Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
713/10.9TBFIG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: VÍCIO DE DEFICIÊNCIA DE FACTO NA SENTENÇA
ANULAÇÃO DO JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - F.FOZ - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 662º, Nº 2, AL. C) DO NCPC.
Sumário: a) Conhecendo oficiosamente a Relação da existência do vício da deficiência de facto (art.662º, nº 2, c) CPC), tal implica a anulação do julgamento e reenvio do processo ao tribunal da 1ª instância, ainda que a prova produzida em audiência tenha sido integralmente gravada.

b) Quando o nº 2, c) do art.662º remete para o nº 1, refere-se a todos os elementos que “permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”, pressupondo logicamente a respectiva individualização ou discriminação, ou seja, para o poder de substituição ou de reexame pela Relação não basta a mera gravação da prova testemunhal, sem qualquer indicação ou individualização, pois de outro modo tal exigiria uma audição integral e indiscriminada.

c) Por outro lado, implicando o vício da deficiência a ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição.

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- Os Autores – D... ( na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito M...) e P... e M... (por intervenção principal provocada) – instauraram (10/03/2010) acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus – A... e esposa M...

Alegaram, em resumo:

No dia 2 de Abril de 1996, M..., na qualidade de promitente comprador, e A..., por si e na qualidade de gestor de negócios da esposa M... (como promitentes vendedores) celebraram, por documento particular, contrato promessa de compra e venda bilateral, no qual estes prometerem vender e aquele prometeu comprar o prédio urbano, sito em ..., pelo preço de 7.000.000$00.

Declararam que o preço foi integralmente pago e que a escritura será efectuada logo que o promitente comprador (2º outorgante) o pretenda, devendo avisar com antecedência mínima de oito dias, ficando o contrato sujeito a execução específica.

Por vicissitudes várias, a referida escritura nunca chegou a ser outorgada, e após o óbito do seu marido diligenciou, sem êxito, pelo cumprimento.

Em 14/6/2002, a Autora contraiu casamento com M..., e desde então fixou residência no prédio urbano prometido comprar, constituindo a casa de morada de família.

A Autora, na qualidade de cabeça de casal, interpelou os Réus para a celebração da escritura pública, mas nunca compareceram.

Pediram:

a)Seja proferida sentença que, nos termos do artigo 830º do Código Civil, produza os efeitos da declaração negocial em falta dos RR, declarando-se que o prédio urbano id. em 5º da PI, é propriedade da herança aberta por óbito de M..., devendo o mesmo ser entregue à cabeça de casal da herança;

b) Em alternativa, sejam os RR condenados a restituir à A..., cabeça de casal da herança de M..., a quantia entregue a título de sinal e antecipação de pagamento em dobro, com as legais consequências.

Os Réus contestaram, defendendo-se em síntese:

Arguiram a ilegitimidade activa porque a Autora não está acompanhada dos demais herdeiros do falecido.

O contrato promessa não contem o reconhecimento notarial das assinaturas, sendo nulo.

O contrato promessa não foi outorgado pela Ré mulher, nem nunca o ratificou pelo que não é legalmente possível a execução específica.

As partes outorgantes nunca quiseram celebrar o contrato promessa nem houve a entrega do preço, pois o mesmo visou tão somente garantir ao M... a possibilidade de se manter no prédio, mais não era do que um contrato de comodato sem prazo.

A Autora respondeu contestando a defesa por excepção e requereu a intervenção principal provocada de P... e M...

1.2. Por despacho de 18/11/2015 foi admitido o chamamento.

1.3. O Réu faleceu na pendência da acção e foram habilitados a viúva, co-Ré M...,  e os filhos ...

            1.4.- No saneador decidiu-se julgar improcedentes as excepções de ilegitimidade activa e de ilegitimidade passiva da Ré.

            1.5.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

 “  Pelo exposto julgo totalmente procedente a presente acção em que são AA. D..., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito M..., intervenientes P... e M... e RR. M... e A..., entretanto falecido e representado nos autos pela sua espoa e pelos filhos ..., e, em consequência, nos termos do artigo 830º do Código Civil, e suprindo a declaração negocial dos RR/promitentes vendedores, declara-se transferida para os AA. a propriedade do prédio objecto do contrato promessa referido em 1) dos factos provados, concretamente uma casa de habitação de rés-do-chão, sita em ...

 Custas pelos RR. “

1.6.- Inconformados, os Réus recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

...

Deimante dos Santos contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.-Delimitação do objecto do recurso

            As questões essenciais colocadas no recurso, são as seguintes:

            A ilegitimidade passiva da Ré;

A contradição de facto ( factos 1) e 2) );

A impugnação de facto ( factos 4), 5) , 5, 6, 7, 9, 13, 14);

            A validade do contrato promessa de compra e venda (A nulidade do contrato promessa e a simulação relativa (comodato ));

Nulidade do contrato por falta de reconhecimento das assinaturas;

A ineficácia do contrato promessa em relação à Ré.

2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

            1) Em 2 de Abril de 1996, o de cujus marido da aqui A., e o R marido, por si e na qualidade de gestor de negócios de sua mulher, celebraram um “Contrato Promessa de Compra e Venda”, relativo ao prédio urbano ai identificado nos termos do doc. n.º3 junto com a petição inicial.

2)Por esse contrato, o autor da herança, (2º contraente) prometeu comprar aos RR (1os contraentes) e estes prometeram vender o referido prédio urbano. 

3) Tendo sido estipulado o preço de 7.000 000$00 (sete milhões de escudos), ou seja €34.915,86 Euros (trinta e quatro mil, novecentos e quinze euros e oitenta e seis cêntimos).

4) Montante esse entregue na sua totalidade pelo 2º contraente, o falecido M..., ao 1º contraente o aqui R marido, a título sinal e de antecipação de pagamento.

5) Foi ainda convencionado que a escritura de compra e venda seria efectuada logo que o comprador o pretendesse, devendo avisar os RR com a antecedência mínima de oito dias.

 6) Pelo que, a A., após o óbito do seu marido, diligenciou, por diversos meios, para que o contrato promessa fosse cumprido, e sabendo que os RR. estavam de férias na sua residência na ..., enviou carta registada, indagando da disponibilidade de ambos para comparecerem no Cartório Notarial, a fim de se celebrar a competente escritura.

7) A R mulher, com promessas evasivas, foi protelando a outorga da escritura, acabando por regressar aos Estados Unidos da América na companhia do seu marido, sem assinarem a mesma. 

8) O de cujus M... sempre viveu nessa casa de habitação, pois era a casa de seus pais, e mesmo após ter sido partilhada e adjudicada aos RR, aí continuou a viver.

9) Tendo inclusive efetuado diversos melhoramentos no citado prédio urbano por forma a evitar a sua perda, destruição ou deterioração. 

10) Em 14/06/2002 também a A. aí passou a residir com M... 

11)  Sem qualquer oposição dos RR, ou de quem quer que fosse.

12) E onde a A. continua a viver até aos dias de hoje.

13) A A interpelou os RR. para a assinatura da escritura de compra e venda em 21 de setembro de 2009.

14) Face à não comparência no respetivo cartório, a A voltou a interpelar os RR para a assinatura da escritura definitiva de compra e venda, em 14 de dezembro de 2009, mas os RR mais uma vez não compareceram. 

2.3.- Os factos não provados ( descritos na sentença )

15)Os filhos dos RR. já construíram no prédio em causa uma garagem e nele fizeram  outras benfeitorias, com conhecimento da A. e sem que lhes fosse sequer mencionado o contrato-promessa ora dado à execução específica.

2.4.- Impugnação do despacho que julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da Ré M...

Os Réus arguiram a ilegitimidade passiva da Ré M..., com alegação de que não outorgou o contrato promessa de compra e venda, nem consta que o tenha ratificado.

Por despacho de 20/8/2018 decidiu-se julgar improcedente a excepção de ilegitimidade passiva.

Argumentou-se, em síntese, que o contrato promessa abrangeu a Ré, por o marido intervir na qualidade de gestor de negócios, e para além do pedido de execução específica foi também formulado o pedido de resolução e restituição do sinal em dobro, logo a Ré é parte legítima, nos termos do art.30 CPC.

Os Réus reclamaram do despacho saneador na parte em que indeferiu a excepção de ilegitimidade passiva.

Por despacho de 19/11/2018 indeferiu-se a reclamação, argumentando-se que o despacho que apreciou a questão da legitimidade da Ré transitara em julgado (art.595 nº3 CPC), e os Réus impugnam esta decisão alegando violação do art.644 nº3 CPC.

O despacho saneador na parte em que julga improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade só pode ser impugnando no recurso que venha a ser interposto da decisão que ponha termo à causa decidindo do mérito (art.644 nº3 CPC), pelo que não transitou em julgado.

É conhecida a controvérsia sobre as duas posições doutrinárias acerca do pressuposto processual da legitimidade das partes. Para uns, a legitimidade é aferida pela pretensa relação material controvertida, tal como a configura o autor (tese de Barbosa de Magalhães). Para outros, ela é definida pela relação jurídica submetida à apreciação do tribunal, sendo legítima a parte que efectivamente for titular dessa relação jurídica (tese de Alberto dos Reis ).

Embora a jurisprudência se encontrasse dividida, prevalecia a que se inclinava pela tese de Barbosa de Magalhães (sufragada pela maioria da doutrina processualista), permitindo, entre outras vantagens, extremar com mais clareza o que pertence à relação processual e o que é do foro da relação substantiva, pelo que quando o tribunal declara a parte legitima pronuncia-se sobre um pressuposto processual e não sobre uma condição de procedência da acção ou de legitimação substantiva.

Com a redacção dada ao nº 3 do art. 26 do CPC pelo art.1º do DL 180/96, de 25/9, o legislador veio tomar posição expressa sobre a polémica questão quanto ao critério de determinação da legitimidade das partes, conforme resulta do próprio relatório, aderindo à posição doutrinária de Barbosa de Magalhães, e esta orientação acabou por ser transferida para o art.30 do actual CPC.

Nesta perspectiva, a legitimidade deve ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa derivar para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, considerando o pedido e à causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o autor.

Neste contexto, tal como os Autores configuraram a acção, a Ré é parte legítima.

2.4.- Contradição de facto

O tribunal deu como provado:

1)Em 2 de Abril de 1996 o de cujus marido da aqui A., e o R marido, por si e na qualidade de gestor de negócios de sua mulher, celebraram um “Contrato Promessa de Compra e Venda”, relativo ao prédio urbano ai identificado nos termos do doc. n.º3 junto com a petição inicial.

2)Por esse contrato, o autor da herança, (2º contraente) prometeu comprar aos RR (1ºs contraentes) e estes prometeram vender o referido prédio urbano. 

Os Apelantes alegaram o vício da contradição entre o facto 1) e o facto 2).

Para efeitos do disposto no art.662 nº2 c) do CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto. A colisão deverá ocorrer entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto de outra ou então com a factualidade provada no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja o contrário da outra. Só há contradição entre os factos provados quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros.

Consistindo o vício da contradição em erro de julgamento, ele tem, no entanto, que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos, logo não pode confundir-se com a alteração da matéria de facto com base no erro notório na apreciação da prova.

É por demais evidente que os factos não são incompatíveis, pois afirma-se que o Réu marido interveio como gestor de negócios da mulher, logo contraentes (promitentes vendedores) são os Réus ( marido e mulher ).

2.5.- A Alteração de facto

Os Apelantes pretendem que se julguem não provados os factos 4), 5), 5), 6), 7), 9), 13), 14). Relativamente ao ponto 4) indicam como prova os depoimentos de ..., e quanto aos demais factos impugnados por não se ter produzido qualquer prova.

Da prova documental resulta provado o seguinte:

Por óbito de M... e marido L... procederam os herdeiros à partilha por escritura pública de 21/3/1996, sendo o único bem relacionado o prédio urbano inscrito no art..., adjudicado à interessada M..., pelo valor de 3.500.000$00.

            A Ré M... é irmã do falecido M...

Em 2 de Abril de 1996, A... e M... outorgaram o documento de fls. 18, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, tendo por objecto o prédio urbano inscrito na matriz sob o art..., adjudicado à M..., pelo preço de 7.000.000$00, declarando-se que “o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2º outorgante ao 1º nesta data”.

Ouvida a prova testemunhal verifica-se que os depoimentos são convergentes quanto ao facto de o M... sempre ter vivido nesse prédio urbano. Já quanto ao contexto da celebração do contrato promessa, a sua finalidade e sobre o pagamento do preço, os depoimentos são indirectos, como se sublinhou na sentença. Basta atentar que nenhuma das testemunhas presenciou a subscrição do contrato promessa. Chegou até a ser dito que logo na partilha a casa ficou em nome da M... para “salvaguardar os interesses do M...”, e o contrato promessa foi feito para “garantir a transferência” ( cf. ...) e que foi o M... quem na verdade pagou as tornas.

Conforme fundamentação, a sentença justificou no essencial com os depoimentos indirectos das testemunhas ...:

“ Ora, analisando a maioria dos depoimentos, temos que grande parte deles constituem depoimento indirecto, quanto à partilha e pagamento do preço por parte do falecido marido da AA. No entanto, tendo em conta que quer o marido da AA, que o RR já faleceram, na ausência de prova  directa quanto aos factos, temos de reconhecer que a prova apenas é possivel de efectuar admitindo o depoimento indirecto, ou seja, aquele em que uma testemunha tem conhecimento de um facto mediante o que lhe transmitiu um terceiro, através de uma representação oral, escrita ou mecânica, não provindo o conhecimento da testemunha sobre o facto da sua perceção sensorial imediata. 

(…)

 Atento o exposto, entendemos que os depoimentos supra referidos quanto reportados ao ouvir dizer pelo falecido marido da AA merecem credibilidade e devem ser considerados para consideração dos factos provados e não provados.   Acresce que tais depoimentos não foram postos em causa por outra prova testemunham directa ou indirecta e são consentâneos com o teor dos documentos juntos, mormente a escritura de partilha de fls. 127v e ss. outorgada em 21 de Março de 1996 e o contrato promessa de partilha junto a fls. 18, datado de 2 de Abril de 1996, de onde consta expressamente, para além do mais, que “o preço global da compra e venda aqui ajustada é de 7.000.000$00 (sete milhões de escudos)” e “ o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2.º outorgante ao 1.º nesta data”.  Por outro lado, tal é consentâneo com a afirmação de que a casa sempre foi considerada como “ a casa do M...”, sendo que os RR não efectuaram qualquer prova de que o contrato que pretendiam celebrar tinha outra natureza ou objectivo.”

Do documento particular de fls.18 consta que o preço global é de 7.000.000$00, e que “ o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2º outorgante ao 1º nesta data”.

Os Réus defenderam-se, além do mais, com a simulação do contrato promessa de compra e venda, alegando tratar-se de um contrato simulado, pois que as partes nunca tiveram a intenção de vender e comprar o prédio, e que dissimula um contrato de comodato, ou seja, tal foi o meio escolhido para garantir ao M... ( irmão da M... e cunhado do A...) a possibilidade de residir na casa, caso algo lhe acontecesse e que os herdeiros do R marido não pudessem reclamar o imóvel ( cf. arts.20 a 25, 27  da contestação ).

Estes factos foram impugnados na réplica, revelando-se controvertidos, mas não estão incluídos nos temas da prova, nem foram objecto de cognição pelo tribunal.

Tratam-se de factos relevantes para a decisão da causa, pois questiona-se, desde logo, a validade do contrato promessa de compra e venda, pressuposto da pretensão dos Autores (execução específica e subsidiariamente a resolução e devolução do sinal em dobro).

Na verdade, é indispensável saber em que contexto foi outorgado o contrato promessa e qual a intenção das partes outorgantes, tanto mais haver sido alegado um relacionamento pessoal e dependência financeira do M... em relação à irmã.

Por isso, ocorre erro de julgamento por vício da deficiência, a implicar a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto (art.662 nº2 c) CPC)

Esta norma confere à Relação poderes de cassação (“ anular a decisão proferida na 1ª instância… “), embora se entenda que o poder rescisório ou cassatório é subsidiário dos poderes de reexame dos factos, pois só assim será se não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração ( “ quando, não constando do processo todos os elementos que , nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto “ ).

Daí que se questione quando é que que constam do processo todos os elementos que impliquem a alteração de facto, e, por essa, via solucionar o vício na Relação.

O nº1 do art.662 CPC apenas enuncia os elementos que podem impor decisão diversa, e, por consequência, alteração de facto: os factos assentes, a prova produzida e documento superveniente.

            Uma vez que a factualidade omitida não está logicamente assente, resta apurar se a “prova produzida “ permite a alteração, e, por consequência, o reexame, em vez da anulação.

            A prova produzida foi a documental e a testemunhal, gravada em audiência. Contudo, para o poder de substituição ou de reexame não basta a mera gravação prova testemunhal, sem qualquer indicação ou individualização, pois de outro modo tal implicaria uma audição integral e indiscriminada.

Quando o nº2 c) do art.662 remete para o nº 1 refere-se a todos os elementos que “permitam a alteração da decisão proferida, sobre a matéria de facto”, pressupondo logicamente a respectiva individualização ou discriminação, e que os depoimentos tenham incidido sobre todos os factos.

Note-se que, sendo a Relação  chamada a apreciar a prova testemunhal, a lei impõe ao recorrente o ónus de especificação (tanto o ónus primário, como o ónus secundário), e se é assim para a impugnação, também o deve ser por maioria ou identidade de razão para o reexame com vista a solucionar o vício da deficiência.

            Por outro lado, se a Relação pode oficiosamente reenviar o processo para fundamentação da decisão de facto, mesmo na situação em que os depoimentos estejam gravados ou registados (cf. alínea d) do nº 2 do art.662), significa que a lei determina que nestes casos não se procede ao reexame (por falta da individualização). Ou seja, se estando a prova gravada quando falte ou seja insuficiente a fundamentação a lei impõe o reenvio, e não o reexame, então o mesmo terá que suceder, por maioria de razão, para a correção do erro de julgamento motivado por um dos vícios, e sobretudo quanto ao vício da deficiência. É que implicando o vício da deficiência a ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição.

            Deste modo, impõe-se a anulação do julgamento para ampliação dos temas de prova sobre os factos alegados nos arts. 20 a 25, 27 da contestação, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.

            2.6.- Síntese conclusiva

a) Conhecendo oficiosamente a Relação da existência do vício da deficiência de facto (art.662 nº2 c) CPC), tal implica a anulação do julgamento e reenvio do processo ao tribunal da 1ª instância, ainda que a prova produzida em audiência tenha sido integralmente gravada.

b) Quando o nº2 c) do art.662 remete para o nº 1 refere-se a todos os elementos que “permitam a alteração da decisão proferida, sobre a matéria de facto”, pressupondo logicamente a respectiva individualização ou discriminação, ou seja, para o poder de substituição ou de reexame pela Relação não basta a mera gravação da prova testemunhal, sem qualquer indicação ou individualização, pois de outro modo tal exigiria uma audição integral e indiscriminada.

c) Por outro lado, implicando o vício da deficiência a ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Anular oficiosamente o julgamento, nos termos do art.662 nº2 c) CPC, para ampliação da matéria de facto alegada nos arts. 20 a 25 e 27 da contestação.

2)

            Custa pela parte vencida a final.

Relação de Coimbra, 3 de Março de 2020.

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Teresa Albuquerque.