Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
434/12.8TBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: EXECUÇÃO
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE
Data do Acordão: 04/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 3º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 56, 263, 271, 376 CPC
Sumário: 1 - Tendo o devedor procedido à alienação do imóvel onerado com garantia de hipoteca a favor do credor, pretendendo este fazer valer essa garantia e tornar efectivo o seu direito em relação ao bem hipotecado, o meio próprio é a execução.

2 - Em face do desvio à regra de legitimidade para a acção executiva prevista no artigo 56.º, n.º 2 do CPC, como emanação da sequela de que o exequente beneficia, o terceiro adquirente tem legitimidade para ser demandado no processo executivo.

3 - Não tendo o exequente demando inicialmente o terceiro adquirente pode lançar mão do incidente de habilitação de adquirente, por este ser o meio processual adequado para aquele fazer valer os direitos que a lei lhe confere, isto mesmo que a aquisição tenha sido anterior à data de instauração do processo executivo.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I – RELATÓRIO

1. M (…) CRL, por apenso ao processo de execução comum supra identificado, veio deduzir o presente incidente de habilitação de cessionário contra S (…) Ld.ª, C (…), e mulher, A (…), requerendo que seja declarada habilitada a primeira requerida como adquirente do prédio e, como tal, decretar-se que, quanto a esse prédio, se substitua aos executados iniciais para, também com eles, e em seu nome, a presente execução ter o seu seguimento normal, com o cumprimento da subsequente tramitação legal.

Para o efeito alegou que:

«1.º O presente processo tem por objeto a cobrança de um empréstimo que a Requerente concedeu aos segundos Requeridos (Executados), garantido por hipoteca constituída a favor daquela sobre um imóvel, tudo conforme Doc. nº 1, 2 e 3, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 

2.º Acontece que, entretanto, o prédio hipotecado (prédio rústico, denominado (...), sito na freguesia do (...), concelho de Viseu, composto de terra inculta com pinhal e mato, inscrito na matriz sob o artigo (...)9º e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º (...)8/19930708) foi adquirido pela Primeira Requerida, por compra aos segundos Requeridos indicados, compra essa que foi titulada por Escritura Pública de compra e venda elaborada pela Notária (…), em 4 de Maio de 2011, a qual se junta sob doc. nº 4.

3.º Como se pode constatar essa compra e venda foi realizada já após a constituição de Hipoteca Voluntária sobre o imóvel em apreço a favor da ora Requerente (17-05-2005).

 4.º Encontrando-se registada a favor da Primeira Requerida pela Ap. 3511 de 2011/05/06 – Doc. n.º 5.

5.º Por efeito da transmissão, assim operada, da propriedade do referido prédio hipotecado, cessou, em relação a este, a legitimidade dos executados iniciais, passando tal legitimidade para a primeira Requerida.

 6.º Por isso, devendo declarar-se a primeira Requerida devidamente habilitada como adquirente do prédio e, como tal, decretar-se que, quanto a esse prédio, se substitua aos executados iniciais para, também com eles, e em seu nome, a presente execução ter o seu seguimento normal, com o cumprimento da subsequente tramitação legal.»

 

2. Pela Mm.ª Juíza foi proferido despacho de indeferimento liminar do requerimento, com os seguintes fundamentos:

«Cumpre apreciar liminarmente a pretensão formulada, sendo para tal relevantes os seguintes factos que emergem directamente da documentação junta aos autos:

1) M (...) (…) CRL instaurou em 10-02-2012 a execução principal contra C (…) e esposa A (…), apresentando como título executivo uma escritura de abertura de crédito com hipoteca constituída a favor da credora à qual sucedeu a exequente sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (...)9º, descrito na 2º CRP de Viseu sob o nº (...)8 da freguesia de (...) e registado a seu favor pela inscrição G.

2) Por escritura pública de compra e venda celebrada em 4-05-2011, C (…) e esposa A (…)declararam vender a S (…) Lda e esta declarou comprar o prédio referido em 1) pelo preço de 1950€.

3) Pela ap. 3511 de 2011/05/06 foi registralmente inscrito a favor de S (…) Lda o facto relativo à aquisição por compra a C (…) e A (…)do prédio referido em 1).

Resulta do acima exposto que já antes de instaurada a execução havia sido transmitido à primeira requerida o prédio hipotecado pelos executados a favor da credora à qual sucedeu a exequente.

Ora, como ressalta do art. 56º do CPC na (anterior) redacção vigente à data da prática dos actos respectivos, a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor (nº 2).

Mais se dispõe no nº 3 que quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconhecer a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da acção executiva contra o devedor, que será demandado para completa satisfação do crédito exequendo.

Resulta dessas disposições legais que quer o terceiro adquirente do bem hipotecado quer os executados devedores poderiam ter sido demandados em simultâneo aquando da apresentação do requerimento executivo, dispondo ambos de legitimidade passiva em sede executiva, pelo que não há lugar a qualquer substituição processual na relação creditícia em causa nos autos.

Por outro lado, o incidente de habilitação destina-se à substituição de partes em caso de transmissão da coisa ou direito litigioso, deixando a parte substituída de ter legitimidade depois de habilitado o adquirente ou cessionário, como decorre do disposto no art. 263º, nº 1 do CPC na actual redacção (o transmitente continua a ter legitimidade enquanto o adquirente não for por meio de habilitação admitido a substituí-lo), o que pressupõe que o transmitente tenha legitimidade à data da entrada do processo em juízo e, posteriormente, deixasse de ser o titular da relação material controvertida, por efeito da transmissão ou cessão.

No caso vertente, os executados continuam a ser os devedores, sem prejuízo de poder ser executado o bem hipotecado que ingressou no património de um terceiro se este também tiver sido demandado em sede executiva.

Não se verifica assim qualquer transmissão da dívida para o terceiro adquirente do bem que a garante, pelo que o meio processual escolhido não é idóneo para suprir a falta de demanda do terceiro adquirente, logo no requerimento executivo.

Embora já tenha sido entendido que o incidente de habilitação é o próprio para fazer intervir, a par do executado, o terceiro que adquiriu os bens hipotecados objecto da acção executiva (vide ac RE de 3-11-1994, CJ, ano XIX, t. 5, p. 278), tal entendimento não se coaduna com as finalidades do incidente de habilitação pelas razões acima expostas, sendo certo que, como refere Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, Almedina, 1999, p. 242, mencionando o ac. STJ de 4-04-1995, CJ, ano III, t. 2, p. 29, “o processo próprio para implementar este tipo de incidente é o da acção declarativa em que ocorreu a transmissão do direito litigioso, enquanto ela estiver pendente, e não a acção executiva”.

Conclui-se, pois, que o presente incidente não constitui o meio processualmente idóneo para fazer intervir em sede executivo o terceiro que adquiriu o bem hipotecado antes de instaurada a acção executiva».

3. Inconformada com esta decisão a Exequente apresentou o presente recurso de apelação, terminando as correspondentes alegações, com as seguintes conclusões:

(…)

4. Notificados os executados e citada a requerida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 641.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2], não foram apresentadas contra-alegações.

5. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso.

      Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil actualmente vigente, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente das questões cujo conhecimento oficioso se imponha.

 Atenta a limitação do objecto do recurso efectuada pela Apelante, a única questão a apreciar é a de saber se deve ou não manter-se o despacho de indeferimento liminar do incidente de habilitação do cessionário, o que passa por decidir se o incidente de habilitação de adquirente é ou não o meio processual adequado para fazer intervir o adquirente de imóvel hipotecado na execução onde o exequente pretende fazer valer aquela garantia.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto

Os fundamentos de facto com interesse para a decisão do presente recurso são os constantes da decisão do incidente supra transcrita, relevando ainda que:

- No contrato de abertura de crédito e hipoteca referido em 1), que para além do imóvel ali identificado incide também sobre outros imóveis, a M (...) e os ora executados acordaram que a hipoteca é constituída com a máxima amplitude legal e por tempo indeterminado, livre de quaisquer ónus ou encargos ou limitações, e permanecerá até integral cumprimento ou extinção de todas as obrigações e responsabilidades garantidas;

- Mais acordaram que a abertura de crédito e hipoteca e respectivas responsabilidades dos mutuários se regem também pelo clausulado constante do documento complementar anexo à escritura, do qual avultam, para o que ora importa as respectivas cláusulas 2 a 5 das quais resultam as obrigações assumidas pelos ora executados quanto aos imóveis hipotecados.


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III.2. – O mérito do recurso

O Apelante sustenta a sua pretensão de revogação do despacho que indeferiu liminarmente o incidente, na violação do preceituado nomeadamente nos artigos 818.º do Código Civil, 56.º e 356.º do CPC do Código de Processo Civil[3].

Invoca em abono da sua tese que, apesar de o incidente de habilitação de cessionário ter sido concebido para realizar a substituição de alguma das partes e para ser aplicado no âmbito da acção declarativa, nada obsta a que o mesmo seja aplicado analogicamente no âmbito do processo executivo para fazer intervir o adquirente do bem hipotecado, mantendo-se quem já nela é parte, até porque estes mantêm-se devedores da exequente o que plenamente se justifica para o caso do produto da venda dos bens hipotecados não permitir a total realização do crédito exequendo e a execução poder prosseguir contra os executados iniciais para realização da parte restante da dívida, mediante a penhora de outros bens de sua propriedade.

Para o efeito, estriba-se no preceituado no artigo 56.º, n.º 2, do CPC, de acordo com o qual a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.

Acontece, porém, que no caso dos autos, a Exequente instaurou a execução apenas contra os devedores e, no decurso da mesma, veio requerer o presente incidente com fundamento na transmissão do imóvel hipotecado para o adquirente cuja habilitação pede.

Resulta ainda dos factos documentalmente provados que antes de ser instaurada a execução de que os presentes autos são apenso, havia já sido transmitido à primeira requerida o prédio hipotecado pelos executados a favor da credora, à qual sucedeu a exequente.

E foi essencialmente por esta razão, que a Mm.ª Juíza, ancorando-se nos ensinamentos de Salvador da Costa[4] e na jurisprudência citada, que defendem que o incidente de intervenção do adquirente não tem aplicação no âmbito da acção executiva, indeferiu o requerido incidente de habilitação da adquirente.

Salvo o devido respeito, entendemos, porém, não ser esta a melhor interpretação dos preceitos a convocar para a solução do problema quando estamos perante execução hipotecária, defendendo aqueloutra posição que tem sustentado poder e dever aplicar-se no âmbito da acção executiva, por analogia, o incidente de habilitação de adquirente previsto nos artigos 271.º, al. a) e 376.º do CPC, o qual é o meio processual adequado para realizar a substituição de alguma das partes em acção declarativa, convocando o princípio da economia processual e embora em desvio às regras normais da legitimidade, isto por ser o modo mais adequado e fácil de possibilitar a intervenção do adquirente do bem hipotecado na execução[5].

Vejamos, então, as razões pelas quais entendemos ser esta a mais correcta solução.

Conforme é consabido, de acordo com o princípio da estabilidade da instância expressamente consagrado no artigo 268.º do CPC, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvando-se deste princípio as possibilidades de modificação que se mostram consagradas na lei. De entre estas avulta, para o que ora importa, a possibilidade de modificação da instância quanto às pessoas, em consequência da substituição de alguma das partes, por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio; e ainda em virtude dos incidentes de intervenção de terceiros [artigo 270.º, alíneas a) e b) do CPC].

No primeiro caso, - aquele que nos importa agora -,  de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 271.º do CPC, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo, sendo o meio processual adequado para efectuar tal substituição a habilitação de adquirente prevista no artigo 376.º do CPC.

Apesar de os incidentes de habilitação estarem gizados para os termos da acção declarativa, em face do que dispõe o artigo 466.º, n.º 1, do CPC, que manda aplicar subsidiariamente e com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva, ao processo comum de execução, não se vê razão para que tal possibilidade de aplicação subsidiária seja liminarmente arredada.

Efectivamente, se pensarmos apenas nas regras gerais estabelecidas para este tipo de processo, especificamente quanto à legitimidade das partes no processo executivo, que se mostram vertidas no artigo 55.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, não se vislumbram os casos em que tal aplicação analógica possa ter lugar.

De facto, a legitimidade para a acção executiva determina-se com muito maior simplicidade do que na acção declarativa[6] e mostra-se em consonância com o facto de aquela acção ter na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos (artigo 45.º, n.º 1, do CPC), sendo este “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla exsecutio sine titulo”[7]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[8].

Na verdade, os “títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador”, sendo “constitutivo da relação obrigacional quando a obrigação tem no acto documentado a sua fonte” e “certificativo da obrigação quando, procedendo a constituição da dívida de um outro acto, o título apenas confirma a existência dela”. Concluindo, “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não”[9].

Ou, por outras palavras, o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”[10].

Significa o que vem de afirmar-se que se, em princípio, a execução é instaurada por quem no título tem a posição de credor, contra aquele que, no título, assumiu a posição de devedor, por regra, o incidente de habilitação não poderá ser aplicado no âmbito do processo executivo, porque as suas regras não se mostram compatíveis com o preceituado no artigo 55.º, n.º 1, do CPC.

Acontece, porém, que esta regra geral quanto à determinação da legitimidade activa e passiva na acção executiva, sofre as adaptações previstas no n.º 2 do artigo 55.º, e os desvios que o legislador veio estabelecer no artigo 56.º do CPC[11].

No caso dos autos, vemos, desde logo, que a legitimidade da exequente, decorre de ter havido sucessão no direito relativamente a quem figura no título como credor. Portanto, a sua legitimidade mostra-se assegurada não pelo disposto na regra geral prevista no artigo 55.º, n.º 1, - que in casu apenas se aplica quanto aos executados -, mas pela excepção consagrada no artigo 56.º, n.º 1, do CPC.

Por seu turno, o n.º 2 do referido artigo consagra a possibilidade de, em execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, o exequente fazer seguir a execução directamente contra este, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor, no caso em que aquele pretenda fazer valer a garantia.

Este preceito funda-se na natureza jurídica da hipoteca, prevista no artigo 686.º do Código Civil[12] como uma garantia especial das obrigações. Trata-se de uma garantia caracterizada pela natureza dos bens sobre os quais pode incidir (artigo 688.º CC), e pela obrigatoriedade do registo, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (artigos 687.º CC), sendo um direito acessório do direito de crédito que garante, daí que não possa constituir-se ou subsistir sem a obrigação[13], e extinguindo-se pelas causas previstas no artigo 730.º do CC.

Constituída e registada a hipoteca, esta garantia confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

Em caso de incumprimento da obrigação garantida por hipoteca, o meio de o credor hipotecário tornar efectivo o seu direito em relação aos bens hipotecados é a execução, que tem regras próprias quanto aos bens onerados com garantia real. Assim, em face do preceituado no artigo 835.º, n.º 1, do CPC, executando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia.

Mas, em face do direito de sequela e da prioridade que a hipoteca confere ao credor, a lei processual, em harmonia com a lei substantiva, criou uma situação de legitimidade específica para assegurar a efectividade desta garantia quando o devedor transmite o bem hipotecado, prevista no artigo 56.º, n.º 2, do CPC.

De facto, podendo o devedor alienar os bens hipotecados, sendo inclusivamente nula a cláusula contratual que proíba a inalienabilidade (artigo 695.º do CC), a lei permite a quem adquire os bens hipotecados, regista o título de aquisição e não é pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas, expurgar a hipoteca por uma das formas consagradas no artigo 721.º do CC, designadamente pagando integralmente ao credor

Porém, se o terceiro adquirente de imóvel onerado com hipoteca não a expurgar, então o artigo 56.º, n.º 2, do CPC confere ao credor que goza de garantia real sobre os bens que aquele adquiriu posteriormente ao registo da garantia, o poder de fazer seguir a execução directamente contra este para efectivar o exercício do direito de sequela inerente à garantia real que quer fazer actuar. Trata-se, portanto, de uma excepção à regra da legitimidade das partes consagrada no artigo 55.º, n.º 1, do CPC, precisamente para que a lei processual tenha instrumentos que possibilitem ao credor actuar os direitos que a lei substantiva lhe atribui. Ou seja, à semelhança do que acontece no artigo 819.º do CC em que a disposição dos bens penhorados é inoponível à execução, também no artigo 56.º, n.º 2, do CPC, se consagra a inoponibilidade ao exequente do acto de disposição do bem hipotecado, criando a possibilidade de fazer seguir a execução directamente contra o adquirente do bem hipotecado. Tudo se passa como se a legitimidade fosse, neste caso, determinada pela titularidade do bem onerado, isto porque “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro face à obrigação exequenda tem de seguir contra este sempre que o exequente pretenda fazer valer a garantia”[14].

E se este é o fundamento da consagração desta excepção quanto à legitimidade passiva para ser demandado em execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, então o n.º 2 do artigo 56.º, deve ser interpretado por forma a permitir que a legitimidade do terceiro adquirente para a acção executiva aqui excepcionalmente consagrada, se verifique sempre que seja movida uma execução em que o credor pretenda fazer valer a garantia hipotecária, única interpretação que permite actuar devidamente os direitos que lei civil faculta ao credor.

Assim, sendo permitido que o exequente demande ab initio o terceiro adquirente do imóvel hipotecado, não se vê qualquer razão para não o poder fazer intervir na execução sempre que o exequente só no decurso da mesma tem conhecimento da transmissão do bem onerado com a garantia de que beneficia. E nesse caso, o meio próprio para fazer intervir esse terceiro é a habilitação de adquirente.

De facto, vistas as normas substantivas aplicáveis, para este caso específico de legitimidade parece-nos que deve ser indiferente o momento em que a aquisição do imóvel onerado ocorreu, não se vendo razão para admitir tal habilitação apenas se a transmissão ocorrer no decurso do processo executivo, nem para limitar essa possibilidade se o registo da aquisição for anterior ao processo executivo. Efectivamente, neste caso, havia a possibilidade de o exequente demandar logo o terceiro. Mas, se o mesmo só vem a ter conhecimento da alienação no decurso da execução, não se vê por que razão deva coartar-se o seu direito substantivo com uma leitura ao pé da letra do direito processual, quando este deve ser o instrumento para atingir aquele, sendo que, se a permite “o mais” também não pode deixar de permitir “o menos”.

Finalmente, também apesar da letra da lei processual, não se vê que a previsão dos artigos 271.º e 56.º, n.º 2, do CPC, possa obstar à legitimidade dos primitivos executados para contra eles prosseguir a execução, juntamente com o terceiro adquirente. De facto, aqueles são os primitivos devedores do exequente e nada nos diz que o valor do bem adquirido pelo terceiro baste para satisfazer o crédito do exequente, daí não fazer sentido que tenha sempre que existir substituição do devedor transmitente pelo terceiro adquirente, tanto mais que o n.º 3 do artigo 56.º expressamente prevê tal possibilidade de demandar também o devedor quando a execução tenha inicialmente sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com garantia para satisfazer o crédito exequendo.

São estas as necessárias adaptações a que alude o artigo 466.º, n.º 1, do CPC. Fazendo operar as mesmas, chegamos à conclusão de que o incidente de habilitação de adquirente é o meio processual próprio para fazer intervir na execução o terceiro adquirente de imóvel onerado com garantia constituída pelo devedor transmitente a favor do credor, ora exequente.  


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II.3. – Síntese conclusiva:

I - Tendo o devedor procedido à alienação do imóvel onerado com garantia de hipoteca a favor do credor, pretendendo este fazer valer essa garantia e tornar efectivo o seu direito em relação aos bem hipotecado,  o meio próprio é a execução.

II - Em face do desvio à regra de legitimidade para a acção executiva prevista no artigo 56.º, n.º 2 do CPC, como emanação da sequela de que o exequente beneficia, o terceiro adquirente tem legitimidade para ser demandado no processo executivo.

III - Não tendo o exequente demando inicialmente o terceiro adquirente pode lançar mão do incidente de habilitação de adquirente, por este ser o meio processual adequado para aquele fazer valer os direitos que a lei lhe confere, isto mesmo que a aquisição tenha sido anterior à data de instauração do processo executivo.


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III - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se o requerido incidente, determinando-se a sua tramitação processual subsequente.

Sem custas


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                                                                       Coimbra, 8 de Abril de 2014

                                                                                                                     

                                                                               

Albertina Pedroso ( Relatora )

(Carvalho Martins)   

(Carlos Moreira)   

[1] Relatora: Albertina Pedroso;

1.º Adjunto: Carvalho Martins;

2.º Adjunto: Carlos Moreira.

[2] Doravante abreviadamente designado NCPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, porquanto a redacção vigente à data da dedução do incidente era a anterior.
[4] Mantidos na 4.ª edição, do seu Incidentes da Instância, Almedina 20066, págs. 268 e 269.
[5] Cfr. Exemplificativamente, Acórdãos do STJ de 21-03-2002, processo n.º 02B2897; de 18-05-2006, processo n.º 06B1155; e TRP de 15-10-2013, processo n.º 677/06.3TBPRG-A.P1.
[6] Cfr. Lebre de Freitas, in A acção executiva depois da reforma, 4.ª edição, Coimbra Editora 2004, pág. 121.
[7] Cfr. Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 23, citando Chiovenda..
[8] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, pág. 58.
[9] Cfr. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1985, págs. 78 e 79.
[10] Cfr. Ac. STJ de 19-02-2009, proferido no processo n.º 07B4427, e disponível em www.dgsi.pt.
[11] Note-se que o conteúdo dos preceitos em referência se mantêm nos artigos 53.º e 54.º do actual CPC.
[12] Doravante abreviadamente designado CC.
[13] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1982, págs. 673 e ss.
[14] Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 115.