Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/09.3TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS FUTUROS
HERDEIRO
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11.º; 97.º, N.º 1 DO CE; 483.º, N.º 1; 487.º, N.º 1; 495.º 570.º, N.º 1 DO CC
Sumário: 1. Em abstracto, toda a contravenção pode ser tomada como causa presumida ou provável de um acidente. Impõe-se apurar que certa contravenção actuou em concreto como causa adequada do acidente e dos danos, ainda que por funcionamento da denominada prova de primeira aparência.

2. Estando demonstrado que o acidente teve lugar a uma hora que representa já o início de uma noite de Novembro, numa via que não se provou que tivesse efectiva iluminação, circulando o veículo de tracção animal da vítima sem reflectores ou dispositivos semelhantes que assinalassem a respectiva presença, totalmente carregado de caruma, pode concluir-se que, muito provavelmente, este veículo nunca poderia ser detectado pelo condutor de um veículo automóvel que circulasse no local a tempo de evitar o embate, ainda que ele seguisse a 50 Km/hora,(limite imposto) ou algo menos.
3. O que interessa definir são os exactos termos em que deve ser imputado o nexo causal do resultado.
4. Em conformidade, e secundando o entendimento de que se presume a culpa do lesante a partir da actuação contravencional deste que foi operante no resultado lesivo, deve concluir-se que tanto a causa como a culpa do acidente ocorrido devem ser principalmente imputadas ao lesado, por este conduzir o veículo de tracção animal com desrespeito do disposto no art.º 97, nºs 1 e 4 do CE.
5. Tendo em conta os efeitos do embate, deve reconhecer-se que, em certa medida, para ele contribuiu a velocidade do veículo automóvel, velocidade que se revelou causa adjuvante da dimensão concreta da gravidade do acidente e dos danos.
6. Consequentemente, não é possível deixar de atribuir, também ao respectivo condutor, a culpa que proporcionalmente lhe tem de caber por via do processo causal.
7. O princípio geral em matéria de direito à indemnização é o de que só o lesado, ou seja a vítima, é credor de indemnização pelos danos provocados pelo facto ilícito (artigos 483.º, nº 1 e 487, nº 1 do CC).
8. Com base nos rendimentos da vítima, podem os herdeiros iure proprio, reclamar apenas o dano da perda de alimentos, verificados que estivessem os requisitos do nº 3 do art.º 495.º do C.Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e B... intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Mira uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra COMPANHIA DE  SEGUROS C..., S.A., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhes a quantia global de € 253.404,80, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegam:

Que por virtude de um acidente de viação ocorrido em 6 de Novembro de 2007, culposamente provocado pelo condutor do veículo ligeiro de passageiros ...VL, seguro na Ré e na altura utilizado ao serviço e no interesse da proprietária respectiva, veio a ocorrer na via pública a morte de D..., pai dos AA., quando este conduzia um veículo puxado por animais; que deste acidente advieram para a vítima, para os AA. diversos danos patrimoniais e não patrimoniais que justificam o valor total da indemnização peticionada.  

Contestou a Ré Seguradora, impugnando os factos alegados na petição inicial e, essencialmente, imputando a responsabilidade do acidente à própria vítima D..., por esta conduzir o veículo de tracção animal durante a noite e sem qualquer iluminação, impossibilitando o seu avistamento pelo veículo seguro na Ré. Termina com a improcedência total da acção.

Os AA. ainda replicaram, mantendo todavia o pedido inicial.

A final foi a acção julgada parcialmente procedente por provada, em função do que a Ré foi condenada a pagar aos AA. a quantia global de € 152.291,20, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento, desde a citação quanto aos patrimoniais e desde a sentença quanto aos não patrimoniais.

Irresignados, deste veredicto recorreram AA. e , sendo ambos os recursos admitidos como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                                                *    

Começar-se-á pela apelação da C..., uma vez que a eventual procedência da impugnação da decisão da matéria de facto que aí é deduzida poderá condicionar a apreciação das questões inseridas no recurso dos AA.

A apelação da Ré.

Nas conclusões que culminam a alegação que desenvolve na respectiva minuta recursiva e delimitam o âmbito do conhecimento desta Relação, vêm suscitadas pela Ré C... as seguintes questões:

1º - A relativa à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.

2º A respeitante a saber se houve culpa exclusiva da vítima no acidente, sem qualquer responsabilidade do segurado da apelante, o que implica a respectiva absolvição do pedido;

3º - A atinente à questão de saber se não deveria ter sido arbitrada qualquer indemnização aos AA. a título de danos patrimoniais.

Os AA. responderam, batendo-se pela improcedência do recurso.

Simultaneamente juntaram fotocópia simples de uma certidão que obtiveram em 9/12/2011, relativa à decisão penal transitada proferida em 4 de Novembro de 2011 no processo comum nº 4/08.5TACBR, que correu termos no Tribunal de Mira, na qual, com base no mesmo acidente que se discute nos presentes autos, o condutor do veículo seguro na Ré, ora apelante, surge condenado por um crime de homicídio por negligência com os fundamentos e pressupostos aí consignados.

Não se limitando à junção do documento, os AA. aqui apelados vêm adjuvar a sua contra-alegação com a invocação de um suposto caso julgado que, segundo eles, não decorreria do disposto no art.º 674-A do CPC, mas do facto de a Ré seguradora ter sido chamada a contestar o pedido de indemnização civil ali deduzido contra si pelo Instituto de Segurança Social, entidade com a qual veio posteriormente a transaccionar.

Sucede que esta invocação nenhum efeito pode surtir na apreciação do vertente recurso.

O que se deve às quatro ordens de razões que passam a ser explicitadas.

 

Em primeiro lugar, admitindo, como se admite, que a junção do documento pelos apelados se possa enquadrar no disposto nos art.ºs 524, nº 1 e 693-B (o art.º 706 citado pelos recorrentes foi revogado pelo art.º 9º, alínea a) do DL nº 303/2007 de 24/08), ambos os normativos da actual redacção do CPC, a factualidade que a seu propósito é agora carreada pelos recorridos na sua resposta integra matéria nova, no conhecido sentido de que não foi submetida à jurisdição ou dictat da instância recorrida, não sendo o seu reexame ou a sua reponderação o que agora se está a pedir a este tribunal de recurso. Não é pela circunstância de a decisão penal em causa ter sobrevindo já na fase recursiva dos presentes autos que ela deixa de integrar matéria que não foi objecto de análise pelo tribunal a quo quanto à sua eventual imbricação no thema decidendum que este teve diante de si.

Ora - como se sabe e vem sendo sistematicamente sublinhado pela jurisprudência[1] - os recursos não se destinam a apreciar e decidir questões novas, mas tão só a exercer um novo grau de jurisdição sobre matérias já dirimidas, ressalvadas as excepções constituídas pelas questões do chamado conhecimento ex officio e pelo condicionalismo em que se pode dar a substituição do tribunal recorrido, como é caso contemplado no art.º 715 do CPC.

Em segundo lugar, impõe-se observar que, a ter-se por provado o caso julgado, este formar-se-ia sempre para o futuro, uma vez que, na sua vertente exceptiva, obsta à reapreciação dos mesmos factos e à possibilidade de contradição que poderia advir de um novo julgamento.

De tal sorte que, ainda que estivesse certificado - e não está sequer - que a decisão penal invocada transitou em julgado em 7 de Novembro de 2011, o eventual caso julgado que daí derivaria só poderia ser adversado a partir dessa data. Uma vez que já então havia decisão da matéria de facto da 1ª instância na presente acção, a única solução que se pode ter por plausível e adequada é a de considerar aquela excepção totalmente inoperante ou ineficaz perante o direito que aqui se discute.

Em terceiro lugar - ainda a ter-se por certificado o que consta da fotocópia junta - o hipotético caso julgado oponível à Ré C... seria apenas o que teria resultado da homologação da transacção sobre o pedido de indemnização civil, estabelecido quanto aos intervenientes nesse objecto, de maneira que com ele apenas ficou definida a relação abrangida pelos termos em que esse pedido vinha formulado. E não também - já se vê - a que respeitava aos pressupostos da própria condenação penal.

Em quarto lugar, tendo a Ré a posição de terceira face à relação penal com base na qual terá sido condenado o condutor do veículo seguro, a possibilidade de os lesados e agora apelantes poderem prevalecer-se da presunção ilidível dos factos ali dados como provados nos termos do art.º 674- A do CPC, só seria aplicável, como aí se afirma, a “quaisquer acções civis em que se discutam relações civis dependentes da prática da infracção”, isto é, dependentes da prática do crime pelo qual o condutor do veículo seguro foi condenado. Nesta acção, o direito dos AA. à indemnização não depende da prova da prática de um crime, mas somente dos fundamentos cíveis em que aquele direito assenta.

Donde que nenhum pré-juízo para o objecto desta acção possa ser extraído desta invocação dos recorrentes.  

Sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Objecta a recorrente que a decisão sobre a matéria de facto incorreu em erro de julgamento dos pontos 4, 6, 9 a 13, 16, 23, 25, 27 e 28 da base instrutória.

Os nºs 4, 6, 9 a 13 e 16 respeitam à dinâmica do acidente e são do teor seguinte:                                                                                         4

Aquando do embate referido em A) dos factos assentes, o tempo estava bom e a visibilidade era boa? Resposta: Provado.

                                                                       6

Encontrando-se já acesos, iluminando integralmente a via? Resposta: Provado.

                                                                       9

O veículo automóvel quando entrou na recta onde circulava o veículo de tracção animal, podia ter dado pela presença deste a uma distância de, pelo menos 100 metros, que era o espaço que distava nesse momento entre ambos os veículos? Resposta: Provado que o veículo automóvel quando entrou na recta onde circulava o veículo de tracção animal, podia ter dado pela presença deste a uma distância de pelo menos 30 metros, que é o alcance das luzes de cruzamento (médios).

                                                                       10

Sendo que a via se encontrava livre de qualquer tráfego de circulação para além do descrito em A)? Resposta: Provado.

                                                                       11

Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A) e 7º a 10º, o condutor do veículo ...VL, seguia distraído, imprimindo ao veículo velocidade superior a 50 Km/hora? Resposta: Provado.

                                                                       12

(…) e ao aproximar-se do veículo de tracção animal conduzido pelo falecido D..., o condutor do ...VL não travou, nem reduziu a velocidade, nem se conseguiu desviar deste, nem parar o veículo no espaço visível à sua frente de cerca de 100 metros, como podia ter feito? Resposta: Provado que ao aproximar-se do veículo de tracção animal conduzido pelo falecido D..., o condutor do ...VL não travou nem reduziu a velocidade, nem se conseguiu desviar deste, nem parou o veículo no espaço livre visível à sua frente de cerca de 30 metros, como podia ter feito.

                                                                       13

Mercê do descrito em 11) e 12) o ...VL veio embater com violência com a sua parte da frente do lado direito na traseira do lado esquerdo do veículo de tracção animal conduzido pelo falecido D...? Resposta: Provado.

                                                                       16

Em consequência do embate descrito em A) , 11 e 14, o veículo de tracção animal foi projectado para a frente, numa distância de cerca de 10 metros, tombando e vindo a cair por cima de D...? Resposta: Provado.

Convoca a recorrente a benefício da sua tese a prova que emergiu dos depoimentos das testemunhas G..., H..., I...

No entanto, procedeu-se à audição de todos os registos de prova, sendo que os únicos depoimentos que versaram os aspectos em apreço foram os acima apontados e ainda dos de J..., moradora no local, e L..., militar da GNR que elaborou o relatório final do inquérito policial ao acidente.

Esta última testemunha - como por ela própria esclareceu - fez a averiguação do acidente meses após a sua produção. Assim sendo, nenhum dado atendível podia emergir do respectivo depoimento, como efectivamente sucedeu.

Quanto a J..., a sua prestação revelou insegurança e fragilidade nomeadamente quando afirmou, no que respeitava à iluminação da via, que a luz sempre lá funcionou. Esta testemunha era vizinha e conhecida da vítima, não denotando isenção na forma como respondeu às perguntas colocadas, até porque, quando confrontada com a geografia do local, acabou por admitir que só “passava ali semana sim semana não” para deixar a irmã.

Já de grande coerência e credibilidade se mostraram os depoimentos das testemunhas H... e I..., advogados que circunstancialmente seguiam atrás do veículo seguro - a uns 50 metros aproximadamente - nos momentos que precederam o acidente.

Estas testemunhas foram claríssimas a sustentar que na altura e local do acidente estava muito escuro (a testemunha H... diz mesmo que estava escuro, era lusco fusco, duvidando se o candeeiro próximo estava ou não aceso). Por comparação, a primeira atribui ao veículo seguro velocidade idêntica à do por si conduzido, ou seja, cerca de 70 km/hora, o que é corroborado pela segunda. E ambas referem um forte carregamento do veículo de tracção animal, que não dispunha de qualquer meio de sinalizar a sua marcha. A testemunha I... refere que se apercebeu da carroça por virtude da proximidade das luzes do veículo seguro por ocasião do embate. Ora isto implica que o veículo orientado pelo falecido D..., totalmente carregado (com caruma, segundo a testemunha H... e também de harmonia com o que consta do provado em 29) não podia ser visível para os veículos que se apresentassem pela sua retaguarda e no mesmo sentido.

Particularmente assertivo foi o depoimento de G..., militar da GNR chamado ao local logo a seguir ao acidente e autor do croquis junto aos autos.

Referindo que o embate ocorreu numa recta de 150 metros, e que o tempo estava bom, foi peremptório quanto ao tema da iluminação da via dizendo: “No local do acidente não havia qualquer iluminação. Neste momento há”. E, para que não restassem dúvidas vincou: “Os postes estavam lá iluminação não havia”.

De nenhum dos depoimentos deflui qualquer elemento que directa ou indirectamente aponte para a distracção do condutor do veículo seguro.

Donde que nada imponha qualquer alteração da decisão no que toca aos nºs 4, 10 e 16 da b.i. Mas já as respostas aos nºs 6, 9, 11 e 13 têm de ser necessariamente modificadas.

Assim, de harmonia com o supra expendido, o nº 6 passa a ser respondido Não provado, porquanto esta 2ª instância se convenceu que, existindo postes no local, estes não dispunham de efectiva iluminação; o nº 9 fica a ter a resposta Não provado, em consequência das condições concretas em que circulava o veículo de tracção animal dirigido pela vítima; o nº 11, porque esta Relação se convenceu de que o VL seguia a algo mais do que 50Km/hora, é respondido nos termos seguintes: Provado apenas que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A da matéria assente, e 7º, 8º e 10º, o condutor do ...VL imprimia ao veículo velocidade superior a 50 km/hora. No que concerne ao nº 12, face aos únicos elementos resultantes da prova, a resposta passa a ser de Provado apenas que, ao aproximar-se do veículo de tracção animal, conduzido pelo falecido D... nas condições referidas nas respostas aos nºs 27, 34 e 35, o condutor do VL não conseguiu desviar-se. Por fim, dado que da prova emerge que o embate se deveu à falta de visibilidade do veículo de tracção animal, importa coadunar a resposta ao nº 13 com tal realidade. Assim, a mesma passa a ser do teor seguinte:

Provado que, por este facto, o ...VL veio embater com violência com a sua parte da frente do lado direito na traseira do lado esquerdo do veículo de tracção animal conduzido pelo falecido D....

Relativamente à matéria dos danos resultantes dos rendimentos auferidos pelo falecido, impugna também a recorrente a decisão da 1ª instância quanto aos nºs 23, 25, 27 e 28 da b.i.

Neste segmento da base instrutória tratava-se de apurar a existência de um conjunto de rendimentos que para o falecido advinham de uma pensão anual de reforma, da actividade comercial estribada na agropecuária que ele exercia, de um subsídio anual do IFADAP e da prestação anual de serviços para uma casa de hóspedes.

Sem embargo de se entender - como adiante se verá - que aqui em causa um dano futuro que só ao falecido D... diria respeito se vivo fosse, e que, por conseguinte, nunca se verificaria na esfera patrimonial dos AA. (que, no plano patrimonial, disso sendo caso, apenas poderiam reclamar do responsável pela morte de seu pai a indemnização pela perda de alimentos futuros, ao abrigo do nº3 do art.º 495 do CC) não será por isso que este flanco do recurso ficará sem o pertinente pronunciamento.

Argumenta a recorrente que “o tribunal a quo sustenta decisão quanto aos rendimentos alegadamente auferidos pelo Autor em meras declarações insusceptíveis de fazer prova de tais factos, quando estes só podem ser provados mediante documento”.

Equivoca-se, dado que a decisão prolatada se apoiou expressamente (v. fls. 347 e 349) nos documentos de fls. 38-44 e 282-289, sendo que deles consta uma precedente declaração fiscal da vítima da pensão anual recebida, do rendimento de € 9.000,00 anuais da casa de hóspedes, do rendimento da venda de produtos agrícolas e do subsídio recebido do IFADAP (apenas do montante dado como provado na resposta ao nº 27).

Sempre se dirá, no entanto, que não estamos perante factos sujeitos a prova vinculada, de tipo documental, pelo que na apreciação da prova respectiva o tribunal recorrido se movia dentro da regra da livre apreciação (art.º 655 do CPC). 

Mas também ali se referiu ter sido tomado em conta o que, neste conspecto, resultou dos depoimentos de J..., M..., N..., O..., P... E Q...., dos quais se pôde colher que o falecido vendia por ano várias cabeças de gado da sua criação (10-12), além de produtos hortícolas.

Não há, por conseguinte, fundamento para alterar as respostas àqueles pontos.         

Em consequência, reordena-se a matéria de facto provada nos seguintes moldes:

1. No dia 6 de Novembro de 2007, cerca das 18:25 horas, na Rua do Campo de Futebol, dentro da localidade da Presa, comarca de Mira, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes um veículo de tracção animal, que seguia pela metade direita da faixa de rodagem daquela estrada, no sentido Corticeiro de Cima – Presa, conduzido por D..., e o veículo de matrícula ...VL, que seguia no mesmo sentido de marcha.-----

2. D... faleceu no dia 2 de Janeiro de 2008, com a idade de 73 (setenta e três) anos e no estado de viúvo, deixando como seus únicos e universais herdeiros A... e B...a, seus filhos.-----

3. A ré celebrou com a sociedade F..., S.A. um acordo de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice número 00493148, pelo qual aquela à data do embate referido em A), dos factos assentes, garantia até ao capital de 50.000.000,00 € a responsabilidade civil decorrente dos danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula ...VL.-----

4. À data do embate aludido em A), dos factos assentes, os autores não coabitavam com o falecido D....-----

5. Na sequência do embate descrito em A), dos factos assentes, correm termos na presente comarca os autos de Processo Comum Singular número 4/08.5TACBR, no âmbito dos quais foi deduzida acusação pública contra o aí arguido E... imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, do Código Penal.-----

6. Nas circunstâncias descritas em A), dos factos assentes, o veículo de tracção animal era puxado por animal de raça bovina, à frente do qual, a pé, de aguilhada na mão, orientando e dirigindo a marcha do animal, seguia D..., residente na Rua do Canto, 36, no lugar da Presa, para onde então se dirigia.-----

7. No local do embate aludido em A), dos factos assentes, a estrada tem 7,10 metros de largura da faixa de rodagem, com passeios de ambos os lados da via, cada um deles com cerca de 1,40 metros e encontrando-se em bom estado de conservação.-----

8. Tal via é parte integrante do perímetro urbano da localidade de Presa, Mira, e apresentava-se na altura ladeada por casas de habitação e terras de cultivo.-----

9. Aquando do embate referido em A), dos factos assentes, o tempo estava bom e a visibilidade era boa.-----

10. Seguindo D... num troço de linha recta com cerca de 200 metros de comprimento, ao longo da qual se encontravam implantados candeeiros de iluminação pública em fila contínua, cada um separado, do anterior, como do posterior, por uma distância de 30 metros.-----

11. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A), dos factos assentes, quando D... se encontrava a conduzir o animal e veículos descritos em 1º), da base instrutória, sensivelmente a meio da recta referida em 1º) a 6º), da mesma base, num local situado no espaço entre dois candeeiros, surgiu ali circulando, no mesmo sentido de marcha (Corticeiro-Presa), o veículo automóvel de matrícula ...VL.-----

12. O veículo automóvel aludido em 7º), da base instrutória, era na altura conduzido por E..., sob direcção, ordens e interesse da F... F..., S.A., para quem aquele prestava a sua força laboral mediante o pagamento de uma contrapartida monetária.-----

13. Sendo que a via se encontrava livre de qualquer tráfego ou circulação para além dos veículos descritos em A), dos factos assentes.-----

14. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A), dos factos assentes, e 7º), 8º) e 10º), da base instrutória, o condutor do ...VL imprimia ao veículo velocidade superior a 50 km/h.-----

15. Ao aproximar-se do veículo de tracção animal, conduzido pelo falecido D... nas condições referidas nas respostas aos nºs 27, 34 e 35, o condutor do ...VL não conseguiu desviar-se.-----

16. Por este facto, o ...VL veio embater com violência com a sua parte da frente do lado direito na traseira do lado esquerdo do veículo de tracção animal conduzido pelo falecido D....-----

17. Sendo que junto à última curva que o ...VL teve que percorrer antes de entrar na recta onde o embate ocorreu, existiam dois sinais indicativos da proibição de circular a velocidade superior a 50 km/h e sinal indicativo de aproximação de curva e contra-curva.----18. E, cerca de 10 metros à frente do mesmo lado direito da estrada, encontrava-se implantado sinal indicativo de velocidade máxima de 40 km/h.-----

19. Em consequência do embate descrito em A), dos factos assentes, e11º) a 14º), da base instrutória, o veículo de tracção animal foi projectado para a frente, numa distância de cerca de 10 metros, tombando e vindo a cair por cima de D....-----

20. O qual foi assim projectado contra o solo e depois calcado, esmagado pelo animal e respectivo veículo, vindo a sofrer as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 11 a 16 dos autos cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, designadamente escoriações na face e membro inferior esquerdo, escara na região occipital, cicatrizes na cabeça e pescoço.-----

21. Lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas (focos de contusão do lobo frontal direito, hematoma intracerebral no lobo occipital direito em fase de reabsorção, hemorragias subdural emsubaracnoideia em fase de reabsorção, fracturas da abóbada e base), as quais complicada com hemorregia intra- alveolar e constituíram causa normal e adequada da sua morte ocorrida em 2 de Janeiro de 2008.-----

22. Entre a data do embate aludido em A) e a data do seu óbito aludida em B), D... sofreu dores e padecimentos tormentosos, resultantes dos ferimentos sofridos e dos tratamentos a que teve que ser submetido.-----

23. Primeiro no Hospital de Aveiro e depois nos Hospitais da Universidade de Coimbra, para onde foi transferido no dia do embate.-----

24. E desde a data do embate até à data da morte, sempre D... se encontrou internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra, a cada momento prevendo e temendo que a morte chegasse em consequência das lesões sofridas com o embate e descritas em 17º) e 18º), da base instrutória, o que efectivamente veio a suceder.-----

25. À data do embate aludido em A), a falecido D... era saudável, não padecendo de qualquer doença, era robusto e alegre, com grande alegria de viver.-----

26. Não obstante se encontrar reformado, auferindo uma pensão anual de €: 9.350,74, o falecido D... continuava a trabalhar de forma árdua e intensa na vida do campo, dedicando-se ao cultivo das terras, agricultando directamente os prédios, e à criação de animais de espécies variadas, basicamente de raça bovina a suína.-----

27. Sendo que aquando do embate referido em A), dos factos assentes, retornava precisamente a casa dirigindo o veículo descrito em 1º), da base instrutória, cheio de caruma dos pinheiros, cujo conteúdo ele próprio tinha colhido e carregado para o próprio veículo, o qual era destinado à feitura da cama dos animais.-----

28. No exercício da actividade agrícola e pecuária descrita em 23º, da base instrutória, D... auferia, em média, rendimentos anuais de cerca de €:10.000,00, resultante da criação e venda de gado bovino, suíno, galináceo, coelhos e de produtos agrícolas (vinho, milho, batata, feijão e fruta), já descontadas as despesas de cultivo.-----

29. Em virtude do desenvolvimento da actividade descrita em 23º e 25º, da base instrutória, D... auferia anualmente da parte do IFADAP (Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e das Pescas) a quantia de €: 1.148,73 [mil, cento e quarenta e oito euros e setenta e três cêntimos].-----

30. O falecido D... prestava, ainda, durante os horários em que conseguia libertar para o efeito, serviços de casa de hóspedes, sita na Rua ... em Aveiro, auferindo como contrapartida cerca de €: 9.000,00 anuais.-----

31. D... trabalhava diariamente mais de dez horas e tinha vida provável seguramente por mais dez anos.-----

32. Com o óbito de D..., com quem mantinham relações de proximidade e afectividade intensa, os autores sofreram dor profunda.-----

33. E despenderam a quantia de 1050,00 € (mil e cinquenta euros) com o funeral de D..., sendo que a Segurança Social liquidou apenas 686,00 € (seiscentos e oitenta e seis euros).-----

34. O veículo de tracção animal circulava sem qualquer iluminação ou reflector à traseira.---

35. O veículo de tracção animal encontrava-se totalmente carregado.-----

36. Não obstante o descrito em D), dos factos assentes, os autores conviviam diariamente com D..., em ambiente de afeição mútua.-----

37. D... era pessoa poupada, entregando e destinando todos os rendimentos que auferia, para além das quantias que despendia no respectivo sustento, aos autores, fornecendo-lhes os produtos agrícolas necessários à sua alimentação e sustento, bem como das respectivas famílias.

                                                                                 *

No que toca à culpa.

Depois de impugnar a decisão da matéria de facto, e em função da modificação proposta, bate-se a apelante pelo entendimento segundo o qual, ao não cumprir a prescrição que lhe advinha do disposto nos artigos 3º, nº 2 e 91, nºs 1 e 4 do CE, a conduta do falecido funcionou como causa única e exclusiva do acidente, não cabendo qualquer responsabilidade ao VL na respectiva ocorrência.

A decisão recorrida considerou, por seu turno, ter havido conculpabilidade (e concausalidade) do VL na eclosão do sinistro, dado que se provou quer a distracção do condutor, quer a velocidade excessiva do veículo (superior ao limite assinalado no local, que era de 50 Km/hora). Por tal razão, operou a repartição da culpa e subsequente responsabilidade nos danos, atribuindo 20% ao veículo da vítima e pai dos AA. e 80% ao veículo seguro na Ré, ora apelante.

Não é despiciendo que desde já se enfatize que, ainda que situada no quadro factual de que partiu, nada justificaria, a nosso ver, que a decisão da 1ª instância optasse por uma tal divisão de culpas e causas.

É insofismável que já então decorria do acervo fáctico que condutor do VL imprimia a este velocidade superior a 50 km hora, o que à luz do disposto no art.º 27 do CE, na redacção vigente à data do acidente, integrava um facto lícito, atento o limite máximo permitido para tais veículos dentro das localidades e a existência do correspondente sinal. E que, assim, havia um facto contravencional praticado pelo condutor do veículo seguro na Ré - a velocidade excessiva, o qual, aliás, após a alteração da matéria de facto a que se procedeu nesta instância, persiste na matéria provada. Na sequência do êxito da impugnação deduzida, da factualidade contravencional imputada ao aludido condutor apenas ficou expurgada a distracção.  

Será que, habilitados com a restante prova que foi reunida, devemos extractar, como corolário inexorável e imperativo, uma efectiva concorrência nas culpas dos condutores dos veículos, ainda que de pendor eventual e claramente mais punitivo para um dos lados da balança?

É o que cumpre agora indagar.

Importa já avançar que nem todo o facto ilícito culposo à luz das regras que disciplinam o comportamento estradal intervém no processo causal do acidente.

É inegável que tem sido uma orientação jurisprudencial bem vincada a que perfilha a tese de que a inobservância de leis e regulamentos e, em especial, a prova da violação de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses, como são as regras do Código da Estrada, definidoras de infracções em matéria de trânsito rodoviário, faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes (dispensando-se, assim, a prova da falta de diligência), bem como a existência de causalidade, com a ressalva de que ficam excluídas da causalidade e do âmbito definido para a responsabilidade decorrente de certo facto as consequências atípicas ou anormais, por aí concorrer uma causa externa, que faz quebrar o nexo causal (cfr. Ac. STJ de 10/3/1998, BMJ 475º-635, Ac. STJ de 1.2.2002, CJ STJ VIII-I-50, Ac. STJ de 26.06.2003 e Ac. STJ de 6.2.97, in www.dgsi.pt).

Pensamos que a presunção de culpa deve ser separada da presunção de causa.

Em abstracto, toda a contravenção pode ser tomada como causa presumida ou provável de um acidente.

Impõe-se apurar que certa contravenção actuou em concreto como causa adequada do acidente e dos danos, ainda que por funcionamento da denominada prova de primeira aparência.

Mas nunca há que prescindir, pelo menos, de um juízo de simples verosimilhança de que no condicionalismo concretamente ocorrido, sem aquela precisa contravenção o resultado danoso (em que se traduziu o acidente) não teria sido desencadeado[2]. Só depois de por algum modo estabelecido o nexo causal entre o facto contravencional e o acidente, em face do concreto circunstancialismo deste, é que se torna possível apontar para a culpa de quem o pratica.

Ora, no caso sub judice, como se demonstrará, a presunção de culpa integral que poderia advir da causa integrada pela violação do art. 27, do Código da Estrada aplicável, pelo condutor do veículo seguro, mostra-se fortemente mitigada pelo cruzamento de uma outra causa, de natureza igualmente contravencional, imputável à própria vítima, ressumando até do acervo fáctico que foi esta e não aquela a que mais acabou por influir no resultado, ou seja, na eclosão do acidente (cfr. a este propósito, os Ac.s desta Relação. 15.3.83, Col. 83-2-15, e de 21.5.85, Col. 85-3-81).

À luz das regras da experiência, as circunstâncias insólitas em que se processou a circulação do veículo de tracção animal que o falecido dirigia, com as características da respectiva carga, apresentam-se como causa pré-dominante do acidente, sobrelevando às consequências que normalmente adviriam da marcha na sua retaguarda do VL, mesmo que este fosse animado de uma velocidade que se provou ser meramente superior a 50 km/hora. 

Na verdade nada permite concluir que o acidente não se verificaria se o condutor fosse mais devagar, ou seja, dentro do limite legal que era de 50 km/hora. Diferentemente, a conjugação dos factos provados 1, 15, 27, 34 e 35 autoriza até uma ilação de sinal oposto: a de que bastante probabilidade ele (o acidente) teria lugar ainda que o condutor do veículo seguro na Ré circulasse a 50 Km/hora (ou até a uma velocidade inferior).

Estando demonstrado que o acidente teve lugar a uma hora que representa já o início de uma noite de Novembro, numa via que não se provou que tivesse efectiva iluminação, circulando o veículo de tracção animal da vítima sem reflectores ou dispositivos semelhantes que assinalassem a respectiva presença, totalmente carregado de caruma, pode concluir-se que, muito provavelmente, este veículo nunca poderia ser detectado pelo condutor do VL a tempo de evitar o embate, ainda que ele seguisse a 50 Km/hora, ou algo menos (sendo que até se ignora a quanto mais de 50 Km/hora circulava aquele VL).

Note-se também que, conforme o provado em 6, o infeliz D... seguia de aguilhada na mão, à frente dos animais e do veículo, achando-se este totalmente carregado de caruma de pinheiro, o que, se não impedia, pelo menos dificultava fortemente a sua visão por quem o seguia à retaguarda (como sucedia com o VL). 

Nem sequer se trata aqui de desfazer a chamada prova de primeira aparência relativamente à condução contravencional do VL[3]. É que uma velocidade meramente superior a 50 Km/hora, (pode ser de 51 ou 52 km) nem se pode ter, só por si, como normalmente idónea a provocar acidentes dentro do perímetro de uma pequena localidade, se tivermos presente a frequente dispersão ao longo de estradas municipais e nacionais de muitos dos nossos aglomerados populacionais de reduzida dimensão. Sê-lo-á, porém, se se verificar que foi utilizada, p. ex., no centro urbano de uma cidade, ou se, mesmo numa pequena localidade, acrescer alguma outra específica circunstância que demonstre ter sido particularmente perigosa (o que do presente acervo fáctico não deflui).

Pelo menos condição do acidente foi, sem dúvida, a forma como o veículo dominado pelo falecido se apresentou na via diante do VL. Tal como não deixa de ser óbvio que sem a marcha e velocidade de que este ia animado o embate nunca se produziria.

O que aqui interessa definir são os exactos termos em que deve ser imputado o nexo causal do resultado.

Ora, como se sabe, de um ponto de vista naturalístico, a causa de um determinado efeito distingue-se das simples condições ou factores que se predispõem e combinam num dado momento histórico para a sua verificação.

Para a teoria da conditio sine qua non qualquer factor indispensável à produção do resultado poderia ser elegível como causa deste.

No nosso direito positivo vingou, todavia, a teoria mais restritiva da causalidade adequada, na formulação negativa de Ennecerus-Lehman. Para esta teoria “deixará de haver nexo causal se a condição, segunda a sua natureza geral, era de todo indiferente para o surgir de um tal dano, e só se tornou uma condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para o dano em questão”[4].

Em termos metodológicos ou práticos, este raciocínio excludente de certa causa equivale a recuar ao momento da acção e, num juízo de prognose, procurar indagar se, no curso normal das coisas, um determinado facto se comportaria como condição indiferente ou inadequada, não aumentando o círculo dos riscos a que o lesado estava sujeito, de tal sorte que o dano só sobreveio pela interferência de outro ou outros factos de carácter extraordinário.

Compulsando a factualidade reunida nos autos apresenta-se-nos como perfeitamente razoável aceitar que, nos momentos que precedem o acidente, o mero facto de a circulação do VL se fazer a mais de 50 km/hora não consentia, sem mais, a tê-lo como adequado a provocar o embate num veículo de tracção animal que seguia no mesmo sentido na via, dezenas de metros à frente, ocasionando a morte de quem o dirigia.

Esse embate só se tornou inteligível pela confluência, de certo modo anómala ou extraordinária do conjunto de elementos que então incidiram sobre a marcha do VL (veículo de tracção animal totalmente carregado de caruma de pinheiro, a circular durante a noite, sem sinalização, em local que se ignora se estava iluminado[5], encontrando-se o seu condutor à frente e segurando os animais que o puxavam).

Como nestes elementos incorre um facto ilícito e contravencional da vítima de elevadíssimo potencial de risco - a falta de dispositivo de luz a assinalar o veículo que dirigia - deve este facto ser eleito como a causa prevalecente ou dominante do acidente.

Com efeito - de resto, isto mesmo é ponderado na decisão sob censura - o art.º 11, nº 1 do CE (na redacção aplicável) exige que os animais só possam deslocar-se na via pública com condutor, sendo deveres deste controlá-los durante a marcha e evitar perigo para o trânsito (art.º 97, nº 1 do mesmo diploma). Complementarmente, o nº 4 do art.º 97 do mesmo CE prescreve a obrigatoriedade de sinalização luminosa, sob a forma de lanterna de luz branca, bem visível em ambos os sentidos, desde o anoitecer ao amanhecer.

É incontroverso que o provado em 34 significa que, circulando numa via que não se demonstrou que se encontrasse iluminada, a vítima não providenciou por qualquer forma de sinalização que pudesse servir de aviso aos restantes utentes da via.

É certo que, se acaso tivesse sido demonstrada a iluminação da via, talvez pudesse ser outra a avaliação ou caracterização do comportamento do condutor do veículo seguro.

Mas isso só aos AA. cabia provar, na medida em que a evidência de tal facto poderia interferir na aferição da culpa do lesante - o condutor do VL - e, desse modo, modificar a respectiva responsabilidade pelos danos do acidente.

Soçobraram, porém, os AA. em tal tarefa.

Sendo já noite ou estando a anoitecer, não se sabendo se havia iluminação na via e não dispondo o veículo da vítima de qualquer sinalização luminosa, aquele tipo de carga e a natureza do veículo da vítima constituíram com toda a probabilidade obstáculo à percepção a quem (como o VL) circulava na retaguarda.

A falta de visibilidade sobre a vítima e o seu veículo - que podia ter sido evitada se este tivesse sido dotado do dispositivo legal de iluminação - resta, pois, aos nossos olhos como explicação da causa mater do acidente.

Em conformidade, e secundando o entendimento de que se presume a culpa do lesante a partir da actuação contravencional deste que foi operante no resultado lesivo, concluímos que tanto a causa como a culpa do acidente ocorrido devem ser principalmente imputadas ao lesado, por este conduzir o veículo de tracção animal com desrespeito do disposto no art.º 97, nºs 1 e 4 do CE.

Mas se tivermos em atenção os efeitos do embate, não podemos furtar-nos a reconhecer que, em certa medida, para ele contribuiu a velocidade do VL, velocidade que se revelou causa adjuvante da dimensão concreta da gravidade do acidente e dos danos. Consequentemente, não é possível deixar de atribuir, também ao respectivo condutor, a culpa que proporcionalmente lhe tem de caber por via do processo causal. É que, apesar de tudo, o mesmo condutor podia e devia imprimir ao VL uma velocidade não superior ao limite legal e, se assim tivesse procedido os efeitos do embate poderiam não ser tão graves. O facto de o veículo de tracção animal, depois de embatido no lado esquerdo da parte traseira, ainda ter sido projectado 10 metros, patenteia com alguma certeza que o VL seguia a bastante mais do que 50 km/hora. Há que ter em vista que, com uma velocidade inferior ao limite legal (50 km/hora), as consequências do embate poderiam eventualmente não ter assumido a extensão e importância de que se revestiram, porquanto se sabe que foi desencadeado um choque violento no veículo seguro, que o projectou para a frente à referida distância (cfr. o facto provado em 17 e 19) e originou na vítima as lesões que lhe determinaram a morte.

Neste cenário, julgamos ajustada à contribuição da culpa de cada um dos intervenientes no acidente, nos termos dos art.º 570, nº 1 do C. Civil, a fixação da culpa em 30% para o segurado da Ré e 70% para a vítima D....

Assim sendo, a questão da exclusão da responsabilidade do segurado da apelante procede, ainda que apenas em parte, não inutilizando a apreciação da questão que é subsequentemente formulada, esta relativa à inexistência do dano patrimonial derivado da perda de ganho da vítima.

Segunda questão: a ressarcibilidade do ganho perdido pela vítima.

Em apreço está nesta questão o saber se os AA. são credores de uma indemnização derivada do dano da perda de ganho do falecido nos anos de vida activa que ainda lhe restavam. Subsidiariamente, advoga ainda a recorrente a redução dessa parcela indemnizatória, por virtude do abaixamento do limite para a esperança de vida de que partiu a sentença e, bem assim, do menor valor dos rendimentos do falecido que nesta foram tomados em conta.

Neste segmento da indemnização, a sentença recorrida, após quantificar o rendimento anual de vítima em € 29.499,87, multiplicou este montante pelos anos restantes de vida provável (10), deduziu ¼ pela antecipação do recebimento e 1/3 para despesas, e veio a fixar a compensação final pela perda de ganho (a receber pelos AA.) em € 120.000,00.

Vejamos agora em que termos deve ser delineada a questão que aparece colocada no recurso.

Em abstracto, os sucessores do falecido D... podem ser titulares de uma indemnização fundada em danos com uma origem ou justificação iure haereditario e iure próprio.

Está demonstrado que os AA. são os únicos herdeiros do falecido D..., de quem são filhos.

Não esclareceram os AA. se o valor em que computaram o rendimento perdido pela vítima lhes seria devido iure haerditario ou iure próprio.

De todo o modo, temos como líquido que não podem obter a compensação atinente a tal rendimento, nem a um, nem a outro dos títulos apontados. 

Iure haereditario, e no plano patrimonial, tem os AA. direito a receber, enquanto únicos herdeiros da vítima, como todos os herdeiros, legítimos ou testamentários, a reparação pela lesão daqueles bens ou direitos que se achariam compreendidos no acervo hereditário no momento da abertura da sucessão (art.ºs 2024, 2031 e 2032 do CC).

E desse acervo não faz obviamente parte o valor dos rendimentos que o falecido provavelmente iria auferir se vivo continuasse. De resto, nada garante que se o acidente não tivesse ocorrido os aqui AA., e agora herdeiros da vítima, viessem igualmente a herdar, dez anos mais tarde, o montante equivalente ao dos rendimentos que esta iria perceber durante esse período (ainda que deduzido das normais despesas pessoais). Note-se que, além do mais, bem podia dar-se a hipótese de, nessa data, ambos ou algum dos AA. já não ser herdeiro da vítima.

O princípio geral nesta matéria é o de que só o lesado, ou seja a vítima, é credor de indemnização pelos danos provocados pelo facto ilícito (cfr. os art.ºs 483, nº 1 e 487, nº 1 do CC).

Mas também certos danos reflexamente sofridos pelos terceiros com o facto lesivo podem ser ressarcíveis.

Os AA., sendo também herdeiros da vítima, têm o âmbito do ressarcimento dos seus eventuais danos, enquanto titulares de uma indemnização devida iure proprio, cingido aos contornos do art.º 495 do C. Civil.

Em caso de morte da vítima, este artigo circunscreve o âmbito da indemnização de terceiros por danos patrimoniais aos danos com as despesas para salvar e tratar o lesado e com o respectivo funeral (nºs 1 e 2) e, bem assim, ao dano da perda de alimentos, legais ou prestados pela vítima em cumprimento de uma obrigação natural (nº 3).

De acordo com o nº 3 deste preceito, “Tem igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”. 

Confrontado com a perda de rendimentos da vítima em caso de morte, o legislador entendeu indemnizar todos os que por esse facto dela deixaram de poder receber alimentos, nos termos do art.º 495, nº 3 do CC.

Por se encontrar postulada a impossibilidade de recuperar os rendimento da própria vítima, veio a referida norma conceder particular protecção às expectativas daquelas pessoas que, sendo ou não seus herdeiros, indirectamente se viram atingidas pela cessação dos rendimentos de que ela disporia e de cujos alimentos ficaram privadas.

Mas a atribuição de indemnização aos que podiam exigir alimentos da vítima, ao abrigo do art.º 495, nº 3, do CC, embora contenha a ficção de um rendimento ou lucro que findou com a morte da mesma, representa a tutela especial de um dano reflexo sofrido por terceiros, direito que a lei excepcionalmente entendeu conceder em atenção aos interesses em jogo, mas que não autoriza qualquer outra extrapolação.

Por conseguinte, com base nos rendimentos da vítima, poderiam os AA., iure proprio, reclamar apenas o dano da perda de alimentos, verificados que estivessem os requisitos do nº 3 do art.º 495 do C.Civil.

Todavia, nada alegaram a tal propósito: nem que recebiam alimentos do falecido como obrigação natural, nem que estivessem em condições legais de os exigir. Desde logo, nada dizem sobre a respectiva necessidade, e tão pouco sobre a hierarquia dos que, por lei, a eles estão vinculados (art.ºs 2003, 2004, 2008 e 2009 do CC).        

Donde que assista cabal razão à Ré ora apelante quando pede que seja negada aos AA. a indemnização que a sentença lhes atribuiu com base na perda do ganho que o falecido D... poderia obter até à idade correspondente ao que é a esperança média de vida actual.

Queda deste modo prejudicada a questão da apreciação do excesso que a apelante entendia existir na valoração deste dano.

A apelação dos AA.

Nas conclusões com encerra a respectiva alegação, os AA. levantam as seguintes questões:

1º - A de saber se deveria ser alterada a decisão no que concerne à atribuição de 20% de responsabilidade à vítima, de molde a que mesma recaísse na totalidade sobre o segurado da Ré;

2º - Se o dano patrimonial decorrente da perda de ganho da vítima não deveria ser fixado em quantia inferior a € 147.497,36, por efeito de um declínio da capacidade produtiva daquela no tempo de vida que ainda lhe restava.

3º - Se deveriam ser corrigidos os valores do dano da perda do direito à vida da vítima, e, bem assim, dos outros danos não patrimoniais que foram quantificados na indemnização devida aos AA. por terem decorrido do acidente.

Não houve resposta da aqui apelada.

Quanto à repartição das culpas do acidente.

Rebelam-se os aqui apelantes contra a divisão da culpa realizada no veredicto recorrido, por ter imputado a proporção de 20% à vítima em lugar de a atribuir na totalidade ao condutor do veículo seguro.

Acontece que ao conhecer-se do recurso da Ré já se entendeu e decidiu que, estabelecida a matéria que deve ter-se por definitivamente provada, a culpa na eclosão do acidente recai na proporção de 70% sobre os ombros da vítima, ou seja, sobre o falecido D..., pai dos AA., ora apelantes, e 30% sobre o segurado da ora apelada.

No vertente recurso também não é posto em crise o julgamento ínsito na decisão da matéria de facto, a qual se tem por definitivamente estabilizada nos termos aqui já consignados.

Neste contexto, a apreciação do mérito da primeira das questões agora suscitadas pelos recorrentes, porque tem implícita da responsabilidade do veículo seguro na Ré C..., mostra-se irremediavelmente prejudicada pela solução dada ao recurso por esta interposto.

A respeito do cálculo do dano patrimonial da perda de rendimento futuro da vítima.

Insurgem-se também os apelantes contra a redução efectuada na sentença da quantia de € 147.497,36 ali achada como equivalente aos ganhos frustrados à vítima no tempo de actividade que poderia ainda desenvolver até aos 83 anos.

A questão da ressarcibilidade deste suposto dano já foi oportuna e suficientemente tratada aquando da apreciação do recurso da Ré, tendo-se então concluído que os AA. não tinham direito a serem indemnizados pela mera perda de ganho que para a vítima resultou da respectiva morte.

Daí que, porque se assentou em que não estaríamos diante de um verdadeiro dano - ou que, pelo menos, a verificar-se o dano, ele não seria indemnizável como dano dos AA. - a questão agora enfocada pelos apelantes esteja votada ao insucesso.   

Sobre os valores da perda do direito à vida, dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e das parcelas da indemnização dos AA. atinentes aos danos não patrimoniais próprios ou directos.

Referindo-se à quantificação dos diversos danos que é gizada na decisão recorrida, principiam os AA. por clamar contra a excessiva parcimónia da verba ali encontrada para compensar a perda do direito à vida (ali valorada em € 35.000,00)

Neste particular acompanhamos os recorrentes e a jurisprudência por eles referenciada, quando propugnam que tal valor seja alterado para € 50.000,00.

Dispensando-nos da sempre fastidiosa exemplificação das decisões jurisprudenciais, em particular do nosso mais alto Tribunal, que apontam vincadamente numa certa direcção ao tomarem posição sobre essa valoração, diremos tão só que há muito deixaram de ser arbitradas compensações inferiores àquele patamar - dos € 50.000,00 - e que desponta já em alguns arestos uma certa tendência para esse valor se aproximar dos € 60.000,00.

Aderindo ao valor que mais consensualmente vem sendo fixado a este título, somos, assim, levados a modificar a verba indemnizatória respeitante a este específico dano - a que os AA. têm direito como herdeiros da vítima - para os requeridos € 50.000,00.

 

Discordam ainda os AA. da exiguidade da verba de € 10.000,00 que foi fixada e concedida como reparação do dano patrimonial correspondente às dores, sofrimentos e tratamentos padecidos pela vítima desde o acidente até à consumação do seu decesso.

Propõem agora a sua elevação para € 12.500,00.

Começa-se por estranhar a subtileza ou minúncia do dissídio - apenas € 2.500,00.  

Temos, porém, como justo o valor arbitrado, o qual, num julgamento equitativo, de harmonia com os elementos dos art.ºs 496, nºs 1 e 3 e 494 do CC, está em consonância com a factualidade provada e plasmada em 19 a 24, e com os critérios que para situações similares tem sido jurisprudencialmente afinados.

 No que concerne aos danos não patrimoniais próprios que atingiram os AA. com o desgosto e tristeza pela perda do pai, a quem muito estimavam (cfr. os factos provados em 25 e 32) já se nos afigura, ao abrigo dos normativos supracitados, como mais consentânea com a dimensão desse dano, a elevação equitativa da respectiva parcela indemnizatória - aliás, em linha, com decisões deste colectivo para outros casos com os quais o presente patenteia algum paralelismo - para o montante de € 20.000,00 em relação a cada um dos AA..   

Termos em que a questão agora abordada procede parcialmente.

Em consequência, a indemnização devida aos AA. é de € 30.109,20 (€ 364,00 + € 10.000,00+ € € 50.000,00 + € 40.000,00 x 30%).

             

Pelo exposto, na procedência parcial das apelações de Ré e AA., julgam a acção parcialmente procedente por provada, e, em função disso, revogam em parte a sentença recorrida, condenando a Ré a pagar aos AA. a quantia global de € 30.109,20, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente em causa, nos termos que se deixaram referidos, quantia esta que vence juros de mora à taxa legal, sobre a parcela de € 109,20 desde a citação, e sobre o remanescente desde a decisão proferida na 1ª instância.

Custas por AA. e Ré na proporção do decaimento.

                             

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins     


[1]  Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, p. 151.

[2] De entre as muitas situações em que um certo facto contravencional não se manifesta como causal do acidente, mas antes como necessariamente irrelevante na sua origem, podem figurar-se, por ex. o caso de um condutor de um veículo ligeiro que, circulando sem cinto de segurança,  se vê esmagado por um pesado de mercadorias que, desrespeitando o sinal de STOP, corta a linha de marcha do respectivo veículo. 
[3] Como diz E. Heitor Consciência, no seu estudo Sobre acidentes de viação e seguro automóvel, Almedina, 3ª ed., p. 192, esta prova de primeira aparência corresponde a uma presunção judicial através da qual, provando o lesado por acidente um facto que, de acordo com a experiência, torne meramente verosímil a culpa do lesante, esta só será afastada demonstrando o lesado, ou a falta de culpa no facto, ou que este, embora culposo, não foi determinante do evento danoso. Nesta segunda hipótese, prefigura-se nitidamente a situação de não causalidade daquele concreto facto ilícito contravencional.  
[4] Dário M. Almeida, Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 1980, p.85, citando Manuel de Andrade, na Teoria Geral das Obrigações, V. I, p. 351.
[5] Não tendo ficado provado que, na ocasião, o local do acidente se encontrasse dotado de iluminação pública efectiva, a circulação do veículo da vítima sem qualquer luz vem a ter uma intervenção absolutamente decisiva na compreensão do acidente.