Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
207/10.2GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA DA INFRACÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 153º E 155º, DO C. PENAL
Sumário: O crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a) do Código Penal reveste natureza procedimental pública.
Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I. Relatório.

1.1. No decurso da audiência aprazada nos autos supra epigrafados, a M.ma Juiz que à mesma presidia proferiu despacho cujo (parcial) teor passamos a reproduzir:

«A arguida vem acusada da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal contra as ofendidas A... (assistente), B... (assistente), C..., D..., E..., F... e G....

As ofendidas, no início da presente audiência de julgamento declararam desistir das queixas apresentadas contra a arguida, a qual, por sua vez, declarou não se opor às desistências apresentadas.

O Ministério Público, porém, opõe-se à homologação das desistências de queixa apresentadas, fundamentando tal oposição com a natureza pública do crime de ameaça agravada.

A questão a decidir refere-se a saber se o crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a) do Código Penal reveste natureza procedimental pública ou semi-pública, em ordem a ajuizar da atribuição ou não de eficácia extintiva do procedimento criminal dos autos à desistência de queixa formulada pelas ofendidas.

A promoção da acção penal rege-se pelo princípio geral da oficialidade ou publicidade, consagrado pelo art.º 48.º do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público legitimidade para promover ao processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º.

O art.º 49.º do Código de Processo Penal tem por epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» e o seu n.º 1 é do seguinte teor: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.”

Dos preceitos legais agora citados pode extrair-se a regra segundo a qual a legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos em que exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.

Nos demais casos, e abstraindo agora das situações em que é exigida acusação particular, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.

O n.º 2 do art.º 116.º do Código Penal dispõe: “O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.”

Contudo, a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela, pois, relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa é ineficaz.

É, assim, da existência de uma disposição legal, que condicione a promoção do procedimento pelo crime de ameaça agravada, por que a arguida vinha acusada, ao exercício do direito de queixa, que iremos averiguar.

O art.º 153.º do Código Penal é do seguinte teor: “1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. O procedimento criminal depende de queixa.”

Por seu turno, o art.º 155.º do Código Penal preceitua que: “1. Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; ou c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do art.º 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do art.º 154.º. (…)”.

O art.º 154.º do Código Penal ocupa-se da tipificação do crime de coacção, dispondo o seu n.º 4 que o procedimento criminal depende de queixa, quando a conduta tipificada e declarada punível tenha lugar entre «cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas de outro ou mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges».

Na redacção do Código Penal imediatamente anterior à Lei n.º 59/07 de 04.09, o único caso de agravação qualificativa do crime de ameaça correspondia à hipótese agora prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 155.º do Código Penal da versão actual e vinha previsto no n.º 2 do art.º 153.º do Código Penal, cujo n.º 1, tal como no texto vigente, opera a definição do tipo básico desse crime, figurando neste artigo um nº 3 cujo conteúdo corresponde ao do n.º 2 actual.

Ora, conforme escreve Pedro dos Anjos Frias (em “Por quem dobram os sinos?” A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso, Revista Julgar n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, pág. 39-57), com cuja exposição se concorda e reitera, pelo que se reproduz o essencial nos seguintes termos: (…) assinala-se em primeiro lugar que o artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não define o que seja uma ameaça, ou uma coacção, tipicamente relevante (s). Para a actuação da reacção penal mais gravosa prevista no artigo 155.º Código Penal, será sempre necessário o preenchimento de qualquer dos tipos matriciais – ameaça ou coacção, com os respectivos recortes típicos insertos nos artigos 153.º, n.º 1, e 154.º, n.º 1, ambos do Código Penal. (…) Desde logo, convém lembrar que os tipos matriciais ou fundamentais que o artigo 155.º do Código Penal, convoca para a sua própria actuação não possuem a mesma natureza no que concerne ao impulso processual subsequente à notícia do crime.

De facto, o crime de ameaça possui natureza semipública enquanto que o crime de coacção, actualmente, só a possui nas situações em que intercedem especialíssimas relações entre o agente e a vitima, vd. artigo 154 n.º 4, do Código Penal. (…)

Ora, em minha opinião, esta dualidade de regimes no que concerne ao impulso para o exercício da acção penal em relação aos crimes de ameaça e de coacção, que sempre se manteve e ainda hoje mantém, não pode ser escamoteada. Antes me parece que deverá constituir um horizonte compreensivo a que se deverá apelar para uma correcta resolução das questões em análise. (…)

Sublinha-se, ainda, em segundo lugar, que o anterior n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal, onde se prescrevia que «Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos. O agente é punido…» continuava a carecer de queixa.

Ora, perguntamos, esta previsão já existente seja no crime de ameaça, seja no crime de coacção, pode, por força de uma transferência, tornar totalmente irrelevante a vontade da vítima?

Mas então que razões válidas existem para tanto?

Que motivos foram invocados? (…)

Não as vislumbro. Tanto mais que se mantêm as implicações de politica criminal conexas com a exigência de queixa e a que acima me referi.

Não é pelo simples facto de a sanção ser mais grave que se poderá perseguir criminalmente a ameaça, sem mais, contra a vontade expressa da vítima. (…)

Assim, retira-se da Exposição de Motivos que o legislador pretendeu alargar à ameaça as três hipóteses que já ocorriam no anterior crime denominado «coacção grave» pois que a outra hipótese, a do crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, já estava expressamente prevista na anterior redacção do artigo 153.º, n.º 2, do Código Penal.

E curiosamente, ou não, escolheu para as três novas hipóteses a mesma moldura penal anteriormente prevista para a ameaça grave. Ou seja, dois anos de prisão ou multa até 240 dias, vd. o artigo 153.º, n.º 2, na redacção anterior à reforma do Verão de 2007.

(…)

Em minha opinião, é de concluir que o legislador arrumou as mesmas circunstâncias que pretendia fazer valer para ambos os tipos de crime em uma só disposição: o novo artigo 155.º que tem a sugestiva epígrafe: «Agravação». (…)

Parece-me, salvo o devido respeito, que se limitou a pôr tudo no mesmo saco, equiparando realidades material e originariamente distintas. (…)

Em conclusão, em minha opinião, por meio da nova redacção do artigo 155.º, n.º 1, corpo, do Código Penal, o mais que se lobriga é uma arrumação sistemática de um mesmo conjunto de circunstâncias que apenas relevam como circunstâncias agravantes e não constituem, de per si, crime autónomo ou independente, no que à ameaça concerne.

Tudo aponta para um alargamento da tipicidade no que concerne ao conteúdo da ameaça grave para efeitos de punição, isto é, como se tais novas circunstâncias pudessem ter sido arrumadas ao lado da primitiva que existia na anterior da redacção do n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal (prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos de prisão) e para todas valendo a disposição do então n.º 3. (…).

Neste sentido, e concluindo, considerando, por um lado, que a inclusão da exigência de queixa não é um capricho mas obedece ou está fundada em razões de política-criminal, não se vislumbram, nem foram referidas na respectiva Exposição de motivos da alteração legislativa em causa quaisquer razões de política criminal para não atribuir qualquer relevância à vontade da vítima quando esteja em causa o crime de ameaça punível pela conjugação dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, do Código Penal (a ameaça agravada), tal como acontecia no regime pretérito, tanto mais que o legislador manteve a mesma pena.

Por outro lado, a deslocação do anterior n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal para o novo artigo 155.º, n.º 1, alínea a), não modificou substancialmente o tipo de crime, sendo que o regime vigente contém apenas uma arrumação sistemática de várias circunstâncias (novas e velha) que agravam a pena prevista no tipo do art.º 153.º para onde reenvia expressamente.

Assim, em nossa opinião, concordando uma vez mais com a doutrina supra exposta, entendo que o actual art.º 155.º do Código Penal constitui, em relação ao crime de ameaça previsto no artigo 153.º do Código Penal, um conjunto de circunstâncias que agravam a pena a aplicar ao agente mas que não consiste em um novo tipo criminal e, como tal, não prescinde, para a sua concretização, da manifestação de vontade da vítima prevista no art.º 153.º n.º 2 do Código Penal.

Ou seja, confrontando o texto dos normativos legais em referência, na versão anterior à Lei n.º 59/07 de 04.09 e na introduzida por este diploma, conclui-se que o legislador desta Reforma do Código Penal pretendeu unificar os pressupostos da agravação qualificativa dos crimes de ameaças e de coacção, mantendo, porém, inalterado o tipo principal e, consequentemente, o regime de procedimentalidade de cada um desses crimes, na sua modalidade simples, que é semi-público, no caso do crime de ameaça, e público com excepções, no que toca ao crime de coacção.

Como tal, terá de constatar-se que é semi-pública a natureza procedimental do crime de ameaça agravada p. e p. pelos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º do Código Penal.

Por essa razão, a desistência de queixa formulada por cada uma das ofendidas tem a eficácia extintiva do procedimento criminal.

Em conformidade, uma vez que o crime em causa reveste natureza semi-pública, atenta as declarações de desistência das ofendidas e dada a não oposição da arguida, e mostrando-se aquelas tempestivas (cf. o art.º 116.º n.º 2 do Código Penal), julgo válidas as desistências da queixa apresentadas e homologo-as por sentença nos termos do art.º 51.º n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal.

Em consequência, cessadas as funções do Ministério Público, declaro extinto o procedimento criminal.

Fixo a taxa de justiça individual devida pelas assistentes no mínimo legal, sem prejuízo do disposto no art.º 5.º n.º 1 da Lei 7/2012 de 13.02.

Notifique e deposite.»

1.2. Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões:

1. A solução adoptada no despacho recorrido ao homologar a desistência de queixa do crime de ameaça agravada, redunda numa interpretação contrária à sufragada jurisprudencialmente nos Tribunais Superiores, pois que sem suporte bastante no elemento gramatical do texto legislativo, nem no seu elemento teleológico [cfr. art.º 9.º, do Código Civil], expresso na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que deu origem à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que procedeu à revisão do Código Penal.

2. O procedimento criminal pela prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, em qualquer das suas alíneas, do Código Penal, não depende de queixa do (s) ofendido (s), por tal requisito não se encontrar previsto neste segundo.

3. Ao homologar a desistência de queixa e declarar extinto o procedimento criminal, a sentença recorrida infringiu as normas previstas nos art.ºs 9.º do Código Civil; 48.º, 49.º e 51.º/1 do Código de Processo Penal, por referência aos art.ºs 153.º, n.ºs 1 e 2 e 155.º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que deveria ter interpretado tais normas conjugadas no sentido do procedimento criminal pelo referido crime não depender de queixa e da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

4. In casu, não estar sujeito à restrição prevista no apontado art.º 49.º, pelo que não seria aplicável a possibilidade de homologação da desistência de queixa prevista no também elencado art.º 51.º, n.º 1.

Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido, substituindo-se por outro que julgando ineficazes as desistências das queixas apresentadas pelas ofendidas, consequentemente determine que os autos prossigam seus termos com a realização da audiência de julgamento.

1.3. Contra-alegou depois a arguida/recorrida, concluindo na forma seguinte:

1. Não é pelo simples facto de a sanção ser mais grave que se poderá perseguir criminalmente a ameaça, sem mais, contra a vontade expressa da vítima.

2. Por meio da nova redacção do art.º 155.º, n.º 1, corpo, do Código Penal, o mais que se lobriga é uma arrumação sistemática de um mesmo conjunto de circunstâncias.

3. Circunstâncias que apenas revelam como agravantes e não constituem, de per si, crime autónomo ou independente, no que à ameaça concerne. 

4. O actual art.º 155.º do Código penal constitui um conjunto de circunstâncias que agravam a pena a aplicar ao agente, não constituindo um novo tipo de ilícito criminal.

5. O regime vigente contém apenas uma arrumação sistemática de várias circunstâncias que agravam a pena prevista no tipo do art.º 155.º para onde reenvia expressamente.

6. Com a redacção de 2007, o art.º 155.º estabelece uma agravação do tipo tendo por base agravantes e não circunstâncias qualificadoras do mesmo.

7. Por tais razões, a natureza semi-pública do crime previsto no art.º 155.º manteve-se mesmo após as alterações nele introduzidas.

8. Devendo manter-se, consequentemente, o despacho recorrido.

1.4. Proferido despacho admitindo o recurso interposto, cumpridas as formalidades devidas, remeteram-se os autos para esta instância.

1.5. Aqui, com vista nos termos do art.º 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao seu provimento, e, corolário, à revogação do despacho recorrido.

1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2, a arguida não respondeu.

1.7. Aquando do exame preliminar dos autos, ut n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância determinava a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir, com a recolha de vistos (o que se verificou) e submissão a conferência.

Cabe agora ponderar e decidir.


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II. Fundamentação.

2.1. Como se mostra por demais consabido, o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 335, bem como a jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. de 28 de Abril de 1999, in CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência aí citada -], mas isto sem prejuízo todavia das de conhecimento oficioso.

In casu, e porquanto se não vislumbra emergir fundamento conducente a tal intervenção oficiosa, atentando às conclusões do recorrente, o thema decidendum reconduz-se a aquilatar da natureza pública (versão do recorrente) ou semi-pública (versão assumida pelo despacho recorrido) do crime de ameaça previsto e punido pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, do Código Penal e, daí, do destino a dar ao despacho prolatado.

2.2. Como Adjunto, assinámos aresto decidindo da problemática ora ajuizada, concretamente no processo deste Tribunal n.º 550/09.3 GCAVR.C1, acessível em www.dgsi.pt. Porque nele se rebate já o entendimento que a M.ma Juiz a quo colige em seu favor – Pedro Daniel dos Anjos Frias, in Revista Julgar n.º 10, págs. 39 a 57 –, permitimo-nos elencar o então consignado pelo seu respectivo Ex.mo Desembargador Relator, Dr. Jorge Dias:

«O objecto do recurso do Ministério Público incide sobre a questão de saber se é ou não admissível a homologação da desistência de queixa, quando o arguido está acusado de crime de ameaça agravado p. e p. nos arts. 153 n.º 1 e 155 n.º 1-a) do Código Penal, cometido em 7/10/2009.

Importa, pois, determinar se o crime de ameaça agravado imputado ao arguido é de natureza pública ou semi-pública.

Na vigência do Código Penal na versão original e posteriores alterações, mas antes da alteração operada pela Lei 59/2007, o crime de “ameaça” e o de “ameaça agravado” eram de natureza semi-pública (artigo 155 n.º 3 do CP na versão original e artigo 153 n.º 3 do CP na versão revista em 1995), o que significava que dependiam de queixa do respectivo ofendido/queixoso e poderiam ser objecto de desistência dessa mesma queixa até à publicação da sentença em 1.ª instância.

Antes da reforma aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, a forma qualificada do crime de ameaça (que consistia na circunstância de a ameaça ser com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos) estava prevista na mesma norma que previa a forma simples ou base do tipo legal.

A ratio da agravação consistia, como diz Taipa de Carvalho in anotação ao art. 153, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 345., “na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção directa entre a gravidade do crime objecto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação.”

Por isso, concluiu que essa agravação se traduzia num crime de ameaça qualificado pela gravidade do crime ameaçado.

Assim, o tipo base ou simples e o tipo qualificado do crime de ameaça (previstos na mesma norma) tinham natureza semi-pública antes da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9.

Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, o legislador entendeu alterar a natureza do crime de ameaça agravado ou qualificado.

Com efeito, enquanto o crime base (previsto no artigo 153 do CP na versão de 2007) manteve a natureza semi-pública (ver n.º 2 do mesmo artigo), o mesmo já não sucedeu com o crime qualificado (previsto agora também no artigo 155, onde não se faz qualquer referência à dependência de queixa para o procedimento criminal).

Actualmente e, desde a reforma de 2007, no artigo 155 prevêem-se as agravantes aplicáveis quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção.

Tais circunstâncias (agravantes que, no caso do n.º 1, revelam “um maior desvalor da acção”, reportando-se quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção), traduzem um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental.

Nessa medida, verificando-se qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155 do CP, após a reforma de 2007, o crime de ameaça (ou de coacção) passa a ser qualificado.

Tratando-se de crime qualificado obviamente que é distinto, diferente do tipo fundamental, percebendo-se que o legislador lhe confira diferente natureza, à semelhança do que sucede com outros tipos legais (v.g. artigos 203 e 204, 212 e 213, 143 e 144, do CP).

O legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa).

De resto, não existe qualquer outra norma a conferir a natureza de crime semi-público (ou a fazer depender de apresentação de queixa o procedimento criminal) no caso de se verificar a agravação prevista no artigo 155 do CP, na versão de 2007.

(…)

Ao arguido foi imputado o crime de ameaça agravado ou qualificado previsto nos artigos 153 n.º 1 e 155 n.º 1-a) do CP, que é distinto do crime base previsto no artigo 153 do mesmo código.

Tal crime qualificado não depende de participação, sendo de natureza pública.

Nessa medida é irrelevante a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado aqui em apreço.

No mesmo sentido, entre outros, Acórdãos da Rel. Porto, de 1/7/2009, proferido no processo n.º 968/07.6 PBVLG.P1, e de 6/1/2010, proferido no recurso n.º 540/08.3 TAVLG.P1.

No mesmo sentido, Ac. da Rel. Guimarães, de 15-11-2010, no processo 343/09.8 GBGMR.G1, com o sumário: “O crime de ameaça agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, ambos do C. Penal passou, após a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, a ter natureza pública.”

Nesse aresto se refere, sempre que há um crime “simples” e um “qualificado” ou “agravado”, «se o legislador pretende atribuir natureza “semi-pública” ao simples e “pública” ao qualificado, coloca a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo simples e antes do qualificado, leva-nos a concluir que se trata de crime público. É assim nas ofensas corporais (arts. 143 e 144), no furto (arts. 203 e 204), no abuso de confiança (art. 205 n.ºs 1, 3 e 4) e na burla (arts. 217 e 218). Quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, é no fim do respectivo capítulo que faz a concretização – por exemplo, arts. 178 (para os crimes sexuais) e 187 (para os crimes contra a honra)».

No mesmo sentido, Ac. da rel. Lx de 13-10-2010, proferido no Proc. 36/09.6 PBSRQ.L1 3.ª Secção.

Do exposto entendemos não ser de sufragar a posição assumida no despacho recorrido e sustentada com fundamento na opinião de Pedro Daniel dos Anjos Frias, in Revista Julgar n.º 10, pág. 39 a 57.

É certo que para a reacção penal mais gravosa prevista no art. 155 do CP, será sempre necessário o preenchimento do tipo matricial do art. 153 n.º 1. Mas o mesmo acontece em relação ao crime de furto simples e furto qualificado, arts. 203 e 204, referindo aquele os elementos objectivos do tipo e limitando-se este a referir, “quem furtar”, sendo que necessariamente tem de ser “coisa móvel alheia”, o mesmo em relação ao dano simples e qualificado, arts. 212 e 213 em que em ambos se reproduzem os mesmo elementos do tipo, apenas acrescentando este as qualificativas e como em relação ao dano, no crime de ofensa à integridade física simples e grave, arts. 143 e 144 do CP.

Por outro lado, verifica-se que na ofensa à integridade física simples, art. 143 n.º 2 do CP, não é possível a desistência da queixa, já que o procedimento criminal não depende de queixa, “quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções e por causa delas” e, uma das qualificativas da ameaça, art. 155 n.º 1 al. c) do CP, é esta concretizar-se contra as pessoas referidas na al. l) do n.º 2 do art. 132, no exercício das suas funções ou por causa delas, sendo que essas pessoas são, entre as demais indicadas na referida alínea l), “agente das forças ou serviços de segurança”, “agente de força pública”, no exercício das suas funções ou por causa delas.

Ora, a razão para que a ameaça agravada seja crime público, nesta hipótese será a qualidade do sujeito ameaçado, e esta será a razão para que “não se possa dar relevância à vontade da vítima”.

Situação idêntica à da qualificativa da al. b) do n.º 1 do referido art. 155 do CP, em que a ameaça é praticada “contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Visa-se uma maior protecção do sujeito ameaçado, dada a sua especial vulnerabilidade.

E, não faria qualquer sentido que a ameaça qualificada pelas als. c) ou b), do art. 155 n.º 1 do CP fossem insusceptíveis de desistência da queixa e, a qualificada pela al. a) tivesse tratamento jurídico diferenciado.

Sendo que estas qualificativas das als. b) e c) do art. 155 inexistiam como agravantes da ameaça, antes da alteração operada pela Lei 59/2007.»

2.3. O entendimento sufragado no Ac. mencionado tem merecido sucessivo e unânime (se bem sabemos) acolhimento, como nos dão nota o recurso interposto e o parecer do Ex.mo PGA, exemplificativamente.

Em reforço, apenas coligimos – pela proficiência da argumentação utilizada –, um outro mais recente, proferido no âmbito do recurso então pendente no Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 16/11.1 GAMAC.E1, acedido em www.dgsi.pt, e, no qual, a 15 de Maio de 2012, a Ex.ma Desembargadora Relatora Ana Bacelar Cruz, após escrever – «De forma muito simples, pode dizer-se que há crimes cuja perseguição está dependente de queixa, outros de queixa e de acusação particular e outros em que a lei nada exige.

Os primeiros são os denominados crimes semipúblicos, os segundos crimes particulares e os últimos crimes públicos.

Relativamente aos primeiros, para que o Ministério Público, titular da ação penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou pessoa (s) a quem e lei confira legitimidade para tal, apresente queixa – artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Quanto aos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal também está dependente de queixa do ofendido ou de quem para tal tenha legitimidade mas, para além disso, aquele tem que constituir-se assistente e deduzir acusação particular – artigo 50.º do Código de Processo Penal.

Por fim e relativamente aos crimes públicos, o Ministério Público, por sua iniciativa, tem legitimidade para promover a ação penal.

No artigo 116.º do Código Penal, que se reporta, também, à desistência da queixa diz-se, no n.º 2, que «O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.»

De onde decorre que a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela.

Relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa não produz o efeito de extinguir o procedimento criminal.

Na versão do Código Penal resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça simples continua a estar previsto no artigo 153º, onde se mantém o procedimento criminal dependente de queixa [n.º 2]. O crime de ameaça agravada passou a estar previsto no artigo 155.º, onde nada se diz quanto ao procedimento criminal.

Temos como certa a opção por técnica legislativa que consiste em colocar a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo base e antes do qualificado, ou então em artigo autónomo quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie. E não vislumbramos razão para suspeitar ou concluir que tal procedimento foi alterado na situação que nos ocupa – previsão do artigo 155.º do Código Penal» –, mais avocou o expendido num outro aresto ainda desse mesmo Tribunal – recurso n.º 2140/08.9 PAPTM.E1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Edgar Gouveia Valente, a 12 de Novembro de 2009, também acessível em www.dgsi.pt – nos seguintes termos:

«Relativamente à questão de saber a quem compete a iniciativa (o impulso) de investigar a prática de crime e de a submeter ou não a julgamento, distingue a doutrina três tipos de delitos, a saber: “dizem-se públicos aqueles delitos relativamente aos quais o M. P. exerce a acção penal incondicionalmente, i.e, sem dependência de denúncia ou acusação dos particulares. São particulares latu sensu, os delitos cuja acusação pública terá de ser ou precedida de denúncia particular ou acompanhada de acusação particular (…). A denúncia e a acusação particulares são, pois, nestes casos condições de procedibilidade.” [2].

Em termos legais, constituem, hoje, as mencionadas condições de procedibilidade, a queixa (art.º 49.º n.º 1 do CPP), quanto aos crimes semi-públicos, bem como esta mesma queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular (cfr. art.º 50.º, n.º 1 do CPP), quanto aos crimes particulares.

“O fundamento da existência de crimes particulares lato sensu reside, por um lado, em que certas infracções (por exemplo, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v.g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infractor. Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal.

Complementa a consideração anterior a ideia de que em certas infracções (…) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse do particular, considerado em si mesmo e no reflexo que assume em interesses públicos.” [3].

In casu, no despacho recorrido interpreta-se o art.º 155.º do C. Penal como uma norma definidora apenas de um conjunto de circunstâncias agravantes, não constituindo autonomamente qualquer crime, o que implica que se mantêm intocadas, quanto ao impulso processual, as naturezas originárias dos crimes abrangidos, ou seja, a natureza semi-pública do crime de ameaça (cfr. art.º 153.º, n.º 2 do C. Penal) e pública do crime de coacção (cfr. art.º 154.º, n.º 4 do C. Penal, a contrario).

A questão que se coloca é: será tal interpretação de seguir?

Segundo o art.º 9.º, n.º 1 do C. Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei , mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Segundo o n.º 2 do mesmo normativo, não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Como nos diz José de Oliveira Ascensão [4] o ponto de partida da interpretação tem de estar na letra, que, porém, não é só o ponto de partida mas também um elemento irremovível de toda a interpretação (podemos dizer, de outro modo, que toda a interpretação começa com as palavras).

A técnica que o CP segue para apontar, quanto ao impulso processual, a natureza do crime, é a de, em caso de omissão à necessidade de queixa ou acusação particular [5], ter aplicação plena o princípio da oficialidade, ou seja, tratar-se de um crime público.

Assim, uma interpretação (meramente) literal do art.º 155.º do C. Penal, aponta para a natureza pública do crime de ameaça agravado, dada a inexistência de norma ressalvando a necessidade de queixa ou acusação particular.

Porém, se entendermos que o art.º 155º apenas define atomisticamente um conjunto de circunstâncias agravantes, mantendo-se o tipo-base do crime de ameaça no art.º 153.º, também resulta indiscutível que, assim, terá de se considerar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado (por força do disposto no art.º 153.º, n.º 2 do C. Penal).

Deste modo, o elemento literal da interpretação é insuficiente para nos dar uma resposta sobre a questão em causa.

Será que o pensamento legislativo (cfr. o acima mencionado art.º 9.º, n.º 1 do C. Civil) permitirá esclarecer qual a interpretação correcta do referido binómio normativo (art.º 153.º/ 155.º)?

Mostra-se hoje obsoleta a concepção subjectiva do pensamento legislativo que o identificava com os trabalhos preparatórios, conferindo-lhes quase a autoridade duma interpretação autêntica [6].

De qualquer forma, e uma vez que (apesar de não decisivo) se trata de um elemento interpretativo relevante, sempre diremos que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei de Revisão do Código Penal não esclarece cabalmente este ponto interpretativo concreto:

Com efeito, quer o despacho recorrido (a fls. 176 dos autos), quer a motivação do recurso (a fls. 211/2 dos autos) se referem ao mesmo parágrafo daquela, onde se refere a intenção expressa de equiparar o regime do crime de ameaça agravada ao regime do crime de coacção agravada.

Porém, como se afirma no despacho recorrido, “nem uma palavra” é dita quanto à natureza dos dois tipos fundamentais, quanto à questão do impulso processual.

Já o ponto 2, parágrafo 1 da mencionada Exposição de Motivos (mencionado na motivação de recurso a fls. 212) nos parece um pouco menos inócuo, se bem que não determinante.

Com efeito, afirmar que uma das orientações da reforma é o reforço da tutela dos destinatários previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do art.º 155.º do C. Penal, poderá constituir um indício quanto à natureza dos crimes em causa.

É hoje dominante a tese que identifica o pensamento legislativo com a intenção objectiva da lei:

«A intenção objectiva são os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar e que constituem a sua razão de ser; a interpretação funcional visa a descobrir essa razão da norma, ou seja, o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar.» [7]

Em sede específica de direito penal, deve hoje entender-se a querela da escolha da interpretação objectiva / subjectiva da lei (a que acima aludimos) nos seguintes termos:

A solução correcta está no meio termo: há que dar razão à teoria objectiva de que não são decisivas as efectivas representações (que normalmente nem se podem averiguar) das pessoas e grupos que participaram no processo legislativo; por outro lado, tem razão a teoria subjectiva segundo a qual o juiz está vinculado à decisão valorativa político-jurídica do legislador histórico.

A hipótese de que existe um “sentido objectivo” da lei, independente daquela decisão, do ponto de vista lógico, não é comprovável, sendo que a adopção de tal hipótese como válida, ou seja, alheada dos objectivos originários da lei, realmente consistiria em prosseguir, no plano interpretativo, concepções subjectivas do juiz, assim se depreciando o princípio da legalidade. [8]

Procurando, assim, no caso dos autos, o referido meio termo interpretativo:

Como é dito (com alusão especificada à evolução histórica do respectivo normativo) no despacho recorrido, até à reforma penal de 2007, o crime de ameaça (s) agravado sempre teve (desde o Código Penal de 1982), pacificamente, natureza semi-pública.

Logo, devemos interrogar-nos – introduziu tal reforma uma alteração da natureza do crime de ameaça agravada, no sentido de o passar a público?

Permitimo-nos recordar que, tal como Günther Jakobs [9] afirma, «a interpretação sistematicamente adequada supõe um sinal de que se acertou com a – patente ou meramente latente – “vontade da lei”».

Quanto à circunstância agravante prevista no art.º 155.º, n.º 1, alínea c), entendemos que o bem jurídico protegido (a liberdade pessoal) transcende, na sua essência, a esfera individual, pretendendo-se evitar a possibilidade de interferência no exercício de funções que prosseguem interesses públicos.

Nessa medida, não é o sujeito individual visado o ofendido, mas sim o Estado, entidade de visa a prossecução daqueles interesses.

Uma vez que é o Estado o verdadeiro ofendido neste tipo de crimes, devem os mesmos revestir natureza pública. [10]

Idêntico raciocínio se deve efectuar quanto à necessidade de defesa das pessoas particularmente indefesas referidas na alínea b) do citado normativo, entendendo-se que tal deve ser tarefa do Estado.

Tudo, assim, indica que o art.º 155.º não traduz, ao invés do que se defende no despacho recorrido, apenas uma diferente “arrumação sistemática” de circunstâncias agravantes, mas um verdadeiro tipo qualificado, com diferente natureza relativamente ao tipo básico.

Com efeito, existem no C. Penal diversos exemplos de tipos de crime que, na sua forma simples/básica têm natureza semi-pública, ao passo que na forma agravada têm natureza pública. (furto simples vs qualificado; ofensa à integridade física simples vs qualificada).

Assim, entendemos que o legislador, ao eleger a fórmula de prever numa só norma os crimes agravados de coacção e de ameaça, não fazendo qualquer alusão à necessidade de queixa, quis conferir-lhes natureza pública. [11]

Nestes termos, entendendo-se que o crime de ameaça agravada tem natureza pública, as desistências de queixa constantes dos autos são ineficazes, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto no artigo 155.º do Código Penal e art.º 48.º, bem como 49.º e 51.º (a contrario) do Código de Processo Penal.

(…)

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[4]
In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, páginas 353/354.

[5] Quando entende qualificar o tipo de crime como semi-público ou particular, o C. Penal fá-lo em número autónomo da descrição da factualidade típica, após esta (art.º 203.º, n.º 3), ou em artigo diverso reportado aos crimes previstos no Capítulo em causa (cfr. art.º 188.º) ou a um conjunto de crimes (art.º 178.º, números 1 e 2).

[6] Neste sentido, Francesco Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis (tradução de Manuel de Andrade), 4.ª edição, Coimbra, 1987, página 145.

[7] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil, Volume I, Lisboa, 1987, página 39.

[8] Seguimos, numa tradução livre, o entendimento de Claus Roxin, in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, página 150/1.

[9] In Derecho Penal, Marcial Pons, 1995, página 94.

[10] Neste sentido, quanto ao regime anterior ao C. Penal de 1982, vide José António Barreiros in Processo Penal – 1, Almedina, Coimbra, 1981, página 457.

[11] Neste mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 01.07.2009 no âmbito do Processo 968/07.6 PBVLG.P1 disponível em http://www.dgsi.pt : “o art.º 155.º não contém norma que estabeleça a natureza semi-pública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao art.º 155º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do n.º 1 ou em função do resultado previsto no n.º 2, têm a natureza de crimes públicos.”»

Confortados pois nas peças citadas logo se alcança o teor da decisão reclamada.


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III. Dispositivo.

Perante todo o exposto e concluindo, decidimos revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, julgando irrelevantes as desistências das queixas, ordene o prosseguimento dos autos, com realização do julgamento dos sete crimes de ameaça p.p.p. art.ºs 153.º, n.º 2 e 155.º, do Código Penal, assacados à arguida.

Sem tributação.


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Brizida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves