Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
66/09. 8GAOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
TIPO OBJECTIVO DE ILÍCITO
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 25º DA CRP, 143º DO CP
Sumário: 1.O tipo objectivo do art. 143° do Código Penal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofri­mento causados ou de eventual incapacidade para o trabalho.
Decisão Texto Integral: 10
Proc. nº66/09.8GAOHP.C1
RELATÓRIO


Em processo comum singular do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, por sentença de 10.03.16, foi, no que para a apreciação do presente recurso interessa, decidido absolver a arguida C, do crime de ofensa à integridade física simples de que vinha acusada.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“I. O bem jurídico que o tipo previsto no art.143° nº 1 do Código Penal pretende proteger é a integridade física da pessoa humana, obedecendo assim o legislador ao comando constitucional do art.25° nº 1 da Constituição da República Portuguesa de onde decorre que a integridade moral e física das pessoas é inviolável.
II. O tipo legal em causa fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente de lesão, dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho.
III. Neste particular cumpre ponderar que ainda hoje tem plena actualidade a doutrina do Acórdão para Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 1991 in DR Iª Série de 08/02/1992, que decidiu que "Integra o crime do artigo 142º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão dor ou incapacidade para o trabalho".
IV. O Mmº Juiz decidiu de forma contrária a um Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça aplicável no caso em apreço, sem sequer fundamentar de forma expressa as razões da sua discordância.
V. O empurrão desferido pela arguida foi feito de forma gratuita e sem motivo, com o intuito conseguido de atingir a integridade física da ofendida, não se tratando sequer de uma acção natural de repulsa ou de afastamento coercivo.
VI. O Mmº Juiz, decidindo de forma contraditória, deu como provado que a arguida C actuou de forma deliberada, livre e consciente, pretendendo e conseguindo, atingir, lesar e causar mau estar no corpo e saúde de outrem, bem sabendo que essa conduta era proibida e punida por lei penal, acabando por depois considerar que a essa lesão era insignificante, em função de ser "apenas" um "singelo" empurrão, sem que tal decorra sequer da factualidade dada como provada, concluindo que a conduta não era criminalmente punível.
VII. Tal constitui uma contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, nos termos do disposto no artº 410º nº 2 b) do Código de Processo Penal, a qual expressamente se invoca.
VIII. No caso subjudice, ter-se-á de ter em conta que a arguida atentou contra um bem jurídico pessoal de elevado valor, como seja a integridade física, sendo que as consequências não foram graves e a arguida não tem antecedentes criminais, pelo que, entende o Ministério Público que se deverá aplicar uma pena de multa próxima do seu mínimo legal.
IX. Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser declarada a nulidade da sentença por violação do artº 410º nº 2 b) do Código de Processo Penal ou, assim não se entendendo, revogar-se a sentença na parte em que absolveu a arguida C pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. l43° do Código Penal, em virtude de o Mmº Juiz não ter feito a adequada interpretação do disposto nesse preceito, assim o violando, devendo ser a mesma substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime em referência, numa pena de multa próxima do seu mínimo legal.”.
A arguida respondeu à motivação, concluindo que a decisão recorrida deverá ser mantida.
Nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta é de parecer, que o recurso interposto merece provimento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO

A matéria fáctica considerada provada na sentença recorrida foi a seguinte:
1) No dia 8 … de 2009, cerca das 19:20h., em … Seia, a arguida C desferiu um empurrão na arguida M, não lhe tendo causado ferimentos clinicamente avaliáveis;
2) Na ocasião referida em 1), a arguida C atirou água à arguida M, molhando-a;
3) No dia 16 de Fevereiro de 2009 a arguida C apresentava as seguintes lesões:
- no tórax: equimose de cor amarelada com 6 cm por 1 cm, na parte posterior e inferior da grelha costal esquerda, contigua a esta e para o lado interno, escoriação de 4 cm e com crosta;
- no abdómen: na parte posterior, a nível da região lombo sagrada, três equimoses de cor acastanhada, a maior com 6 cm por 3 cm na parte inferior e esquerda, a menor com 1,5 cm por 1,5 cm distando da anterior 2 cm para a parte média, a outra localiza-se na parte inferior e interna do lado direito medindo 2 cm por 1,5 cm, equimose de cor acastanhada medindo 3,5 cm por 1,5 cm a nível da fossa ilíaca direita;
- no membro superior direito: equimose de cor arroxeada com 6,5 cm por 4,5 cm na parte média e anterior do braço, equimose de cor amarelada medindo 3,5 cm por 2,5 cm a nível do 1/3 superior interno do braço, equimose de cor acastanhada, medindo 1,5 cm por 1,5 cm a nível do 1/3 superior e parte posterior do antebraço; e
- no membro superior esquerdo: equimose de cor acastanhada com 4 cm por 3 cm no 1/3 superior e interno do antebraço, a nível da parte média e interna do braço, três equimoses de cor amarelada, medindo respectivamente, a maior 2,5 cm por 1,5 cm, a menor 1cm por 1 cm e a outra 1,5 cm por 1,5 cm.
4) As lesões referidas em 3) causaram um período de 15 dias de doença, sendo 1 com incapacidade para o trabalho;
5) A arguida C, no que respeita ao referido em 1), actuou de forma deliberada, livre e consciente, pretendendo, e conseguindo, atingir, lesar e causar mal-estar no corpo e na saúde de outrem, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
6) A arguida M é bem considerada pelos seus vizinhos e amigos, que a reputam como bem-educada, respeitadora das regras sociais e boa pessoa;
7) As lesões referidas em 3) e 4) causaram dores, incómodos, mal-estar físico, angústia e preocupação;
8) A arguida C deslocou-se ao posto da GNR para apresentar queixa, e deslocou-se à Guarda para realização de exame médico-legal, o que importou em cerca de € 100,00, incluindo alimentação;
9) A arguida C completou o 6º ano de escolaridade;
10) A arguida C encontra-se desempregada, auferindo uma pensão no valor de € 200,00;
11) A arguida C e o arguido J têm um filho em comum com 8 anos de idade;
12) A arguida C vive com os seus pais, em casa destes, e com o seu filho;
13) O arguido J completou o 6º ano de escolaridade;
14) O arguido J é serralheiro, auferindo rendimentos variáveis, mas não superiores a € 700,00 mensais;
15) O arguido J vive com uma companheira;
16) A arguida M completou o 6º ano de escolaridade;
17) A arguida M é auxiliar do 1º Ciclo na Escola Básica de Oliveira do Hospital, auferindo € 662,00 mensais;
18) A arguida M tem dois filhos maiores;
19) A arguida M vive com os seus pais, em casa destes, e com o seu filho mais novo;
20) Nada consta averbado no certificado do registo criminal dos arguidos.”.

*
Considerando que as conclusões da motivação balizam o objecto do recurso, a única questão a apreciar consiste em saber se a matéria de facto que foi dada como provada integra ou não a prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º nº 1 CP, por parte da arguida C
Está aqui em causa saber se o enquadramento jurídico da materialidade provada feito na decisão recorrida foi o correcto.
O Mmº juiz fundamentou a absolvição da arguida, no entendimento de que um empurrão não assume dignidade penal, porquanto, como refere, não causou ferimentos clinicamente avaliáveis, nem sequer dor física.
Mas não tem claramente razão.
Vejamos porquê.
Desde logo temos que a inviolabilidade da integridade física da pessoa humana está garantida constitucionalmente (artº 25º nº 1), sendo que o artº 143º nº 1 CP, veio consagrar que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de….”.
Trata-se a nível subjectivo de um crime doloso, exigindo-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artº 14º CP).
E no que concerne à face objectiva do tipo escreve Paula de Faria Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 205. “A lei distingue duas modalidades de realização do tipo: a) ofensas no corpo e b) ofensas na saúde. Muitas das vezes haverá coincidência entre estas duas formas de realização do tipo; assim será, por exemplo, quando o agente, espetando uma seringa no braço da sua vítima, lhe causa uma infec­ção. Mas não necessariamente. Casos há em que existe uma lesão no corpo sem que concomitantemente haja lesão da saúde. Pense-se na controvertida agressão à bofetada (leve) sobre uma pessoa, sem qualquer sofrimento ou incapacidade para o trabalho, e que parte da jurisprudência (Ac. da RL de 26-6-90, CJ XV-I1I 172) tinha, à luz da versão anterior do art. 142°, como integrando o tipo legal de injúrias. Outra foi, no entanto, a última palavra do STJ, que fixou jurisprudência sobre esta matéria no Ac. de 18-12-91, qua­lificando o dito comportamento como ofensa corporal. Por outra banda, poderá haver lesões da saúde que não configuram ofensas no corpo, pois que inclu­sivamente aumentam o bem estar do lesado (será o caso da administração de estupefacientes). Pode aqui recorrer-se à impressiva imagem, utilizada por ESER (cf. S/ S / ESER § 223 1), de dois círculos que se cruzam embora man­tenham a sua autonomia.
O tipo legal do art. 143° fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofri­mento causados (aliás estamos perante uma ofensa no corpo mesmo quando a vítima, mercê da ingestão em excesso de bebidas alcoólicas, não se encon­tra em condições de sentir qualquer dor), ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (o legislador penal não exige um número mínimo de dias de doença ou de impossibilidade para o trabalho, cf. LEAL-HENRIQUES / SIMAS SAN­TOS 136). Não relevam para aqui os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, se bem que, como é evidente, todas estas circunstâncias sejam de ter em conta pelo juiz, nos termos do art. 71°, para determinação da medida da pena “.
Por outro lado deverá igualmente ter-se presente o Assento do STJ de 91.12.18 DR, I Série-A, de 8 de Fevereiro de 1992., nos termos do qual se estabeleceu que “Integra o crime do artº 142º do Código Penal, a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho”
O tipo legal do art. 143° fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofri­mento causados (aliás estamos perante uma ofensa no corpo mesmo quando a vítima, mercê da ingestão em excesso de bebidas alcoólicas, não se encon­tra em condições de sentir qualquer dor), ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (o legislador penal não exige um número mínimo de dias de doença ou de impossibilidade para o trabalho, cf. LEAL-HENRIQUES / SIMAS SAN­TOS 136). Não relevam para aqui os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, se bem que, como é evidente, todas estas circunstâncias sejam de ter em conta pelo juiz, nos termos do art. 71°, para determinação da medida da pena “.
Uma pessoa pode ser maltratada fisicamente independentemente do resultado.
Ora no caso em análise em que a arguida C deu um empurrão na M essa actuação pressupõe sempre a necessidade de utilização de violência Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Tomo IV, pág. 379. sobre a pessoa, constituindo desse modo uma agressão à integridade física da vítima.
Assim considerando que ficou igualmente provado que “a arguida actuou de forma deliberada, livre e consciente, pretendendo e conseguindo atingir, lesar e causar mau estar no corpo e saúde de outrem, bem sabendo que essa conduta era proibida e punida por lei penal” (ponto 5 da matéria de facto), preenchidos estão todos os elementos do crime em causa.
Daí que haja que avançar para a medida da pena.
Nos termos da referida disposição legal, a moldura legal ou abstracta do crime cometido pela arguida é a de prisão até 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias.
O artº 70º CP fornece ao juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas.
Assim, de acordo com a referida disposição legal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja “ a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (Artº 40º nº 1 CP)
Como escreve, a propósito, Maria Fernanda Palma Casos e Materiais de Direito Penal, pág. 32. “ A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).
A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial “.
E no que concerne à reintegração social a que alude o referido artº 40º CP, diz ainda a referida autora que tal “ significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena.
E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.”.
Assim sendo, diremos que à escolha da pena apenas presidem razões ou exigências de prevenção.
Por isso afastada está a relevância da culpa na escolha da pena.
Ora no caso dos autos justifica-se a preferência pela pena de multa, já que as consequências para a integridade física da ofendida não foram graves
Por isso crê-se que a aplicação de uma pena de multa promove a recuperação da delinquente e reprova suficientemente a sua conduta.
A graduação em concreto do número de dias da pena de multa obedece, exclusivamente, aos critérios estabelecidos no nº 1 do Artº 71º CP (concretizados no nº 2 do mesmo artigo) sem esquecer que, de acordo com o artº 40º nº 2 CP, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Em Figueiredo Dias·, colhe-se a propósito deste tema que “ a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso; a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível”.
Significa isto que na determinação da medida concreta da pena de multa, a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial) intervêm apenas na fixação do número de dias de multa.
Ora no caso dos autos, tendo em conta que:
a) O grau de ilicitude dos factos é de grau médio;
b) A arguida agiu com dolo directo;
c) A ausência de antecedentes criminais;
d) Que as exigências de prevenção geral são relevantes face á frequência com que se verificam este tipo de crimes;
Entende-se adequada, justa e equilibrada a aplicação à arguida da pena de 40 dias de multa.
A fixação do quantitativo correspondente a cada dia de multa obedece ao disposto no artº 47º nº 2 CP – cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5 Euros e 500 Euros - e em que releva exclusivamente a situação económico e financeira e os encargos pessoais do condenado.
Ora tendo em conta que a arguida está desempregada, vive em casa de seus pais com um filho de 8 anos de idade e aufere uma pensão de 200 euros, entende-se ser de fixar o quantitativo correspondente a cada dia de multa no mínimo, isto é em 5 euros, o que perfaz a multa global de 200 Euros.

DECISÃO

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juizes desta Relação, em conceder provimento ao recurso, e consequentemente:
- Revogam a sentença recorrida no segmento impugnado, condenando agora a arguida C, com os demais sinais nos autos, como autora material de um crime de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º nº 1 CP, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
Boletim à DSCI.
Recurso sem tributação.

ESTEVES MARQUES (RELATOR)
JORGE DIAS