Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4752/08.1TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 913, 914, 916, 917 CC
Sumário: 1. Se as qualidades da coisa objecto do contrato de compra e venda foram negociadas entre as partes, integrando o conteúdo normativo do contrato, e se, realizada a prestação, se averiguar que ela não possui as qualidades acordadas, daí decorre que o devedor não efectuou a prestação a que se encontrava adstrito.

2. Estamos então perante uma situação de cumprimento imperfeito, cumprimento defeituoso ou violação contratual positiva, não abrangida pelo art.º 913º, do Código Civil (CC), pelo que a responsabilidade contratual estará sujeita ao prazo ordinário da prescrição.

3. No domínio da venda de coisas defeituosas realizada entre profissionais (não consumidores) rege o regime jurídico previsto nos art.ºs 913º a 922º, do CC, sendo de aplicar o prazo curto de caducidade previsto no art.º 917 à acção de indemnização fundada na violação contratual positiva sempre que se trate de pretensão fundada no defeito previsto no art.º 913º.

4. O prazo de caducidade de seis meses, previsto no art.º 917º, do CC, deve aplicar-se, por interpretação extensiva, para além da acção de anulação, também às acções que visem obter a reparação ou substituição da coisa, ou ainda a redução do preço e o pagamento de uma indemnização pela violação contratual.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. T (…), Lda., intentou, em 02.9.2008, no Tribunal Judicial de Leiria, a presente acção declarativa com processo sumário contra H (…)[1], pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe todos os encargos com a instalação de uma segunda cama nos veículos com as matrículas 53-DC-94 e 53-DC-95, no valor de 6 344,22 € cada, a importância de 14 282,62 € referente à reparação dos três veículos indicados na petição inicial (p. i.), 833,04 € de juros de mora, às taxas comerciais, vencidos até 13.12.007 e juros de mora vincendos.

            Alegou, em resumo, que se dedica ao transporte de mercadorias e reparações de veículos e o Réu desenvolve a actividade de venda e comercialização de veículos automóveis; em 20.02.2007, a A. e o Réu celebraram entre si, a primeira como compradora e o segundo como vendedor, um contrato verbal de contrato de compra e venda de três camiões, pelo preço global de 85 910 €; o Réu entregou os referidos veículos em 06.3.2007, 09.3.2007 e 21.3.2007; dado que dois dos veículos não possuíam duas camas, como pretendia a A., o Réu, aquando da conclusão do negócio, obrigou-se a proceder à instalação de uma segunda cama, pagando os respectivos encargos; a A. não teria concluído o negócio se o Réu não tivesse assumido tal encargo, dado que apenas tinha interesse em camiões com duas camas; os mencionados veículos apresentavam as avarias descritas na p. i., a A. reclamou junto do Réu devido a esse facto e este havia garantido o bom funcionamento das viaturas durante um ano; efectuadas nos ditos veículos as necessárias reparações, como se descreve na p. i., realizadas em Abril, Maio, Agosto, Setembro e Outubro de 2007, no montante global de 14 282,62 € e remetidas ao Réu as correspondentes notas de débito e facturas, este não pagou; o Réu sempre aceitou e reconheceu o dever de reparar as viaturas e a obrigação de pagar as respectivas reparações.

            O Réu contestou, por excepção e por impugnação.

            Invocou, nomeadamente, que os veículos pesados de mercadorias foram vendidos e entregues à A. a 26.02.2007; a A. devia instaurar a acção a exigir a reparação dos pretensos defeitos no prazo de 6 meses após a denúncia, conforme o disposto nos art.ºs  916º e 917º, do Código Civil (CC), prazo há muito decorrido, pelo que o seu direito caducou; jamais prometeu à A. instalar uma segunda cama nos veículos, sendo que em toda a negociação nunca a A. sugeriu ao Réu que pretendia veículos com duas camas; não foi convencionada qualquer garantia.

            Concluiu pela improcedência da acção.

            A A. respondeu concluindo pela improcedência da matéria de excepção e como na p. i..

Foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da excepção de caducidade e seleccionou-se, sem reparo, a matéria de facto (assente e controvertida).

Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, o tribunal recorrido julgou procedente a invocada excepção peremptória da caducidade e improcedente por não provada a presente acção e, em consequência, absolveu o Réu do pedido.

Inconformada e reafirmando a factualidade e a pretensão constantes da p. i., a A. interpôs recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - O Tribunal recorrido deveria ter considerado provada a factualidade do art.º 2º da b. i. (base instrutória).

            2ª - Atenta a prova produzida, nomeadamente o depoimento de José Sousa, constata-se que “(…) a empresa comunicou que queria que os camiões tivessem duas camas”, referindo-se, clara e inequivocamente, às viaturas 53-CX-54 e 53-DC-95.

            3ª - Tal facto deve ser conjugado com a documentação junta aos autos, nomeadamente os orçamentos solicitados pela A. e a correspondência remetida ao Réu, e a demais factualidade, nomeadamente a que consta das alíneas H) e I).

            4ª - O cumprimento integral do negócio dependia do facto dos camiões terem duas camas, questão que não se enquadra no domínio do cumprimento defeituoso do contrato (“stricto senso”)/compra e venda de coisa defeituosa mas no incumprimento do contrato (no sentido mais lato) - a A. negociou com o Réu a compra de dois camiões com duas camas, sendo que o Réu entregou dois camiões com uma cama.

            5ª - Tratando-se de um incumprimento contratual, não se aplicam, nesse segmento, os prazos de caducidade previstos no regime da compra e venda de coisa defeituosa (art.ºs 913º e seguintes, do CC), aplicando-se as regras gerais do incumprimento contratual.

            6ª - Considerando que o Réu foi notificado dos orçamentos para a inclusão de duas camas nos camiões vendidos, deve ser responsabilizado pelo pagamento de tais encargos, pelo que, nessa parte, deve improceder a excepção invocada pelo Réu.

            7ª - Quanto às reparações efectuadas nas viaturas, a A. denunciou as avarias no prazo de 6 meses, contado da entrega das viaturas, e a acção deu entrada em juízo no prazo de 2 anos, após a denúncia, daí que também aqui improceda a excepção de caducidade invocada pelo Réu.

O Réu não respondeu à alegação da recorrente.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC) [2], na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8), importa decidir: a) se existe erro na apreciação da prova; b) se a factualidade apurada integra situação de incumprimento do contrato; c) se ocorre a caducidade do direito de acção.         


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            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) A A. é uma sociedade por quotas que se dedica, no âmbito do seu objecto social, ao transporte de mercadorias e reparações de veículos. (A)

            b) O Réu dedica-se à actividade de venda e comercialização de veículos automóveis. (B)

            c) Em 20.02.2007, a A. e o Réu celebraram entre si, a primeira como compradora e o segundo como vendedor, contrato verbal que reciprocamente denominaram de contrato de compra e venda de três veículos automóveis, a saber:

            - Veículo marca “Scania”, modelo R114380, matrícula 53-CX-54, pelo preço de 30 250 €;

            - Veículo marca “Scania”, modelo R114380, matrícula 53-DC-95, pelo preço de 27 830 €; e

            - Veículo marca “Scania”, modelo R114380, matrícula 53-DC-94, pelo preço de 27 830 €. (C)

            d) A. e o Réu convencionaram que o preço da aquisição dos veículos automóveis, objecto do contrato de compra e venda supra mencionado, seria pago através de uma “locação financeira” feita pela A. com terceiro. (D)

            e) Para este efeito, em 08.3.2007, a A. celebrou um contrato denominado de locação financeira com “Banif Leasing, S. A.”, com sede em Lisboa, no valor de 85 910 €. (E)

            f) O Réu entregou os referidos veículos automóveis nas seguintes datas:

            - o veículo de matrícula 53-CX-54 em 06.3.2007;

            - o veículo de matrícula 53-DC-95 em 09.3.2007; e

            - o veículo de matrícula 53-DC-94 em 21.3.2007. (F)

            g) Os camiões 53-DC-94 e 53-DC-95 não tinham duas camas. (resposta ao art.º 1º)

            h) Foram pedidos orçamentos à “C (…), S. A.”, para montagem da segunda cama para cada um dos camiões. (3º)

            i) A A., em 22.5.2007, enviou ao Réu os orçamentos n.º 41-02526, relativos à montagem da segunda cama nos dois supra mencionados camiões, no valor de 6 344,22 € cada um. (4º)

            j) O veículo de matrícula 53-CX-54 sofreu as seguintes reparações:

            - Reparação de unidades injectoras UIS 1425077, no valor de 1 150,71€, em 02.4.2007;

            - Reparação de embraiagem, no valor de 1 560,54 €, em 22.5.2007;

            - Peças para a embraiagem, no valor de 1 197,54 €, em 22.5.2007; e

            - Pneu GO P315/80X22.5 LHS Marathon e jante TX-J-900X22.5 10 furos, no valor de 532,62 €, em 29.5.2007,

            - JG. Reparação origem, filtro, turbina de origem, valvulina, retarder e mão-de obra, no valor de 1 399,61 €, em 26.9.2007. (9º)

            k) O supra mencionado veículo não puxava, razão por que se teve de proceder à reparação dos injectores. (10º)

            l) A embraiagem possuía avaria grave, o que levou à sua reparação. (11º)

            m) Nenhum dos três veículos trazia jante e pneu suplente. (resposta ao art.º 12º)[3]

            n) A A. procedeu à aquisição do pneu e jante enviando a factura ao Réu. (resposta ao art.º 14º)

            o) O “retarder” (travão auxiliar) do veículo possuía avaria grave, o que levou à reparação do jogo de origem. (15º)

            p) O veículo de matrícula 53-DC-94 sofreu as seguintes reparações:

            - Reparação de unidades injectoras UIS 1425077, no valor de 3 940,73 € em

26.4.2007;

            - Pneu GO P315/80X22.5 LHS Marathon e jante TX-J-900X22.5 10 furos, no

valor de 532,62 €, em 29.5.2007;

            - Radiador completo, no valor de 537,24 €, em 04.8.2007;

            - Depósito expansão, no valor de 168,13 €, em 07.8.2007; e

            - Depósito expansão e vidro do farolim, no valor de 180,50 €, em 16.8.2007. (16º)

            q) O supra mencionado veículo não puxava, razão por que se teve de proceder à reparação dos injectores. (17º)

            r) O A. procedeu à aquisição do pneu e jante. (resposta ao art.º 20º)

            s) O mencionado veículo começou a aquecer, verificando a A. tratar-se de rupturas no ninho do radiador, o que levou à sua reparação. (resposta ao art.º 21º)

            t) Foram também reparados os depósitos de água que vão abastecendo os radiadores. (22º)

            u) O veículo de matrícula 53-DC-95 sofreu as seguintes reparações:

            - Substituição de cablagem, no valor de 1 392,35 €, em 13.4.2007;

            - Pneu GO P315/80X22.5 LHS Marathon e jante TX-J-900X22.5 10 furos, no valor de 532,62 €, em 29.5.2007,

            - Radiador expansão, no valor de 537,24 €, em 11.8.2007;

            - Reparação geral, desentupir, soldaduras diversas, vedar fugas e pintura, no valor de 110,20€, em 11.8.2007;

            - Bomba Cabne S4, no valor de 405,35 €, em 11.8.2007, e

            - Motor elevador vidro da porta RH S4, no valor de 104,62 €, em 08.10.2007. (23º)

            v) Neste veículo, foi substituída a cablagem por avaria grave. (24º)

            w) A A. procedeu à aquisição do pneu e jante, enviando a factura ao Réu. (resposta ao art.º 27º)

            x) O mencionado veículo começou a aquecer verificando a A. tratar-se de rupturas no ninho do radiador, o que levou à sua reparação. (resposta ao art.º 28º)

            y) O radiador de intercooler foi reparado devido às fugas existentes. (29º)

            z) A bomba do supra mencionado veículo estava avariada, não fazendo mover a cabine o que levou à sua reparação. (30º)

            aa) O motor elevador do vidro da porta não funcionava, o que levou à sua reparação. (resposta ao art.º 31º)

            bb) O montante das reparações ascende a 14 282,62 €. (32º)

            cc) Logo que se procederam às reparações, a A. emitiu e enviou ao Réu diversas notas de débito e facturas. (33º)

            dd) Estes veículos pesados foram vendidos à A. em data não concretamente apurada mas anterior a 08.3.2007, data em que teve início o contrato de locação financeira. (resposta ao art.º 35º)

            2.

            (…)

            4. A recorrente veio dizer que o cumprimento integral do negócio dependia do facto dos camiões terem duas camas e que o Réu entregou coisa diversa, pelo que, tratando-se de um incumprimento contratual, não se aplicam, nesse segmento, os prazos de caducidade previstos no regime da compra e venda de coisa defeituosa (art.ºs 913º e seguintes, do CC), aplicando-se as regras gerais do incumprimento contratual (art.ºs 798º e seguintes, do CC), daí resultando a responsabilidade do Réu pelo pagamento do valor da primeira parte do pedido.

            Sabemos que além do incumprimento definitivo (total ou parcial) e da mora existe uma outra forma de violação do dever de prestar – trata-se do incumprimento defeituoso ou violação contratual positiva.

            O aspecto patológico de tais situações de facto não consiste numa violação negativa do dever de prestar (na sua omissão definitiva ou irremovível, ou na sua omissão temporária ou remediável), consistindo antes num defeito da prestação realizada, numa violação positiva da lex contractus por que ela se regulava, e nos danos provenientes dessa irregularidade.[4]

            Esta terceira situação de inadimplência (a que se refere o n.º 1 do art.º 799, do CC) distingue-se claramente do instituto da venda de coisa defeituosa, que se verifica sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofre de vícios ou carece das qualidades a que alude o art.º 913º, do CC[5], enquanto o cumprimento defeituoso da obrigação se verifica não apenas em relação à obrigação de entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer obrigação proveniente do contrato ou qualquer outra fonte e apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidade ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito.[6]

            Assim, se as qualidades da coisa objecto do contrato de compra e venda foram negociadas entre as partes e, por isso, fazem parte integrante do conteúdo do contrato, nele ingressando e, uma vez realizada a prestação, se vem a averiguar que ela não possui as qualidades acordadas, então teremos de convir que o devedor não efectuou a prestação acordada, tal como estava vinculado contratualmente.

            Na execução da sua obrigação, o devedor deve respeitar escrupulosamente o contrato (art.ºs 408º e 763º, do CC), o objecto a entregar deve ser a coisa prevista no contrato, conforme as estipulações e especificações das partes.

            O vício ou não-conformidade reside na discrepância entre a qualidade real ou existencial e a qualidade devida ex contractu e, por isso, a inexactidão qualitativa da prestação respeita à fase executiva do negócio e será um caso de incumprimento parcial ou cumprimento imperfeito: o vendedor não cumpre exactamente a prestação devida ao comprador segundo a interpretação objectiva do contrato, verificando-se uma desconformidade entre a coisa na sua constituição real e a coisa na sua configuração representada e acordada pelas partes.

            Quando assim for, caímos na pura inadimplência, na modalidade de cumprimento imperfeito, cumprimento defeituoso ou violação contratual positiva, que não está abrangido pelo art.º 913º, do CC, pelo que a responsabilidade contratual estará sujeita ao prazo ordinário da prescrição.[7]

            5. A recorrente tem assim razão quando afirma que neste (primeiro) segmento do pedido deduzido na acção estava em causa apurar se o Réu faltou ao cumprimento do acordado no tocante às características dos veículos transaccionados, pressupondo-se que estes deveriam possuir determinados equipamentos (qualidades ou requisitos).

            Porém, como resulta da materialidade apurada, a A. não logrou demonstrar que tivesse acordado com o Réu que os camiões deviam estar equipados com “duas camas” [cf., sobretudo, as respostas aos art.ºs 1º e 2º da b. i.], sendo que lhe cabia provar tais factos (art.º 342º, n.º 1, do CC), razão pela qual não se poderá concluir que essa qualidade/requisito tenha ingressado no conteúdo vinculativo/normativo do contrato[8] e que, face às características de duas das viaturas em apreço, se tenha verificado a invocada violação do contrato em razão de cumprimento defeituoso.

            Improcede, desta forma, o que nas “conclusões” do recurso se aduz em contrário.

            6. Por último, a recorrente diz ter denunciado as avarias das viaturas no prazo de 6 meses, contado da data da entrega, sendo que a acção deu entrada em juízo no prazo de 2 anos, após a denúncia, com a consequente improcedência da excepção de caducidade invocada pelo Réu.

            Parece-nos que não é inteiramente correcto o enquadramento traçado na decisão sob censura, embora se deva concluir pela verificação da dita caducidade.

            Por outro lado, à argumentação da recorrente subjaz um regime normativo com específico âmbito pessoal e temporal de aplicação e que não integra o presente caso.

            O Tribunal recorrido considerou estarmos perante uma situação de responsabilidade contratual, por venda de coisa defeituosa, perspectiva que temos por correcta.

            A venda de coisa defeituosa respeita à falta de conformidade ou de qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ ou normal) a que é destinado.

            Na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme ao contrato. O clássico regime edilício da venda de coisas defeituosas tem directamente em vista os vícios intrínsecos, estruturais e funcionais da coisa – defeitos de concepção ou design e defeitos de fabrico, que tornam a coisa imprópria (por falta de qualidades ou características técnicas e económicas) para o seu destino, o destino especialmente tido em vista por estipulações/ especificações contratuais ou o destino normal das coisas do mesmo tipo – e os danos desses vícios lesivos do interesse na prestação, danos na própria coisa, danos (directos, imediatos) do vício em si ou danos do não cumprimento perfeito (v. g., despesas preparatórias da e feitas com a venda, preço pago, destruição da coisa, menor valor da coisa, custos de reparação, imobilização ou indisponibilidade da coisa e perdas de exploração), conquanto o Código Civil não exclua de todo os prejuízos indirectos, mediatos, sofridos pelo comprador de bens pessoais (saúde, integridade física, vida) e noutros bens patrimoniais em consequência do acidente causado pelo vício intrínseco, estrutural e funcional da coisa comprada.[9]

            7. No caso vertente, ainda que se trate de uma compra e venda de viaturas usadas, dúvidas não restam de que os bens em análise não possuíam as qualidades relevantes para efeito da plena satisfação dos interesses do comprador, para a adequada satisfação da função económica empresarial visada, consistente na utilização dos bens na actividade de transporte de mercadorias, tratando-se de um vício intrínseco ou orgânico da coisa vendida que a desvaloriza e impede de realizar cabalmente o fim a que se destina, pelo que se enquadra no regime da venda de coisa defeituosa, com a inerente responsabilidade contratual.

            8. No domínio da venda de coisa defeituosa rege o regime jurídico previsto nos art.ºs 913º a 922º, do CC.

            Para proteger o comprador de coisa defeituosa, o mencionado art.º 913º, n.º 1, manda observar, com as necessárias adaptações, o prescrito na secção relativa aos vícios de direito (art.ºs 905º e seguintes, do CC), concedendo-se dessa forma ao comprador os seguintes direitos: a) Anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos de relevância exigidos pelo art.º 251, do CC (erro sobre o objecto do negócio) e pelo art.º 254º, do CC (dolo); b) Redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por um preço inferior (art.º 911º, do CC); c) Indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, cumulável com a anulação do contrato ou redução ou minoração do preço (art.ºs 908º, 909º e 911º, ex vi do art.º 913º, do CC); d) Reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição (art.º 914º, 1ª parte, do CC), independentemente de culpa do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (art.º 921º, n.º 1, do CC).

            Porém, o comprador pode escolher e exercer autonomamente a acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso ou inexacto presumidamente imputável ao devedor (art.ºs 798º, 799º e 801º, n.º 1, do CC), sem fazer valer outros remédios, ou seja, sem pedir a resolução do contrato, a redução do preço, ou a reparação ou substituição da coisa.[10]

            Só que esta acção, em que prejuízos indemnizáveis tenham origem no vício da coisa, não pode deixar de obedecer aos prazos curtos previstos especialmente para a venda de coisas defeituosas.

            Na verdade, a acção de anulação por simples erro caduca findo qualquer dos prazos fixados no artigo 916º, do CC,[11]sem o comprador ter feito a denúncia ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2, do art.º 287º (art.º 917º, do CC).

            Trata-se de um prazo de caducidade que impende sobre o comprador de coisa defeituosa, para o exercício dos direitos provenientes da venda da coisa com defeito, aplicável, por interpretação extensiva do referido normativo, às acções que visem obter a reparação ou a substituição da coisa (art.º 914º, do CC), justificando-se a relativa estreiteza dos prazos fixados para a denúncia do defeito e a caducidade da acção, quando a venda de coisas defeituosas se refira a coisas móveis, com o intuito/finalidade de encurtar a duração do estado de incerteza, que a anulabilidade lança sobre a compra (com inconvenientes de vária ordem até no comércio jurídico), e evitar também as dificuldades de prova que os longos prazos de caducidade acabariam por criar sobre os pontos que interessam à procedência da anulação.[12]

            9. A 1ª instância julgou caduco o direito da A. seguindo o entendimento de que o prazo de seis meses para a propositura da acção começou a correr a partir de Abril de 2007 (tendo em conta as datas dos documentos juntos aos autos). Atendeu ao disposto no art.º 5º (n.º 4) do DL 67/2003, de 08.4, na sua redacção primitiva [e que a redacção deste diploma introduzida pelo DL 84/2008, de 21.5, quanto ao alargamento do prazo de caducidade, não se aplicará às situações anteriores à sua entrada em vigor, cujos prazos já tenham decorrido inteiramente, mas apenas aos que ainda estiverem em curso (art.º 297º/2 do CC)] e concluiu que a caducidade operou decorridos seis meses sobre a denúncia, isto é, em Outubro de 2007, dando a acção entrada quando já havia expirado há muito o tempo de reacção, para os direitos do consumidor.

            No caso de onde promana o recurso, a A./compradora, sendo uma sociedade comercial por quotas, não é um consumidor [cf., nomeadamente, o art.º 2º, n.º 1, da Lei n.º 24/96 de 31.7, que define o conceito – “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” – , bem como o art.º 1º-B, alínea a), do DL n.º 67/2003, de 08.4[13], na redacção introduzida pelo DL n.º 84/2008, de 21.5, com idêntica redacção].[14]

            Por conseguinte, afigura-se que o regime jurídico aplicável à situação em análise é o que resulta directamente da conjugação das disposições legais da lei civil substantiva, na forma supra referida, e não o especialmente destinado à regulação dos direitos e protecção dos interesses dos consumidores (maxime, aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores – cf., a propósito, o art.º 1º-A, n.º 1, do DL n.º 67/2003, de 08.4, aditado pelo DL n.º 84/2008, de 21.5).[15]

            10. Tendo em consideração o expendido nos autos, a documentação apresentada pela A. e a materialidade apurada [designadamente, a mencionada em II. 1. alíneas j), p), u) e cc), supra], dúvidas não restam de que entre a data em que ocorreu (e/ou deveria ocorrer) a denúncia dos defeitos das viaturas e a da instauração da acção decorreram mais de seis meses, pelo que, quando a A. se aprestou a exercitar os direitos que a lei lhe confere, intentando a adequada acção, já se encontrava esgotado o prazo de que dispunha para esse efeito (cf. art.ºs 916º, n.º 2 e 917º, do CC).

            E, retomando o referido em II. 8, in fine, supra, não se vê razão para deixar de seguir o entendimento largamente maioritário da doutrina e da jurisprudência de que o prazo de caducidade previsto no art.º 917º, do CC, se deverá aplicar, por interpretação extensiva, para além da acção de anulação, também às acções que visem obter a reparação ou substituição da coisa, ou ainda a redução do preço e o pagamento de uma indemnização pela violação contratual.[16]

            Atendendo às datas da denúncia dos defeitos e da propositura da acção, apenas podemos concluir pela procedência da excepção peremptória de caducidade relativamente ao pretendido pagamento das quantias despendidas com as reparações das viaturas, e consequente improcedência da acção.                   

            Assim sendo, o recurso não pode deixar de soçobrar.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação.

Custas pela apelante.

                                                                        *


Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus



[1] O Réu encontra-se devidamente identificado a fls. 96.
  Por decisão de fls. 107 foi “homologada a desistência da presente instância contra a (…)” (fls. 94, 99 e 105), indicada na petição inicial como sendo a “mulher” do Réu, sendo que à data da instauração da acção o Réu encontrava-se no estado de divorciado – casou com (…) (melhor identificada a fls. 97) em 02.6.1999, casamento dissolvido por divórcio declarado a 18.6.2003 e voltou a casar com a mesma em 05.12.2008 (cf. certidão reproduzida a fls. 95 a 97).
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] A resposta em apreço compreende também as respostas (restritivas) aos art.ºs 18º e 25º da b. i..
[4] Vide, entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7ª edição, Almedina, 2004, pág. 127 e I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, págs. 305 e seguintes.
[5] Preceitua o referido art.º:
                1- Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
                2- Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
[6] Vide Antunes Varela, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda, in CJ, XII, 4, págs. 21 e seguintes.
[7] Vide, neste sentido, ainda, J. Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª edição, Almedina, 2008, págs. 21 e seguintes e 42 e seguintes.
    Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 29.4.2010-processo 14/10.2YFLSB, publicado no “site” da dgsi.
[8] Vide, a propósito, J. Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 1991, págs. 87 e seguintes.
[9] Vide J. Calvão da Silva, ob. cit., pág. 49.
[10] Vide J. Calvão da Silva, ob cit. pág. 77 e ainda, de entre vários, os acórdãos do STJ de 04.11.2004-processo 04B086 e 06.11.2007-processo 07A3440, publicados no “site” da dgsi.
[11] Dispõe o mencionado art.º: 1 – O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo. 2 – A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido a defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa. 3 – Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.
[12] Vide, entre outros,  Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 213 e  J. Calvão da Silva, ob. cit., pág. 81.

[13] Que transpôs a Directiva 1999/44/CE, embora deixando inalterado o regime geral do Código Civil.
[14] Cf., neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 14.6.2011-processo 6132/08.OTBBRG-J.G1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[15] Porém, ainda que se propendesse para o enquadramento normativo acolhido na decisão sob censura, atenta a data dos factos em apreciação, sempre seria de aplicar o disposto no art.º 5º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, de 08.4, na sua redacção primitiva, com igual prazo de caducidade de seis meses após a denúncia, e não os (novos) prazos do art.º 5º-A, n.ºs 2 e 3, do mesmo DL, na redacção conferida pelo DL n.º 84/2008, de 21.5 (cf., nomeadamente, os art.ºs 12º, do CC, e 5º do DL n.º 84/2008).

[16] Cf. ainda, entre outros, J. Calvão da Silva, ob. cit., págs. 78 e 80 e seguintes, Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 2001, pág. 367 e seguinte [autor que justifica a solução nos temos seguintes: “Apesar do art. 917º ser omisso, tendo em conta a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda, por analogia com o disposto no art. 1224º, dever-se á entender que o prazo de seis meses é válido não só para interpor o pedido judicial de anulação do contrato, como também para intentar qualquer outra pretensão baseada no cumprimento defeituoso. De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos à prescrição geral de vinte anos (art. 309º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituosos caducam em seis meses (art. 921º, n.º 4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (art. 916º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o art. 917º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos.“] e os acórdãos do STJ de 29.11.1988, 25.10.1990 e 23.4.1998, in BMJ, 381º, 690; 400º, 631 e 476º, 389, respectivamente, bem como o citado acórdão de 06.11.2007-processo 07A3440.