Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2419/16.6T8PBL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ALIMENTOS
ALIMENTOS EDUCACIONAIS
MAIORIDADE
FORMAÇÃO ACADÉMICA
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.1878 CC
Sumário: A contribuição dos pais para alimentos dos filhos – artigo 1878º, nº 1, do Código Civil – deve estabelecer entre eles um patamar de igualdade, de proporcionalidade, o qual passa por fixar as despesas mensais dos filhos; verificar o que sobra a cada progenitor, depois de deduzidas as despesas fixas de cada um e estabelecer, de seguida, uma contribuição proporcional às disponibilidades de cada progenitor, sem abstrair do mínimo necessário à sobrevivência dos progenitores.
Decisão Texto Integral:    








         Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                          *

1 – RELATÓRIO

B (…) veio intentar a presente ação contra E (…) pedindo a condenação do requerido a pagar-lhe 250 € de prestação de alimentos acrescida de comparticipação nas despesas de saúde e escolares.

Para fundamentar tal pretensão alega, em síntese que, o requerido é seu pai e pese embora ela requerente haja completado já completado a maioridade não tem ainda capacidade para por si só prover ao respetivo sustento, uma vez que tendo menos de 25 anos não completou a sua formação académico-profissional e muito embora se encontre fixado um valor a pagar pelo requerido à progenitora, durante a sua menoridade, tal valor encontra-se desadequado, face às suas atuais necessidades.

                                                           *

Foi determinado que os autos passassem a seguir os termos previstos no art. 46º e segs. do RGPTC.

Agendada a conferência a que alude o art. 47º do referido diploma legal, na mesma não foi possível obter solução amigável para o litígio.

                                                           *

Notificado para tal, o requerido apresentou oposição, na qual com os fundamentos de fls. 53 a 61, aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais, pugna por que o tribunal determine a impossibilidade de pagamento de qualquer valor a título de alimentos para a sua filha/requerente, seja ele o que já se encontra determinado ou o que se mostra agora peticionado.

Alega o requerido, como sustentáculo dessa posição que a requerente omite os rendimentos da progenitora, cujo agregado integra, a vida faustosa e de excessos que usufruem, donde conclui que ambas não necessitam seja de que valor for da sua parte para subsistência e estudos da primeira.

Mais alega que ele, muito pelo contrário, não tem possibilidades para pagar sequer o que antes foi fixado, quanto mais os valores que sucessivamente lhe vêm sendo pedidos, não só porque os seus rendimentos, são muito inferiores ao que diz a requerente como porque os mesmos se encontram onerados com despesas fixas, mormente com encargos de habitação, prestações de empréstimos e despesas com saúde do próprio, que nem sequer pode tratar convenientemente por motivos económicos.

Mais invoca que o valor que lhe resta não chega sequer para prover de forma digna à sua própria subsistência e que a filha favorece a mãe em assuntos que envolveram ambos, chegando a mentir, não mantendo qualquer contato com o pai, a não ser no que a questões financeiras concerne.

                                                           *

A tal posição respondeu a requerente nos termos de fls. 92 e segs., onde propugna pelo pedido deduzido, acrescentando que o valor a fixar deverá continuar a ser deduzido no salário do requerido na medida em que o mesmo só paga por essa via, como dos apensos se pode constatar, acrescentando que parte dos factos invocados não correspondem à realidade e outros não têm o enquadramento, origem e consequências que o requerido lhes pretende dar.

                                                           *

Instruída a causa, agendou-se data para produção de prova, o que veio a ocorrer com observância do formalismo legal imposto, conforme da ata elaborada melhor consta.

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados (e não provados), relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que os factos apurados permitiam concluir que procedia a pretensão da requerente de ver aumentado o valor mensal a pagar pelo progenitor (por terem aumentado os seus encargos, por via da sua situação académica), termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«São termos em que e com os mencionados fundamentos julgando a presente acção parcialmente procedente por provada, se decide:

1. Condenar E (…) ao pagamento da prestação alimentar de 260€ mensais a sua filha B (…), a contar da presente data e até que a mesma complete 25 anos de idade ou até que, logrando-o antes de tal limite, termine a sua formação académica.

2. Determinar que a referida quantia seja anualmente actualizada em Janeiro pelo valor fixo de 2€.

3. Determinar que a dedução do referido valor continue a ser feita através da entidade patronal nos termos determinados no apenso de incumprimento, devendo comunicar-se em conformidade.

4. Absolver o requerido do que, de mais, havia sido peticionado.

5. Condenar requerente e requerido nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento.

Registe e notifique.»

                                                           *

De referir que, integrando essa sentença, consta o seguinte despacho quanto ao valor da ação:

«Valor da acção nos termos dos artºs 306º, nº1 e 2, 296º, 297º, n2 e 298º, nº3, fixo à presente acção o valor de 3.000,01€».

                                                           *

É com esta decisão que o Réu/requerido não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

«I. Nos termos do artigo 298.º, n.º 3 do CPC, deveria o valor da ação ter sido fixado o valor de € 18.000,00 à acção.

II. Ao decidir como decidiu, a Meret.ª Juiz do Tribunal a quo efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 306º, nº1 e 2, 296º, 297º, n2 e 298º, nº3 do CPC, desta sorte incorrendo na sua violação.

III. Ainda que assim não se entenda, ao decidir fixar o valor da causa em € 3.000,01, mal andou a Meret.ª Juiz do Triunal a quo, devendo o mesmo ser fixado em € 30.000,01. Pelo que, ao decidir como decidiu, a mesma incorreu numa incorreta interpretação e aplicação do disposto no artigo 303.º n.º 1 do CPC.

IV. Assim, considerando a alteração do valor da causa, nos termos supra expostos é o presente recurso admissível, nos termos do artigo 629º n.º 1 do CPC.

V. Da prova apresentada e produzida, apenas logrou ser provado que as despesas fixas de educação são de € 381,35 (trezentos e oitenta e um euros e trinta e cinco cêntimos), donde, deveria a falta de prova adicional ter sido valorada contra a parte que com ela estava onerada, ou seja, a Apelada.

VI. Assim, deveria ter sido fixada uma prestação no valor de €190,68 (cento e noventa euros e sessenta e oito cêntimos) por ser esse o valor cuja prova foi efetivamente efetuada.

VII. Guardado o devido respeito, ao determinar uma prestação de € 260/mês, superior à prestação de € 190,68 cuja prova foi efetivamente realizada, a Meret.ª Juiz do tribunal a quo efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 342.º do C. Civil, desta forma incorrendo na sua violação.

VIII. O Apelante apresentou prova documental comprovativa de maior capacidade contributiva da outra progenitora, bem como assim prova da sua incapacidade económica que não foi devidamente valorada.

IX. A Meret.ª Juiz do tribunal a quo ao ter indeferido a prova requerida quanto à situação patrimonial da outra progenitora, em despacho de 16 de outubro de 2019, incorreu numa errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 2004.º do CC e 342.º do CC, assim incorrendo na sua violação.

X. Ao não considerar a insuficiência económica do Apelante e a maior capacidade contributiva da outra progenitora para efeitos de prestação de alimentos à Apelada, a Meret.ª Juiz do Tribunal a quo efetuou uma incorrecta apreciação e aplicação do disposto nos artigos 1880.º, 1905.º, 2004.º, 2012.º e 2013.º do Código Civil, desta sorte incorrendo na sua violação.

XI. Pelo exposto, deverá ser revogada a douta sentença recorrida e subsituida por outra que fixe a pensão de alimentos a pagar pelo Apelante em €190,68/mês.

Nestes termos e nos melhores de direito deve a douta sentença recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que julgando parcialmente procedente a acção, condene o Apelante no pagamento de uma pensão de alimentos no valor de €190,68/mês.

Só assim se fará Justiça! »

                                                           *

Por sua vez, apresentou a A./requerente as suas contra-alegações a fls. 155-159, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«1. Veio o recorrente pedir a reapreciação da determinação do valor processual da presente ação,

i. A referida alegação deveria ter sido feita aquando da contestação apresentada pelo recorrido,

ii. O recorrido deveria ter lançado mão do incidente plasmado no disposto nos artigos 296 e segs do CPC

iii. Ao fazê-lo agora, tal alegação padece de extemporaneidade

2. Veio o recorrente pedir a reapreciação do valor fixado em sede de pensão de alimentos Ao fixar o valor de 260€/mês, sem qualquer acrescimo para outras despesas , o tribunal a quo não excedeu os parâmetros legalmente fixados para a determinação do valor da pensão alimenticia, vejamos:

 O requerido é Funcionário da Autoridade Tributária com a categoria de técnico adjunto, com vencimento pertencente ao 2º Escalão – índice remuneratório 495 com uma remuneração base de 1.630,58€ + cerca de 100€ de subsídio de refeição, o que após as deduções obrigatórias fica com o remanescente de cerca de 1.170€ mensais

 O valor fixado corresponde à soma

- das despesas provadas nos autos relativas a habitação ( 275 x 50% = 137,50€), propina escolar ( 106,35x 50% = 53,18€), ou seja 190,68 € (137,50+53,18)

- acrescido do valor de 50,00€ para as demais despesas - saude, medicação, vestuário, educação – , valor razoavel atendendo aos parametros

Os alimentos dos ascendentes aos descendentes compreendem além da habitação, vestuário e alimentação, o prover à saúde, à segurança e à educação, pelo que o tribunal cumpriu o estabelecido legalmente a fixar a pensão alimenticia em 260,00€ sem acrescimo de despesas

3. A título subsidiário:

Entende a recorrente que o tribunal poderia ir mais além na fixação da pensão alimentícia

 Considerou o tribunal a quo que tudo o que é indispensável ao sustento, habitação,vestuário, instrução e educação da B (…) se cifra em 512,00€ mensais, é que

O valor de 260€/mês é o que caberá a cada progenitor pagar em sede de pensão alimenticia à recorrida ( 260x2=512,00€)

a. Quais as despesas da B (…)?

i. Habitação: 275,00€

ii. Propinas escolares: 106,35€

iii. Água, luz, gas, vestuário, livros, saude :100,00€

O valor de 100,00€ para consumos domésticos, alimentação, deslocações, livros e material escolar, saúde e outras despesas normais do quotidiano parece-nos pouco face aos patamares da normalidade

É facto assente (9. Da Decisão) que só entre Janeiro e Março de 2019 a recorrida teve despesas variáveis de saúde e educação, as primeiras no valor de 25,76€ e as segundas de 966,80€, pelo que

Entre Janeiro e Março de 2019 houve uma média mensal de 322,00€ só em despesas escolares, Ao referido valor acresceram despesas com alimentação, produtos de higiene, vestuário, como qualquer agregado.

b. Atento o princípio da razoabilidade e à prova constante nos autos, devia o tribunal ter ido mais além

Quais as necessidades da B (…)?

Se a recorrente recebia o valor de 152,0€ a título de pensão alimentícia e nessa altura não pagava renda de casa nem propinas, acrescendo à sua realidade o pagamento de uma renda para habitação e das propinas devido à frequência de estudos superiores, devia o valor da despesa acrescer ao valor já fixado, ou seja

Devia o tribunal fazer acrescer à pensão anterior de 152,00€ - respeitante a sustento, vestuário, educação e saúde-, o valor de 190,00€, relativa a habitação e instrução, fixando assim uma pensão alimentícia de 342,00€ sem qualquer acréscimo de despesas, mantendo todo o demais decidido, a saber, a actualização anual em Janeiro no valor de 2€, a dedução do referido valor através da entidade patronal.

Termos em que e nos mais de direito que, como habitual V. Exas. tão doutamente suprirão, deve o recurso interposto pelo Recorrente improceder,

Requer, a titulo subsidiário, que seja fixada uma pensão alimentícia no valor de 342,00€ sem acrescer despesas, mantendo-se todo o demais decretado na douta decisão, assim se fazendo a adequada e acostumada,

J U S T I Ç A ! »

                                                           *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são[2]:

- desacerto do despacho (integrante da sentença) que fixou o valor da ação em € 3.000,01 [o que é também condição de admissibilidade do recurso]?;

- erro de decisão [ao dar-se procedência à pretensão da Autora]?

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso, é a que foi alinhada na decisão recorrida (e que não foi expressamente alvo de impugnação nas alegações recursivas), a saber:

«Encontram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão:

1. B (…) nasceu a 2.5.1999 e é filha de N (…) e E (…)

2. Tendo sido casados um com o outro, os progenitores vieram a divorciar-se por mútuo consentimento no âmbito dos autos principais, por sentença proferida a 21.11.2016, transitada em julgado.

3. Entre outras coisas, ali se procedeu á regulação do exercício das responsabilidades parentais de B (…), única filha do casal, então menor.

4. No que ao caso concerne ali ficou decidido que B (…) ficaria a residir com a mãe, convivendo com o pai, mediante acordo de todos.

5. Foi, então, fixada a prestação de alimentos a pagar pelo progenitor no valor de 125€ mensais a pagar até ao último dia de cada mês, quantia a actualizar anualmente em 1€ com início em Janeiro de 2018.

6. Nos termos do decidido, o valor mensal da dita prestação passaria para 150€ mensais, após conclusão do Curso de Inglês no ILC.

7. A acrescer a tal valor foi determinado que o pagamento das despesas de saúde e escolares da jovem seriam suportadas por ambos os pais, em partes iguais, mediante a apresentação dos documentos comprovativos de tais despesas, outro tanto se passando com as despesas extracurriculares de inglês mencionadas no ponto anterior.

8. Então, o uso da casa de morada da família foi atribuído exclusivamente ao requerido, até à partilha, sem qualquer contrapartida.

9. Em 12.4.2019, por decisão transitada em julgado foi declarado o incumprimento por parte do requerido da prestação alimentar, tanto na sua parte fixa, no que se referia, ás prestações de Janeiro a Março de 2019, no valor unitário de 152€, bem como despesas variáveis de saúde e educação, as primeiras no valor de 25,76€ e as segundas de 966,80€.

10. No processo correspondente (apenso B), foi determinada a dedução 202€ directamente no salário do devedor, nos termos do artº 48º do RGPTC, para pagamento dos valores em atraso, á razão de 50€ mensais e o restante para pagamento das prestações fixas, vincendas, tendo-se determinado que quaisquer quantias que tivessem sido penhoradas deveriam ser levadas em consideração do incumprimento para abatimento no valor de alimentos vencidos.

11. B(…) frequenta o 3º ano do Mestrado Integrado de Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de (…).

12. Não tem qualquer rendimento próprio.

13. De propinas paga o valor mensal de 106,35€.

14. Pelo arrendamento de um estúdio na cidade de (…) paga 275€ mensais.

15. Em consumos domésticos, alimentação, deslocações e livros e material escolar e outras despesas normais do quotidiano gasta valores mensais exactos não apurados, mas que, em todo o caso se situam dentro dos patamares da normalidade.

16. O requerido é Funcionário da Autoridade Tributária com a categoria de técnico adjunto, com vencimento pertencente ao 2º Escalão – índice remuneratório 495 com uma remuneração base de 1.630,58€ + cerca de 100€ de subsídio de refeição.

17. Sobre o dito valor incidem descontos mensais de cerca de 300€ de retenção de imposto e cerca de 260€ de Contribuições para CGA, ADSE, CPFAE e Quotizações Sindicais.

18. Após tais deduções obrigatórias do remanescente (cerca de 1.170€ mensais), estão a ser feitas as seguintes deduções mensais regulares: 124,38€ de prestação de empréstimo contraído perante a Caixa de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado em 19.9.2016 no valor de 6000€; 42,86€ de prestação de empréstimo contraído perante o STI em 8.6.2018 no valor de 1.500€ e o valor cuja dedução foi determinada pagar pagamento dos alimentos em dívida.

19. O requerido permanece a viver na que foi a casa de morada da família, propriedade do dissolvido casal, sendo ele quem liquida os valores referentes à mesma, como imposto, prestação de empréstimo à habitação responsabilidade do casal, seguros referentes ao imóvel, em valor exacto não apurado, mas que, em todo o caso, na totalidade ascendem a cerca de 600€ mensais.

20. As partilhas ainda não se mostram efectuadas, muito embora já estejam em curso.

21. Em altura exacta não apurada a requerente viajou com a mãe e seu actual marido para França.»

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica [até por ser condição de admissibilidade do recurso interposto] importa solucionar é a que se traduz no alegado desacerto do despacho (integrante da sentença) que fixou o valor da ação em € 3.000,01.

O segmento do despacho recorrido é concretamente do seguinte teor:

«Valor da acção nos termos dos artºs 306º, nº1 e 2, 296º, 297º, n2 e 298º, nº3, fixo à presente acção o valor de 3.000,01€».

Vejamos.

No requerimento inicial a Autora/requerente indicou o valor para a ação de €3.000,00 (três mil euros).

O Réu/requerido nada disse ou adiantou quanto a esse particular quando teve oportunidade para tanto, a saber, na sua contestação/”alegações” – pois que se estava perante uma ação que seguiu os trâmites processuais previstos no RGPTC (cf. art. 47º do RGPTC, aplicável ex vi do art. 989º do n.C.P.Civil).

Sendo que o regime legal é, sinteticamente, o seguinte: o Réu, pode, na contestação e sob pena de se considerar que aceita o valor indicado pelo autor, impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição, podendo, nos articulados seguintes, as partes acordar em qualquer valor (cf. art. 305º, nos 1 e 4 do n.C.P.Civil); sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes, nos termos descritos, compete ao juiz fixar o valor da causa, o que este fará, em regra, no despacho saneador e, excecionalmente, nos processos a que se refere o nº 4 do art. 299º e naqueles em que não houver lugar àquele despacho, na sentença (cf. art. 306º, nos 1 e 2 ainda do n.C.P.Civil); se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, este deve fixá-lo no despacho em que aprecia o requerimento de interposição (art. 306º, nº 3, do mesmo n.C.P.Civil).

À luz deste regime legal, será que a não impugnação, pelo Réu, do valor da causa indicado pelo Autor, significa que aquele aceita esse valor?

Não vislumbramos como deixar de responder afirmativamente a uma tal questão, sem embargo do que se segue.

Mas será, então, que se o juiz, na sentença, atribuir à causa o valor indicado pelo Autor e aceite pelo Réu, não poderá este último pôr em causa esse valor em momento processual posterior, nomeadamente com o objetivo de tornar admissível recurso por si interposto da sentença?

A esta questão igualmente cremos que a resposta deve ser afirmativa, na medida em que ainda não se tinha formado caso julgado quanto a esse particular, estando então o réu em tempo de suscitar a questão no recurso interposto na imediata sequência à pronúncia do Tribunal quanto a esse aspeto.

Sendo certo que tal possibilidade lhe é expressamente permitida pelo art. 629º do n.C.P.Civil – mais concretamente porque, tendo incidido sobre o valor da causa, a sentença recorrida é recorrível nos termos do disposto na al.b) do nº 2 desse normativo.

Assente isto, será que assiste razão ao Réu/recorrente quando pugna pela fixação do valor da ação em € 18.000,00, ou, no limite, em € 30.000,01?

De referir que o despacho recorrido se decidiu pelo valor de “3.000,01€”, valor esse que até parece resultar de mero lapso de escrita, porque nem sequer correspondia ao indicado no requerimento inicial (que era de “3.000,00€”), antes tendo alguma similitude com o propugnado de “€ 30.000,01”…

Sucede que, em nosso entender, o valor da presente ação deve ser fixado em € 18.000,00, por tal decorrer do que se encontra estabelecido no art. 298º, nº3[3], do já citado n.C.P.Civil.

Este normativo estatui pela seguinte forma:

«3 - Nas ações de alimentos definitivos e nas de contribuição para despesas domésticas o valor é o quíntuplo da anuidade correspondente ao pedido.»

 Cremos que esta norma estabelece o critério geral a seguir nas ações de alimentos “definitivos”, como igualmente o é a presente ação – por contraposição a um procedimento em que estivesse em causa a fixação de alimentos “provisórios”.

Ora se assim é, o valor da ação devia ter sido fixado em € 18.000,00, na medida em que, compulsados os autos, se constata que a Autora/requerente peticionou no requerimento inicial que «se fixe a final os alimentos no valor peticionado nunca inferior a 250€ mensais», mas em 25/11/2019, alterou o pedido para «€ 300,00 mensais fixos», donde, sendo o valor da anuidade do pedido € 3.600, o quíntuplo dessa anuidade é € 18.000,00.

   Nestes termos procedendo esta questão recursiva, com o significado e consequência processual de ser admissível o recurso interposto, porque referente a ação de valor superior à alçada do Tribunal a quo[4].

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4.2 – O enquadramento e decisão que importa operar na situação vertente reporta-se nuclearmente ao invocado erro de decisão, por se ter dado procedência à pretensão da Autora.

Será assim?

Começaremos por dizer que não se farão considerações sobre o enquadramento jurídico geral dos factos, por estar já feito na sentença e não ter sido colocada em causa no recurso, seguindo-se então diretamente para análise do mérito substantivo da decisão em si.

Apenas se dirá, como é consabido, que os pais estão obrigados a contribuir para os alimentos dos filhos (cfr. art. 1878º, nº 1, do C.Civil) e, por isso, cada um dos progenitores tem de contribuir dentro do que lhe for humanamente possível para a alimentação dos filhos e se alguém tiver de fazer sacrifícios ou passar necessidades, tal situação deve onerar, em regra, os progenitores.

Esta oneração colocada a cargo dos progenitores funda-se no facto dos filhos enquanto menores, e logo após a maioridade, serem seres humanos em formação e desenvolvimento e da circunstância do seu futuro depender, em regra, desta formação e deste desenvolvimento; em contrapartida, os progenitores já passaram por essa fase e embora possam melhorar as suas vidas e fazer, eventualmente, hoje o que não fizeram nessas idades, já nada podem fazer para alterar o passado.

 Daí que o interesse dos filhos deva prevalecer por ser atual e prioritário em relação ao interesse dos progenitores.

Sendo certo que atendendo ao desempenho escolar da Autora, ora recorrida, seja de esperar que os progenitores mantenham o esforço que têm feito, o que, sendo um dever, mesmo assim é de louvar.

Face a estes princípios, cumpre estabelecer entre os progenitores um patamar de igualdade, de proporcionalidade, que passa por verificar:

• quanto despende a filha por mês;

• quanto recebem líquido os progenitores por mês e qual a percentagem de cada um para esse total;

• quanto sobra a cada progenitor depois de deduzidas as despesas fixas de cada um e qual a percentagem de cada um nesse total líquido.

Se se aplicar a percentagem de cada um neste total líquido ao total das despesas da filha encontrar-se-á uma proporção que satisfará, em regra a igualdade entre os progenitores.

Não tem de ser sempre assim, pois, por exemplo, por vezes, há progenitores que cuidam dos filhos e isso implica que evitem muitas despesas que existiriam se esses serviços fossem prestados por terceiros ou deixam de auferir rendimentos porque ocupam o tempo a cuidar dos filhos.

Outras vezes, quando os rendimentos de ambos forem elevados, podem as contribuições ser iguais, muito embora um aufira mais que o outro.

Vejamos então.

A progenitora reside com a filha, estudante universitária, a qual depende economicamente em absoluto dos pais, por não ter qualquer rendimento próprio, sendo que a mesma beneficiava de prestação alimentar fixada em seu benefício durante a respetiva menoridade no valor mensal atualizado de € 153,00, acrescido de ½ das despesas escolares e de saúde.

Provou-se que a Autora tem, na atualidade, despesas fixas mensais de € 381,35, só em propinas e alojamento, pois que a tal acrescem naturalmente as demais despesas com alimentação, vestuário, calçado, aquisição de livros e material escolar, despesas do dia-a-dia e transportes, pelo menos, o que ascende a valor não concretamente apurado.

Por seu turno, provou-se que o progenitor, aqui Réu/recorrente, recebe líquidos cerca de € 1.170,00, sendo que apresenta encargos mensais que totalizam € 817,24 [= € 124,38 de prestação de empréstimo + € 42,86 de prestação de empréstimo pessoal + € 50,00 dos alimentos em dívida + € 600,00 de prestação de empréstimo à habitação], donde um montante de € 352,76 disponível mensalmente para as suas demais despesas pessoais (em alimentação, vestuário, consumos domésticos em água, eletricidade, telecomunicações, etc.,…).

Já quanto à progenitora, nada em concreto se apurou, pelo que na decisão se vai ter de lidar com essa ausência de prova, que onerava o Réu/recorrente, por, como se sublinhou na sentença recorrida, «recair sobre o obrigado a alimentos o ónus de alegar e provar que a prorrogação não deve ocorrer por ocorrência de qualquer das excepções erigidas na lei, ou seja, a cessação terá que ser pedida e provada por aquele que está obrigado à prestação alimentar.»

De referir que o mesmo nem se poderá queixar de não o terem deixado fazer essa prova[5], pois que tendo sido efetivamente indeferido o seu pedido de que oficiosamente se indagasse pelos rendimentos da progenitora, a não ter concordado com tal decisão judicial cumpria-lhe ter oportuna e imediatamente recorrido da mesma [cf. art. 644º, nº2, al.d) do n.C.P.Civil], o que não tendo feito determina a preclusão, por manifesta extemporaneidade/intempestividade, da alegação recursiva nessa base!

Em todo o caso, face à contingência e constrangimento para a decisão que decorre do desconhecimento de valores importantes a ter em conta na equação que importava fazer, vamos seguir na apreciação com um critério metodológico de uma divisão equitativa, isto é, de ½ para cada um, dos valores das despesas da Autora/recorrida pelos seus dois progenitores.

Ora, se a Autora/recorrida tem despesas fixas com educação e habitação no valor de € 381,35, daí resulta só por aí um valor de comparticipação do Réu/recorrido em € 190,68.

Sucede que a Autora/recorrida tem outras despesas mensais, cujo valor não se apurou em concreto, mas que são inquestionáveis – são as despesas com alimentação, vestuário, calçado, aquisição de livros e material escolar, despesas do dia-a-dia e transportes, pelo menos.

E quais serão então os gastos com estas demais despesas mensais que podem ser considerados?

Ou, dizendo de outra forma, qual o montante equilibrado a considerar para esse efeito que possa e deva ser exigido do Réu/recorrente?

Argumenta este último nas alegações recursivas que «(…) para uma prestação alimentar de € 260/mês, tal significa que a Meret.ª Juiz do Tribunal a quo considerou que tais gastos ascendem a € 138,64, tendo imputado metade dos mesmos ao ora Apelante».

Assim é efetivamente, sendo que de tal decorre que lhe está a ser exigido, proporcionalmente (metade), o valor de mais € 69,32 a este título.

Que dizer?

Desde logo que de tal resulta uma contribuição diária, proporcional, de € 2,31 [= € 69,32 : 30], para essas ditas despesas da Autora/recorrente, o que, salvo o devido respeito, só pode ser considerado escasso…

Contudo, em nosso entender, não se pode igualmente olvidar que resulta do já supra exposto ter o Réu/recorrente apenas disponível mensalmente na atualidade o montante de cerca de € 200,00 [= € 352,76 - € 153,00], pelo que, a exigência do montante de mais € 69,32 mensalmente a favor da Autora/recorrida [a que acrescem os € 37,68 mensais já devidos pelas despesas mensais fixas], redundaria num montante disponível para o mesmo já inferior a € 100,00 mensais.

Assim sendo, se é efetivamente legítima a censura feita à gestão do Réu/recorrente – pelo nível de endividamento/comprometimento mensal, porventura a exigir uma reformulação da sua vida pessoal, ao nível dos encargos atuais, mormente com a habitação que se revela demasiado onerosa para uma pessoa só! – parece também não poder ser postergada a exigência constitucional de ser salvaguardado o seu mínimo de sobrevivência, garantido por montante equivalente ao do rendimento de inserção social (vulgo, “RSI”)[6], com que, aliás, se argumentou na sentença recorrida.

O que tudo serve para dizer que a condenação do Réu/recorrente operada na sentença recorrida, do pagamento da prestação alimentar de € 260,00 mensais à sua filha aqui Autora/recorrida, não representa, em nosso entender, o equilíbrio para a situação, o qual, em contraponto, se encontra fixando esse montante mensal em € 210,00.

Nestes termos procedendo o recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

A contribuição dos pais para alimentos dos filhos – artigo 1878º, nº 1, do Código Civil – deve estabelecer entre eles um patamar de igualdade, de proporcionalidade, o qual passa por fixar as despesas mensais dos filhos; verificar o que sobra a cada progenitor, depois de deduzidas as despesas fixas de cada um e estabelecer, de seguida, uma contribuição proporcional às disponibilidades de cada progenitor, sem abstrair do mínimo necessário à sobrevivência dos progenitores.

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6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se a final, revogar parcialmente a decisão recorrida quanto ao item “1.” do dispositivo, condenando-se, agora, o Réu a pagar à A. a prestação alimentar de € 210,00 mensais, mantendo, quanto ao mais, a sentença recorrida nos seus precisos termos.

            Custas da ação e recurso pela Autora/recorrida e Réu/recorrente, na proporção de ½ para cada uma dessas partes.

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Coimbra, 9 de Fevereiro de 2021  

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira
 
[2] Desconsiderando, obviamente, a pretensão “a título subsidiário”, constante do final das contra-alegações recursivas, na medida em que tal não obedece à exigência jurídico-formal de ser apresentada sob a veste de recurso autónomo ou de ampliação do recurso.
[3] Normativo este, aliás, paradoxalmente citado no despacho recorrido…
[4]A qual consabidamente é de € 5.000,00 (cf. art. 44º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
[5] Recorde-se que o mesmo alegou na sua contestação/”alegações” que a progenitora vive de forma abastada e com luxos e extravagâncias, de que, aliás, a Autora beneficiaria enquanto pertencente ao agregado familiar dela com o atual marido…
[6] cf., inter alia, o acórdão do TRG de 29.03.2011, proferido no proc. nº 651/06.0TBGMR-B.G1, acessível em www.dgsi.pt/trg, sendo certo que o valor do rendimento de inserção social (RSI) ascende no corrente ano de 2020 ao valor de referência de € 189,66 (cf. (Portaria 27/2020, de 31 de janeiro).