Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1288/15.8T8CBR.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 189º, Nº 2, AL. E) DO CIRE.
Sumário: I – No artº 189º, nº 2, al. e) do CIRE dispõe-se que: ‘Ao proceder à condenação das pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença (artº 189º, nº 4 do CIRE)’.

II - Este tipo de condenação em incidente de qualificação de insolvência apenas foi consagrado no CIRE por força das suas alterações decorrentes da Lei nº 16/2012, de 20/04, dispondo-se no nº 4 do artº 189º que ‘ao aplicar o disposto na alínea e) do nº 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença’.

III - Nos termos dos artºs 90º, 128º, 129º, nºs 1 e 2, e 130º, nºs 1 e 3, todos do CIRE, se não houver impugnações aos créditos reconhecidos pelo AI, é de imediato preferida sentença de verificação e de graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste da lista.

IV - A sentença de qualificação da insolvência pode traduzir-se num verdadeiro título executivo, à luz do disposto nos artºs 10º, nº 5, 703º, nº 1, al. a), e 704º, todos do nCPC.

Decisão Texto Integral:          







   Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Coimbra – Juízo do Comércio - J1, a sociedade ‘A... - Consultores, L.da’, com sede na Rua ..., instaurou a presente ação executiva, para pagamento de quantia certa e por apenso ao incidente de qualificação de insolvência que correu termos contra a sociedade ‘M..., L.dª’, com sede na Rua ..., processo esse com o nº ..., ação executiva esta que é movida contra J..., residente na Rua ..., enquanto gerente que foi da dita sociedade ‘M..., L.dª’, pedindo o pagamento coercivo, por este, da quantia de €9.885,48, acrescida de juros de mora vincendos sobre €9.657,06.

Alega, no essencial, que no processo de incidente de qualificação de insolvência em que é insolvente a sociedade ‘M..., L.dª’, com sede na Rua ..., processo esse com o nº ..., a que a presente ação executiva se encontra apensada, foi proferida sentença que qualificou como culposa a insolvência dessa dita sociedade e condenou o agora Executado a pagar aos credores da insolvente uma indemnização correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património.

Que após o trânsito em julgado desta sentença, J... não lhe pagou o crédito que a Exequente reclamou no processo de insolvência, no valor de €9.657,06.

Donde a razão de ser desta execução.


II

Notificada para se pronunciar nos termos do disposto no art.º 3º, nº 3, do NCPC sobre a eventual inexistência de título executivo, a Exequente pugnou pela exequibilidade da sentença proferida no apenso de qualificação, com fundamento no art.º 619º do NCPC.

III

            Nesse seguimento foi proferido despacho, nos seguintes termos:

“...

Relevam para a decisão a proferir os seguintes factos:

Em 10 de fevereiro de 2015 A...-Consultores, L.da requereu a declaração de insolvência de M..., L.da;

Em 2 de junho de 2015 foi declarada a insolvência de M..., L.da;

Sob proposta da administradora da insolvência, em 17 de setembro de 2015 foi declarado encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto no art.º 230º, nº 1, al. d) do CIRE;

No apenso de reclamação de créditos, A...-Consultores, L.da reclamou o crédito global de €9.657,06 sobre a insolvente;

O crédito referido em 4º consta da lista de créditos reconhecidos e junta pela administradora da insolvência no âmbito do apenso de reclamação de créditos;

Na sequência da decisão de encerramento do processo de insolvência referida em 3º, não foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos e foi declarada extinta a instância deste apenso, com fundamento no disposto art.º 233º, nº 2, al. b) do CIRE;

Por sentença proferida em 30 de maio de 2016, já transitada em julgado, foi declarada culposa a insolvência da M..., L.da e foi condenado o seu gerente, J..., no pagamento aos credores da insolvente de indemnização correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património;

Até à presente data J... não pagou à exequente o crédito referido em 4º;

Impõe-se apurar se a sentença proferida no incidente de qualificação de insolvência consubstancia título executivo na parte em que condena no pagamento aos credores do devedor insolvente da indemnização a que alude o art.º 189º, nº 2, al. e) do CIRE.

Nos termos do disposto no art.º 10º, nº 5 do NCPC toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da ação executiva.

Na definição elucidativa de Remédio Marques o título executivo é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente - ou que estabelece de forma ilidível a existência daquele direito - cujo lastro material e corpóreo é um documento, que constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível, que a lei permite que sirva de base à execução (Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Almedina, pp. 46 e 47).

E são precisamente estas funções de constituição, certificação ou prova do direito da exequente que o tribunal considera não existirem na sentença que serve de fundamento à presente execução, na parte em que condena J... no pagamento aos credores da insolvente de indemnização correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património.

De facto, os créditos não satisfeitos a que alude esta parte decisória da sentença em consonância com o comando previsto no art.º 189º, nº 2, al. e) do CIRE, reportam-se aos créditos reclamados e reconhecidos no âmbito do apenso de verificação e graduação de créditos, deduzidos dos valores que eventualmente foram satisfeitos no processo de insolvência.

Ora, no caso vertente, o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa e, consequentemente, não foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos no apenso de reclamação de créditos, com fundamento no disposto art.º 233º, nº 2, al. b) do CIRE.

Por conseguinte, não foi proferida qualquer decisão judicial de reconhecimento do crédito de €9.657,06 invocado pela exequente.

E o facto deste crédito constar da lista de créditos reconhecidos a que alude o art.º 129º do CIRE apresentada pela administradora da insolvência, não invalida esta conclusão, uma vez que esta lista não consubstancia qualquer ato jurisdicional de verificação e reconhecimento de créditos.

Em suma, o segmento decisório em apreço da sentença de qualificação de insolvência contém uma condenação meramente genérica, cuja exequibilidade depende do apuramento e reconhecimento, em ação própria, do crédito da exequente cuja indemnização visa satisfazer.

Neste contexto, resta à exequente intentar previamente ação judicial tendo em vista o apuramento e reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente, com todas as garantias inerentes a um processo de cariz judicial (de contraditório e de prova).

O quadro processual que se deixou exposto remete para uma situação jurídica de ausência de título executivo.

Nos termos do disposto no art.º 726º, nº 1, al. a) do NCPC o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título, sendo que o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do art.º 734º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo (art.º 734º do NCPC).

Assim sendo, e na impossibilidade prática de suprir o aludido vício, indefiro liminarmente a presente execução com fundamento na falta de título executivo e, consequentemente, declaro extinta a execução.’.


IV

            Deste despacho interpôs recurso a Exequente, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:

...


V

            Não foram apresentadas contra-alegações, designadamente por parte do Executado, apesar de ter sido citado pessoalmente para os termos da presente execução e do recurso nela interposto, conforme fls. 99.

            O recurso interposto foi admitido em 1ª instância, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo como tal sido admitido nesta Relação, nada obstando a que se conheça do seu objecto.

            Esse objecto está limitado à apreciação da questão de se saber se existe ou não, no caso, título executivo, ou seja, à reapreciação do despacho recorrido e que supra se transcreveu.

            Começamos por salientar que a presente ação executiva tem como título executivo a sentença proferida no incidente de qualificação de insolvência anexo ao processo de insolvência em que é insolvente a sociedade M..., L.dª, supra identificada, sentença essa datada de 3 de Junho de 2016, transitada em julgado, onde se qualificou como culposa a insolvência da M..., L.dª; se julgou afetado por essa qualificação o gerente J...; e se condenou ainda este a pagar aos credores da insolvente uma indemnização correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património.

            Nessa sentença alude-se ao disposto no artº 189º, nº 2, al. e) do CIRE para assim se dispor, nela ainda se escrevendo o seguinte: ‘Ao proceder à condenação das pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença (artº 189º, nº 4 do CIRE)’.

...

Sendo que, por outro lado, esse valor se encontra limitado pelo montante dos créditos não satisfeitos, sanção esta cujo fundamento radica na culpa apurada e que, assim, deverá também condicionar o quantum de tal cifra indemnizatória (na senda do Ac. da Rel. de Coimbra de 16/12/2015, disponível em www.dgsi.pt)’.

...

‘Mais se impõe condenar o requerido no pagamento de indemnização aos credores da insolvente, correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património (artº 189º,nº 2, al. e) do CIRE).

 – ver fls. 194 e 195 do processo de incidente de qualificação da insolvência.

            Ou seja, no caso concreto essa dita sentença foi muito clara na determinação do valor indemnizatório que cabe aos credores da insolvente e pelo qual responde o dito requerido/condenado – o valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património.

            Este tipo de condenação em incidente de qualificação de insolvência apenas foi consagrado no CIRE por força das suas alterações decorrentes da Lei nº 16/2012, de 20/04, dispondo-se no nº 4 do artº 189º que ‘ao aplicar o disposto na alínea e) do nº 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença’.

Ora, no caso concreto é claro que na sentença dada à execução não se seguiu este segundo critério (critérios a utilizar para a quantificação, e efetuar em liquidação de sentença) de cálculo do valor da indemnização, mas sim o primeiro, pois logo se fixou o valor das indemnizações devidas a pagar pelo condenado a tal – ‘Mais se impõe condenar o requerido no pagamento de indemnização aos credores da insolvente, correspondente ao valor dos respetivos créditos não satisfeitos, até à força do respetivo património (artº 189º,nº 2, al. e) do CIRE)’.

Donde a conclusão de que tal condenação é clara, expressa e líquida, sendo que na dita se atende ao valor dos ditos créditos, que não são outra coisa que os créditos reclamados no processo de insolvência e reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, e não impugnados pelos demais credores, nos termos dos artºs 90º, 128º, 129º, nºs 1 e 2, e 130º, nºs 1 e 3, todos do CIRE, segundo os quais se não houver impugnações aos ditos  créditos, é de imediato preferida sentença de verificação e de graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste da lista.

No caso presente sucede que não foi proferida sentença de verificação e de graduação de créditos, conforme consta do despacho recorrido – (6º) Na sequência da decisão de encerramento do processo de insolvência referida em 3º, não foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos e foi declarada extinta a instância deste apenso, com fundamento no disposto art.º 233º, nº 2, al. b) do CIRE.

Isto é, uma vez que foi declarado o encerramento do processo de insolvência, nos termos do artº 230º, nº 1, al. d), e 232º, do CIRE – ponto 3 dos factos dados como provados no despacho recorrido -, tal facto teve como efeito a extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes ..., nos termos do artº 233º, nº 2, al. b) do CIRE.

Mas tal tramitação não põe em causa o disposto no artº 130º, nº 3 do CIRE, segundo o qual ‘se não houver impugnações aos créditos reclamados e reconhecidos pelo AI, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, ... em que se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo AI...’.

Assim, uma vez que está dado como provado que:     

No apenso de reclamação de créditos, A...-Consultores, L.da reclamou o crédito global de €9.657,06 sobre a insolvente;

O crédito referido em 4º consta da lista de créditos reconhecidos e junta pela administradora da insolvência no âmbito do apenso de reclamação de créditos;

afigura-se-nos ser manifesto que a condenação agora dada à execução teve em conta tal realidade processual e condenou o aqui executado no pagamento desse dito crédito, porque não satisfeito no processo de insolvência.

            Logo, a sentença de qualificação da insolvência traduz-se num verdadeiro título executivo, à luz do disposto nos artºs 10º, nº 5, 703º, nº 1, al. a), e 704º, todos do nCPC.

            Razão pela qual, e com o devido respeito, não podemos estar de acordo com o despacho recorrido, mas antes com os argumentos da Recorrente, pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido.

            Cumpre também apreciar a questão suscitada pela Recorrente acerca do que considera não ter sido processualmente adequado o proferimento do dito despacho, por, no seu entender, estarmos no âmbito de um processo de execução sob a forma sumária.

            Ora, com o devido respeito, afigura-se-nos que assim não sucede, porque embora ao caso seja de facto aplicável a forma de processo executivo sumário – artº 550º, nºs 1 e 2, al. a), do nCPC -, nos termos do artº 855º, nº 2, al. b) do nCPC pode o AE suscitar a intervenção do juiz, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do artº 723º, quando se lhe afigure provável a ocorrência de alguma das situações previstas nos nºs 2 e 4 do artº 726º, o que se afigura ter sido o que ocorreu no presente processado.

            Face ao que se impõe, pois, a revogação do despacho recorrido, o que se decide.  


VI

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido, a fim de que a execução possa seguir os seus regulares termos, com base na sentença dada à execução, enquanto título executivo.

            Custas pelo Recorrido – artº 527º, nº 2 do nCPC.

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em  27/04/2017

Relator: Des. Jaime Carlos Ferreira

Adjuntos: Des. Jorge Arcanjo

                   Des. Isaías Pádua