2013, foram apresentadas razões para as dificuldades que o autor iria experimentar com a prótese maxilar, tendo sido proposto à Seguradora a execução de uma reabilitação fixa sobre implantes, para o que seria necessário fazer um exame prévio, uma TAC dentascan.

25 Tal exame foi efectivamente realizado e em Outubro e Novembro de 2013 foi proposto um plano de tratamento orçamentado.

26 Desde essa data não houve por parte da Ré qualquer contacto.

27 O referido diagnóstico mantém-se no presente, no sentido de que “...a extrema reabsorção maxilar não permite uma conveniente estabilidade da prótese e em consequência alterações fonéticas e uma deficiente mastigação...”.

28 No relatório médico de especialidade consigna-se que existe “uma instabilidade dos movimentos mandibulares, que prejudica a estabilidade da prótese e justifica as queixas do examinado” e ainda que “o examinado poderá beneficiar com o equilíbrio oclusal e a retenção da prótese superior”.

29 Todos estes elementos causam dores e mal estar ao Autor.

30 Para obviar/diminuir as dores de que padece, por vezes o Autor tem de socorrer-se de medicamentos, comprimidos e pomadas.

31 Em 5 de Setembro de 2013 a Ré propôs ao Autor o recebimento de uma indemnização nos seguintes termos: Dano biológico -1 ponto -€422,81; Quantum doloris – 4/7 - €878,64; Dano estético - 1 ponto - €878,64; ITA até 7 de Fevereiro 2013- €452,68; Despesas de transporte- 667 klms x 0,15 • €109,05, num total de € 2.781,58 (dois mil setecentos e oitenta e um euros e cinquenta e oito cêntimos).

32 Na sequência o Autor subscreveu a “Acta de Acordo de Liquidação de Sinistro”, na qual consta que, com o pagamento da quantia constante do recibo “considerar-se-á completamente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do sinistro a que se reporta o processo acima indicado, dando assim plena quitação à B... -Companhia de Seguros”, remetida à Ré em 12 de Setembro de 2013.

33 À data do acidente o Autor desempenhava a actividade profissional de vendedor – em cumulação com a qualidade de sócio-gerente – na sociedade D... , Lda, cuja insolvência foi decretada a 6 de Fevereiro de 2013.

34 Nessa qualidade e na data do acidente o Autor auferia uma retribuição base de € 1.043,63.

35 Na sequência do acidente de viação, a aqui Ré, instruído o seu processo, a que atribuiu o n.º 2012 008 0084 010763 E007, assumiu a responsabilidade pelo acidente de viação supra referido.

36 E ainda na sequência dessa assunção de responsabilidade, além de ter agendado consultas de acompanhamento médico, a Ré pagou a indemnização inerente à incapacidade temporária absoluta para o trabalho no período compreendido entre 12 de Setembro de 2012 e 22 de Janeiro de 2013, sendo que o Autor esteve de baixa médica desde a data do acidente- 12 de Setembro de 2012 -até 31 de Agosto de 2013, por ordem e determinação dos peritos médicos contratados pela aqui Ré.

37 O veículo de matrícula (...) HN tinha a sua responsabilidade civil transferida para a Ré pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...)

38 – As quantias referidas no facto provado em 31 foram pagas pela Ré ao Autor.

                                                                       *

A extinção do crédito indemnizatório do A..

Na sentença recorrida concluiu-se que, ao emitir a declaração junta aos autos – é a declaração de fls. 64, intitulada “Acta de Acordo de Liquidação do Sinistro”, remetida à Ré em 12 de Setembro de 2013, nos termos da qual o A. declara aceitar que, com o recebimento da quantia paga pela Ré no valor de € 2.781,58 se considera “integralmente ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do sinistro (…)” – não se operou qualquer “excepção extintiva” do direito do Autor a reclamar a indemnização dos autos.

Rebela-se a apelante contra este entendimento pugnando pela tese de que aquela declaração e o recebimento da aludida verba pelo A. significam a preclusão de toda a pretensão indemnizatória do A. fundada nos danos de qualquer natureza provenientes do acidente de viação em causa.

Vejamos.

Sobre o tema em questão foi-nos possível encontrar duas posições jurisprudenciais básicas, cada uma delas qualificando/perspectivando diversamente este modelo esterotipado de declaração, modelo que é recorrentemente usado pelas seguradoras para se livrarem da sua responsabilidade no que concerne aos créditos indemnizatórios dos lesados por acidente de viação ou de trabalho (quando, como é óbvio, aceitem de algum modo a responsabilidade do respectivo segurado, como é o caso).

A primeira é aquela que, socorrendo-se do disposto nas regras de interpretação das declaração negocial dos art.ºs 236 e 238  do C. Civil, tem por válida e eficaz a declaração do lesado de que com o recebimento de determinada verba se dá por totalmente ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais oriundo do acidente, embora não podendo abranger os danos que se venham a revelar posteriormente à sua emissão por nesse momento não serem conhecidos do declarante/lesado (cfr. o Ac. do STJ de 23.01.1996, proferido no P. 96B290, relatado pelo Cons. Joaquim de Matos, e o Ac. da Relação do Porto de 14.07.2020, proferido no P. 5910/19.T8PRT.P1, Relator Des. Aristides R. Almeida, ambos disponíveis em www.dgsi.pt ). Na orientação deste último aresto, a situação do eventual excesso de crédito de que a seguradora fica isenta mediante o pagamento da importância oferecida é vista como configurando o resultado de uma remissão abdicativa (perdão parcial) do art.º 863 do CCivil por parte do lesado/credor (não obstante o sumário aludir a renúncia abdicativa).

A segunda é a que, convocando o regime das CCG constante do DL 446/85 de 25/10, atento o n.º 2 do art. 1º, na redação introduzida pelo DL n.º 249/99, de 07.07 (visto que este abrange todas as cláusulas predispostas unilateralmente que não tenham sido objecto de negociação individual mesmo inseridas em contratos individualizados), lê aquela declaração de um ângulo distinto, ou seja, como representando  uma declaração pré-elaborada ou pré-formatada pela seguradora – que se apresenta como parte pré-disponente – para ser utilizada em série ou massivamente, sem admissão de negociação, limitando-se o lesado a aceitar ou não o seu conteúdo.

Vai neste sentido o Ac. da Rel. do Porto de 04.06.2015, P. na Apelação nº 53683/13.4TBVNG.P1 (Relatado pelo Desemb. Leonel Serôdio) igualmente disponível em www.dgsi.pt, no qual é ainda notado que o regime das CCG é oficiosamente aplicável por se tratar de matéria de direito; e que não tendo a seguradora como parte pré-disponente cumprido o ónus de alegar e provar que informou e explicou ao lesado/aderente o conteúdo da cláusula, nos termos dos art.ºs 1º, nº 3, 5º, 6º e 8º, al.ªs a) e b) do DL nº 446/85, ocorre a respectiva nulidade, vício que o tribunal pode e deve conhecer ex officio (art.º 286 do CC). Ex abundante acrescenta-se:

“Noutra linha argumentativa, a referida declaração apenas podia ser interpretada como renúncia abdicativa, por não se encontrar ainda definida a real extensão dos danos e neste caso seria nula atento o estatuído no art. 809º do Código Civil, que comina com nulidade a cláusula pela qual o credor renuncia ao direito ainda não definitivamente adquirido, sendo pacífico que esta nulidade da renúncia antecipada vale para a responsabilidade delitual”.     

Uma vez expostas estas possibilidades de subsunção, vejamos agora como se há-de configurar a declaração do lesado acima transcrita.

Tal como se pode colher de uma sumária inspecção do documento de fls. 64, é patente que ele integra um formulário pré-impresso pela Ré seguradora, com o respectivo timbre, sendo o documento designado de  “Acta de Acordo de Liquidação de Sinistro”, aí se indicando o valor do recibo (€ 2781,58), seguido de uma declaração já impressa na qual a chamada “Entidade Recebedora (o Autor) afirma que “com o recebimento do montante mencionado, se considera ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do sinistro a que se reporta o processo supra indicado, dando plena quitação à B... - Companhia de Seguros e subrogando-a em todos os direitos acções e recursos contra possíveis responsáveis nos termos da lei”.

Não se nos afigura que haja aqui um contrato de transacção (art.º 1248, nº 1 do CC), porquanto, não se depreendendo que existisse então um litígio efectivo (a dirimir) ou sequer latente (a prevenir), também não é perceptível a dimensão do que terão sido as hipotéticas concessões da seguradora (não emerge dos autos que o A. alguma vez lhe tenha dado a conhecer a sua pretensão indemnizatória).

Como não se vislumbra que da parte do lesado tenha havido uma intenção de remitir (perdoar) o eventual excedente da indemnização – informação de que necessariamente ele não dispunha. Pelo que pensamos ser desajustado trazer para aqui o conceito de remissão abdicativa do art.º 863 do CC[1].

A declaração do A. subsequente ao recibo/quitação constitui antes uma declaração negocial unilateral de extinção do direito à indemnização pela via da renúncia abdicativa a que se reporta o art809 do C. Civil.

Para Rui Pinto Duarte[2] a renúncia é um negócio jurídico unilateral pelo qual o seu autor extingue um direito de que é titular[3].

Tradicionalmente, a renúncia reporta-se à extinção de direitos determinados, pode assumir natureza abdicativa ou atributiva, causal ou abstracta (de causa indiferente), e tem sempre origem num facto jurídico que integra uma declaração com efeito negocial e efeitos legais (neste sentido, veja-se Francisco M. de Brito P. Coelho, A renúncia abdicativa no direito Civil, Stvdia Iuridica 8, Coimbra Ed., 1995, fls. 7-13 e 73-82).

A renúncia a um direito de crédito não perde a natureza puramente abdicativa pela circunstância de o credor receber uma parcela desse crédito.

Esta parcela não é uma contrapartida liberatória: faz parte do próprio direito do abdicante.

É o que se passa com a declaração emitida pelo A..

Na verdade, mediante o recebimento do valor constante do recibo o A. afirmou renunciar ao eventual excedente de indemnização que lhe pudesse ser devida por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais com origem no sinistro.

O aludido art.º 809 do C. Civil comina a nulidade apenas para a renúncia abdicativa antecipada.

Em anotação a este preceito no seu C. Civil Anotado (Coimbra Editora, 1968, V. II, p. 56) P. de Lima e Antunes Varela definem como antecipada a renúncia que ocorre até momento da mora ou do não cumprimento.

É claro que no domínio da responsabilidade contratual o crédito indemnizatório do contraente fica em geral definido e estabilizado nesse momento, compreendendo-se que a partir daí o legislador tenha querido confira validade à renúncia do credor, conhecedor como, em regra, já então se encontrará de todos os pressupostos e extensão do seu direito.

Mas já no domínio da responsabilidade extracontratual decorrente de um acidente de viação é frequente que a amplitude/extensão dos danos patrimoniais e não patrimoniais dos lesados se evidencie muito tempo após o facto, isto é, sobre o momento do acidente.

Aqui, a antecipação que releva para os efeitos do art.º 809 terá necessariamente de abranger todo o lapso temporal que decorra até que se verifique a liquidação do crédito que provenha dos novos danos ou da nova dimensão de danos já existentes, por só então se poder falar de mora do credor no cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar, de harmonia com o preceituado na 1ª parte do nº 3 do art.º 805 do CC. 

Não é equiparável a posição de um lesado que, patrocinado por advogado, demanda judicialmente a seguradora com vista à indemnização do conjunto dos danos patrimoniais já determinados e daqueles que provavelmente ainda virão a revelar-se, com a daquele lesado que, muitas vezes em contexto de falta de recursos, é confrontado com um recibo de um qualquer valor cujo pagamento lhe é prometido pela seguradora responsável a troco de uma renúncia ao excedente indemnizatório que lhe poderia ser devido.

A declaração elaborada apenas pela seguradora Ré e ora apelante que consta do facto provado em 31 apresenta-se somente como um instrumento por esta previamente preparado/elaborado para captar uma quitação sem limites e pôr termo a qualquer desiderato ressarcitivo do A. que excedesse aquele valor. Aliás, não há qualquer indicação de que o A., enquanto lesado/credor tenha sido advertido para o que poderia perfazer a totalidade do quantum indemnizatório dos danos decorrentes do acidente, advertência que lhe permitiria uma reflexão e ponderação serena antes de subscrever o escrito abdicativo; tão pouco é de crer que ele tivesse uma noção aproximada dos danos que poderiam intervir no cálculo desse quantum. De resto, é por demais patente que não sendo jurista nem apoiado por advogado, só por si, o A. não poderia estar mínimamente habilitado a aferir da adequação dos valores indemnizatórios que a Ré lhe propõe e que suportam o recibo. A sua situação é de uma renúncia abdicativa antecipada ou cega, dado que os pilares fundantes da integralidade do seu crédito indemnizatório não podiam ser por si conscientemente visualizados e sopesados. Não podia, pois, emitir um juízo criterioso sobre a natureza e extensão dos danos a cuja reparação teria direito. É esta a ratio do art.º 809 do C. Civil.

Entretanto, que também danos houve que só posteriormente à data da declaração foram detectados. A ulterior demonstração de novos danos ou de uma maior extensão nos danos já verificados que está comprovada em 21 a 30 dos factos provados não pode deixar de invalidar a anterior renúncia abdicativa do A.. Com efeito, a renúncia do lesado deve ser tida como antecipada se tivermos em atenção que não podia haver mora da seguradora no cumprimento da sua obrigação ressarcitiva quanto a essa nova vertente indemnizatória.

Como pondera Ana Filipa M. Antunes no seu estudo “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos”, p. 94[4], “ (…) a renúncia tendo a natureza de acto jurídico pressupõe nos termos gerais a consciência e vontade de renunciar pelo sujeito renunciante (…) o acto de renúncia tem de se sustentar numa vontade qualificada, isto é madura, livre, esclarecida no plano da motivação (..) Esta tripla exigência reclama, em termos práticos, que se examine o conhecimento ou, pelo menos, a cognoscibilidade pelo renunciante do universo de situações jurídicas de que é titular e pretende abdicar (…)” .

Diferentemente do que é o entendimento de alguma jurisprudência, a nulidade da renúncia abdicativa não serve apenas para excluir do seu âmbito o direito de crédito relativo à indemnização dos danos posteriormente verificados ou cuja extensão se manifesta em fase ulterior. Inutiliza a renúncia pura e simplesmente.

Na direcção propugnada – de que a renúncia abdicativa é inválida se o renunciante não estiver de posse de todos os elementos que lhe possibilitem medir o alcance e consequências do seu acto – pode ver-se o Ac. da Rel. do Porto de 26.02.2008, Rel. pelo Des. Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma que “Se no momento em que uma declaração de quitação e renúncia abdicativa é produzida não se encontra definida extensão real do dano vale integralmente o princípio que preside à cominação de nulidade do art.º 809 do C. Civil”. Com idêntica interpretação, mas denotando uma concepção aparentemente mais objectivista ou restrita da ideia de antecipação – que não é aquela que subscrevemos – pode citar-se o Ac. desta Relação de 13.11.2018, Rel. pelo Des. Alberto Ruço, disponível no mesmo sítio, onde se proclama que a validade do acto de renúncia ao direito de indemnização tem de ser aferida, tendo presente o art.º 809, à luz do universo de danos cujos factos causadores já estavam formados no momento da sua fixação.[5]

De todo o modo, a renúncia abdicativa do A. no documento de fls. 64 está irremediavelmente prejudicada pela considerável extensão dos danos que vieram a revelar-se a posteriori.  

Com este fundamento teríamos logo que por considerar nula a renúncia abdicativa do A. plasmada no documento de fls. 64.

Mas acompanhamos ainda a argumentação do aresto acima citada quanto à nulidade da renúncia do A. diante da constatação de que, por um lado, ela pode ser configurada como uma cláusula contratual geral, destinada a um uso massivo e indiscriminado, inequívocamente não precedida negociação com o lesado/credor; e, por outro, da circunstância de a seguradora ora apelante ter omitido a mínima alegação sobre o cumprimento dos deveres de comunicação, informação e explicação que recaíam sobre si como parte pré-disponente. Isto porque é inegável que a declaração/cláusula negocial subscrita pelo A. surgiu inserta em formulário impresso por pré-elaborado pela Ré (com o seu timbre), impresso patentemente destinado a um uso generalizado.

A cláusula geral que não é objecto do acatamento dos deveres impostos à parte pré-disponente é nula e não produtora de qualquer efeito, por força dos art.ºs 1, nº 3, 5º, 6º e 8º, al,ªs a) e b) do RCCG.

Não tendo a declaração de quitação integral constante da 2ª parte do documento de fls. 64 sido objecto de oportuna e adequada comunicação, informação e explicação ao lesado seu subscritor, não pode a mesma ter qualquer valor extintivo, mostrando-se por isso inidónea para para eximir a Ré e ora apelante do montante indemnizatório excedente à quantia que entregou ao A..

Improcede, assim, a questão suscitada, não se tendo operada a pretensa extinção do crédito indemnizatório do A. no que toca aos danos patrimoniais e não patrimoniais advenientes do acidente.

 

Sobre o dano biológico.



Insurge-se a apelante contra o cômputo do dano biológico efectuado pela sentença com base na pontuação de 15,45 constante do relatório final do INML, sustentando que este dano deveria ser avaliado segundo a Tabela Nacional de Incapacidade em Direito Civil.

Esta dano tem a ver o chamado Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica e conexiona-se em especial com as perdas dentárias do A. em consequência do sinistro.

Todavia, a recorrente não só não especifica o montante em que este dano devia ser avaliado, como nem sequer considera exagerado o valor atribuído pela decisão recorrida

que foi de € 7.000,00 (verba esta que atribuiu ao lesado a título de perda de capacidade de ganho/dano biológico).

Donde que nenhuma questão se coloque para a modificação do decidido neste segmento.

Perdas salariais.

Discorda ainda a apelante do cômputo dos salários perdidos pelo A. em função do acidente, dano patrimonial este que a sentença recorrida computou em € 7.305,41, tendo por pressuposto uma retribuição base mensal de € 1.043,63 e a incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 7 de Fevereiro e 31 de Agosto de 2013.

Fá-lo por entender que o salário líquido do A. era de apenas € 963,35; que a relação laboral cessou em 6 de Fevereiro de 2013 com a insolvência da sociedade D... , Lda, para a qual o A. trabalhava; e que são incluídas perdas salariais em duplicado.

Salvo o respeito devido, não tem razão.

O salário que tem de ser considerado como dano é o que engloba tudo aquilo de que o A. ficou privado, e esse é sempre o ilíquido uma vez que é à custa dele que o A. ainda terá de fazer os seus descontos e pagar os competentes impostos para poder manter os benefícios que obteria se não fossem as lesões.

No que concerne à data da declaração de insolvência não pode a mesma valer como fim automático das relações laborais, uma vez que, apesar disso, até à liquidação, pode o Administrador da Insolvência nomeado achar conveniente que a empresa se mantenha em laboração com os respectivos trabalhadores, subsistindo as obrigações correspondentes aos vínculos existentes.

Por último, não se vislumbra onde reside a suposta duplicação no cálculo das perdas salariais.

Sobre a dedução do valor já pago pela Ré.

Como é evidente, ao montante indemnizatório global fixado devia a sentença ter abatido/deduzido o valor já pago pela Ré através do recibo de fls. 64, identificado no facto provado em 31, isto é, € 2.781,58.

Procedendo o recurso apenas neste segmento correctivo.

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, revogam parcialmente a sentença, pelo que julgam a acção parcialmente procedente por parcialmente provada, e, em função disso, condenam a Ré a pagar ao A. a quantia global constante de I do respectivo dispositivo deduzida do montante já pago de € 2.781,58 (facto provado em 38). No mais vai a sentença recorrida mantida.

Custas na proporção de 1/12 para o A. e 11/12 para a Ré ora apelante.

                                   Coimbra, 4 de Maio de 2021  

  

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       

 


[1] Devendo a remissão do art.º 863 do CC resultar de um contrato entre credor e devedor, é possível a aceitação da proposta de remissão do devedor por acto posterior do credor.
[2] Curso de Direitos Reais, Principia, 2002, p.52.

[4] Homenagem ao Professor Germano Marques da Silva, V. I, Universidade Católica Editora.
[5] De resto, ambos os acórdãos surgem referenciados no estudo anteriormente aludido.