Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/08.6TATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA. ELEMENTOS DO TIPO
DIREITO A INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 180º,181º,187º DO CP, 483º, 484º,E 496º DO CC
Sumário: 1 O legislador autonomizou no artigo 187º do CP a protecção dos valores inerentes à pessoa colectiva - credibilidade, prestígio e confiança - e reservou para as pessoas singulares a previsão dos arts. 180º e 181º do mesmo diploma , onde se consagram e protegem os valores tradicionais da honra e da consideração social que lhe são devidas.
2. A prática do crime p.e p. pelo artigo 187º do CP exige, para além do mais, a prova de que os factos propalados sejam inverídicos.
3.As pessoas colectivas podem ser indemnizadas por danos não patrimoniais sofridos em consequência de ofensa ao seu bom nome, prestígio e confiança de que gozam.
Decisão Texto Integral: Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou improcedente a acusação deduzida pela assistente AS .. S.A. e acompanhada pelo Mº Pº ((excepto quanto ao crime de difamação) contra o arguido:

ES, casado aposentado, …. Viseu.

Sendo decidido:

- Absolver o arguido da prática do crime de difamação previsto e punido pelo disposto no art. 180.° do Código Penal e do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço de que vem acusado, previsto e punido pelo artigo 187° do Código Penal;

- Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado ES


***

Inconformado interpôs recurso, a assistente AS .. S.A..

São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:

1. Atentos os factos provados, o arguido cometeu o crime de difamação da assistente, mesmo considerando a formulação específica do actual art. 187° do Código Penal.

2. O art. 187° não afasta a aplicação do art. 180°, que mantém a sua autonomia e aplicação no caso concreto de pessoa colectiva como objecto da difamação.

3. O arguido quis ofender o bom-nome da assistente, quer como suporte de sua credibilidade e prestígio, quer como resultado dessas mesmas realidades.

4. A tese do Tribunal a quo levar-nos-ia a concluir que, antes da reforma de 1995, era impossível cometer o crime de difamação de pessoa colectiva, o que é errado.

5. A assistente alegou a inveracidade da imputação quando disse ser credora da insolvente B..  & Filhos, sendo apelidada de "pseudo credor" pelo arguido.

6. Se diz que é credor, é inverídico que seja pseudo credor.

7. A prova conseguida de que a assistente é empresa conceituada, laborando há mais de 50 anos, diz, à saciedade, que é inverídica a imputação de "pseudo credor", "hipotético credor" e de outros impropérios provados em audiência.

8. O Tribunal a quo parece querer atribuir à assistente o ónus da prova da inverdade da imputação, a prova negativa, o que vai contra as regras processuais da repartição do ónus da prova (Cfr. lugar paralelo do art. 180-2 b) do CP).

9. O processo de insolvência n" …/07.0TBTBU mostra, à saciedade, A F como credor da insolvente e membro da comissão de credores.

10. Tanto basta para provar a inveracidade das imputações do arguido.

11. O arguido apelidou de falso credor ao assistente que é um verdadeiro credor, conforme este alegou e provou.

12. O Tribunal à quo fez soçobrar o pedido cível porque conclui não haver, in casu, danos indemnizáveis, por não resultar da lesão qualquer diminuição de lucros.

13. É certo que, na prova testemunhal, se afirmou que houve perda de vendas, nessa época, mas não se pode afirmar que seja por causa do episódio em causa.

14. Mas o dano existe: ofensa ao bom-nome, à credibilidade, à consideração e à confiança da assistente.

15. Atenta a época de crise, seria impossível avaliar qual o peso do episódio na diminuição dos lucros.

16. Os danos resultantes da ofensa terão de ser liquidados com base na equidade.

17. A pessoa colectiva (associação, fundação ou sociedade) pode ser objecto de danos não patrimoniais, quer na perspectiva do art. 180°, quer na do art. 187°, ambos do C. Penal.

18. É óbvio que tais ofensas não deixarão de se repercutir nos resultados da empresa, sendo também, nessa perspectiva patrimonial, objecto de liquidação com base na equidade.

19. A ofensa ao bom-nome de uma empresa repercute-se sempre no seu desempenho comercial.

20. O Tribunal recorrido violou ou aplicou erroneamente as normas dos art.s 180° e 187° do CP; do art. 74° do CPP e do art. 483° do CC.

21. Aplicou ainda erroneamente o direito (art. 187° CP) aos factos quando concluiu que a assistente não alegou nem provou a inveracidade da imputação.

22. Essa norma deveria ter sido aplicada no sentido de que, como se explicou, a assistente alegou e provou essa inveracidade, mesmo sem usar essa palavra.

Revogando a sentença recorrida e substituindo-a por outra que condene o arguido pelos crimes de difamação e ofensa a pessoa colectiva e que a condene também em indemnização civil, liquidando os danos pela equidade se fará justiça.

Foi apresentada resposta, pelo arguido, que conclui.

1-O requerimento apresentado pelo arguido no Processo de Insolvência da Sociedade … & Filho, Ldª, jamais fez qualquer referência à Sociedade F & FILHOS, L.da, com sede em , mas a um tal A F pessoa singular que teria residência em Tábua, como era dito no artigo 24° da petição de Insolvência.

 

2- Objectivamente, em tal requerimento, nenhum facto, acção ou omissão, é dirigido ou imputado aquela sociedade, que o arguido não conhecia e não conhece, como não conhece nenhum dos seus legais representantes, com quem nunca falou ou contactou por qualquer meio.

3- Como não existe nenhum fantasmagórico sinal, de um não menos inventado negócio, como se pode aferir do Proc. Ordinário ../07.3TBTBU, pendente neste Tribunal, em que é autor o arguido e réus LM e esposa, onde se discute um mutuo não pago.

4- Este recurso que visa exclusivamente o pagamento de verba elevada e injustificada, ataca uma decisão que não merece reparo e se encontra devidamente fundamentada e apoiada na vasta jurisprudência invocada.

5- A sentença em apreço não violou ou aplicou erradamente a lei, mormente as normas dos artigos 180 e 187 do C.P., 74 do CPP e 483 do C. Civil.

6- Nem na participação, nem na acusação da assistente alegou que os factos imputados ao arguido eram inverídicos e muito menos provou a inveracidade de tais factos.

7- Pelo que, faltando um dos elementos constitutivos do tipo de ilícito e na se tendo feito a tal respeito qualquer tipo de prova, outra não podia ser a decisão que não a absolvição do arguido do crime que lhe vinha imputado.

8- O mesmo se dizendo quanto ao Pedido de Indemnização, já que também não foi alegado e muito menos provado qualquer dano em concreto.

9- E, tratando-se de pessoa colectiva tal dano teria a ver com o reflexo negativo da potencialidade de lucro, nado se tendo provado.

Deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a bem fundado decisão recorrida.

Foi apresentada resposta, pelo Mº Pº, que conclui.

1)Atento o teor da lei e ultrapassadas as dúvidas iniciais, sucessivamente esclarecidas pela reforma penal de 1995 e 2007, a tutela penal do “bom nome” das pessoas colectivas está moldada pelo teor do art. 187 do Código Penal, com todas as limitações impostas pelo respeito pelo princípio da legalidade, excluindo-se a aplicação do art. 180 à ofensa de tal bem jurídico;

2)Uma das consequências de tal orientação é a de considerar que a tutela deste bem jurídico, face à protecção conferida ao equivalente das pessoas singulares é bastante mais restritiva, limitando-se à imputação de factos inverídicos e à forma oral da sua transmissão.

3)Tal conclusão é imposta pelo respeito pelo princípio da legalidade, corroborada pela técnica legislativa utilizada no n.º 2 do art. 187, pela sua inserção sistemática e pela análise comparativa dos tipos legais dos arts. 180 e 181 e 365, todos do Código Penal.

4)Inserindo-se o normativo em questão no capítulo dos crimes contra a honra e nele existindo uma norma especialmente destinada a estas "outras" formas de imputação, se nada é dito no próprio art. 187, n.º 1 e da remissão efectuada pelo n.º 2 nenhuma referência é feita ao art. 182 é porque essa foi a intenção do legislador. Se quisesse abranger também a forma escrita de imputação, tê-lo-ia dito expressamente ou utilizaria a fórmula genérica utilizada, por exemplo, no art. 365 do Código Penal.

5)Como tal, não poderia o arguido deixar de ser absolvido pela prática do crime em causa.

6)Tal conclusão, que identificamos como opção do legislador, se é certo que gera espaços de impunidade criminal não deixa de ser uma decorrência do princípio da legalidade e de se adequar à ultima ratio da intervenção do direito penal como reacção do sistema jurídico às condutas que lhe são desconformes, sendo que a lesão dos bens jurídicos que aqui estão em causa, mesmo nos domínios excludentes da referida tutela penal, estão protegidos pelo art. 484 do Código Civil.

7)Quanto à prova dos elementos típicos do crime em apreciação que a Mmª Juiz considerou não alegados nem provados, diga-se, ao contrário do que sustenta a recorrente, que tal prova nunca poderia ser imposta ao arguido, nos termos do lugar paralelo do art. 180, n.º 2, al, b) do Código Penal.

8)Aliás, o cometimento do crime de difamação através da imputação de factos não exige que os mesmos sejam inverídicos, enquanto tal exigência é imposta pela imputação ao abrigo do art. 187 do mesmo Código. Por outro lado, o art. 180, n.º 2, al. b) nada impõe ao arguido, permitindo-lhe apenas, se fizer prova da veracidade dos factos, ficar dispensado de pena.

9)Por outro lado, considerando a recorrente que foi feita prova de tais elementos típicos e que, por isso, a tal deveria a Mmª Juíz ter atendido em sede de sentença, então cabia-lhe invocar nesta sede o respectivo vício formal da sentença, o que não fez.

10) Diga-se, a propósito, e em rigor, que a insuficiência dos factos descritos na acusação para a condenação, como fundamento da absolvição do arguido, configura uma situação de acusação manifestamente infundada, que deveria ter sido rejeitada aquando do saneamento dos autos ao abrigo do art. 311 do Código de Processo Penal.

11) Não tendo sido, a sanação do vício por inclusão de tais factos só poderia ter lugar através de uma alteração substancial dos factos nos termos contemplados no art. 359 do Código de Processo Penal, sendo que, não se tratando de factos autonomizáveis, como resulta evidente, nunca determinaria a instauração de processo autónomo nem seria sequer previsível o necessário acerto de posições ditado pelo art. 359, n.º 3 do mesmo diploma para que o tribunal pudesse tê-los em conta.

12) Não invocando a recorrente, nos termos do art. 379, n.º 2 do Código de Processo Penal, o vício do art. 379, n.º 1, al. c) do mesmo diploma, por omissão de pronúncia sobre factos novos conhecidos no processo que alteram substancialmente a acusação, por não cumprimento do art. 359 do mesmo Código, nada se impõe conhecer a este título.

13) Quanto ao pedido cível formulado pela assistente, embora tenha direito a ser ressarcida dos danos não patrimoniais sofridos, decorrentes da violação do seu direito ao bom-nome, credibilidade, reputação comercial, certo é que para ser arbitrada qualquer indemnização, teriam que se ter provado tais danos, o que não sucedeu, pelo que bem decidiu a Mmª juiz ao julgar o pedido improcedente e absolver, também nesta parte, o arguido.

14) Embora com diferentes fundamentos, entendemos que não foram violados os arts. 180 e 187 do Código Penal, 74 do Código de Processo Penal e 483 do Código Civil.

Deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, no parecer emitido, sustenta a improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.


***

Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto:

2.1.-FACTOS PROVADOS

Discutida a causa deu o Tribunal como provados os seguintes factos:

1. No Tribunal Judicial de Tábua, sob o n.º …/07.0TBTBU, pende o processo de insolvência de B… & Filho, Ldª;

 2. AS … & Filhos, Ldª é credor da insolvente e membro da comissão de credores;

3. A assistente converteu-se entretanto em sociedade anónima;

4. Em 08.04.2008 o arguido juntou aos autos de insolvência referidos em 1.um requerimento subscrito pelo próprio punho;

5. Em tal requerimento, refere-se o arguido a A F como “pseudocredor” e “hipotético credor”, e refere um plano previamente traçado entre o requerente da insolvência, a requerida, e a ora assistente “tendo em vista, além e mais, prejudicar terceiros e desviar todo o património”.

6. Aí referiu ainda “suspeita seriamente o signatário que o crédito do requerente da insolvência alguma vez tenha existido…, o mesmo se dizendo quanto ao crédito de A F que em manifesto conluio e de acordo com um plano pré-determinado, todos aceitam e não põem em causa”;

7. Mais aí referiu que “Todas as situações relatadas, para além de outra, são muito estranhas, e no mínimo, muitíssimo duvidosas, deixando antever uma insolvência fictícia ou fraudulenta, por associação de interesses manifestamente ilegítimos do requerente, requerida e pseudo-credor A F, que poderão passar pelo branqueamento de capitais ou outros.”

8. Com tais exclamações e imputações teve o arguido a intenção de ofender a consideração, bom-nome, crédito, e confiança da assistente, bem como dos seus administradores, o que efectivamente conseguiu;

9. A assistente é uma sociedade que labora no ramo da carpintaria do mobiliário, fazendo obras e vendendo móveis;

10.A sociedade assistente labora há mais de 50 anos e é empresa conceituada em todo o país, onde faz obras e vende móveis;

            11. O requerimento do arguido foi notificado ao administrador de insolvência e a todos os membros da comissão de credores estando igualmente disponível para consultar a todos os credores da insolvente;

12.Também os administradores da insolvente se sentiram ofendidos com as alegações do arguido;

13.Pessoas houve que vieram comentar aos administradores da sociedade ofendida as referidas afirmações;

14.O arguido não conhece nenhum dos accionistas ou administradores da sociedade assistente;

15.O arguido é pessoa honrada séria, digna, honesta e respeitado por todos os que o conhecem e com quem ao longo dos anos trabalhou;

16. O arguido é reformado recebendo uma pensão mensal de €1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros);

17.O arguido vive em casa própria que está paga;

18.O arguido vive com a esposa que é doméstica recebendo esta última uma pensão de reforma de cerca de €200,00 (duzentos euros) mensais;

19.O arguido tem dois filhos que são financeiramente independentes, a quem presta ocasionalmente alguma ajuda económica;

20. A esposa do arguido padece de leucemia crónica em cujo tratamento o agregado familiar despende de cerca de €400,00 (quatrocentos euros) mensais;

21.O arguido cursou o antigo curso comercial até ao 5.º ano (correspondente ao actual 9.º ano de escolaridade);

22. O arguido não tem processos pendentes de natureza criminal;

            23.Em 23.09.2009 o arguido não tinha averbada ao seu registo criminal qualquer condenação;

2.2. – FACTOS NÃO PROVADOS

Discutida a causa, e com relevância para a mesma, não se provaram os seguintes factos:

a) O arguido não conhece a sociedade Abel Fernandes, S.A. ou qualquer outra com semelhante designação;


***

            Conhecendo:

            A recorrente insurge-se:

- contra a qualificação jurídica dos factos, entendendo que os factos provados integram os elementos típicos dos crimes imputados ao arguido, difamação e ofensa a pessoa colectiva.

-Entende deveria ao demandado cível ser condenado.


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Contrariamente ao entendimento da recorrente, entendemos que a sentença fez uma correcta interpretação dos factos no sentido de aplicar o direito.

Por entendermos estar a sentença devidamente fundamentada, no que ao tema do recurso tange, aqui reproduzimos os fundamentos.

“2. 4 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS

O arguido ES  vem acusado particularmente da prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva pública e de um crime de difamação (cfr. arts. 187.º e 180.º do Código Penal, respectivamente), acompanhando o Ministério Público a imputação feita pelo art. 187.º do referido Código.

Antes mesmo de analisar da questão concursal (efectivo/aparente), vejamos cada crime de per se.

a) No que tange ao crime de difamação (art. 180.º do Código Penal):

Nos termos do disposto no artigo 180º, n.º1, do Código Penal, comete um crime de difamação “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a honra.

Nos expressivos dizeres de GARCIA PABLOS[1] “poucos bens jurídicos existem que sejam tão subtis e complexos, tão pluridimensionais e contraditórios como a Honra. Pois tratando-se de um atributo essencial da personalidade, inerente a todo o ser humano, é, ao mesmo tempo, um bem jurídico socialmente condicionado, relativo, circunstancial e versátil.” (tradução nossa)

A honra penalmente relevante “é a honra interior, inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, do núcleo da capacidade de honra do indivíduo é a irrenunciável dignidade pessoal que lhe pertence desde o nascimento (…) Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas.”[2]

Ensina o PROF. BELEZA DOS SANTOS, a propósito, que a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público. [3]

Vejamos os elementos do tipo objectivo de ilícito, que, segundo o Prof. FARIA COSTA[4], se estruturam em dois grandes segmentos.

Um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizada por quem quer que seja, através:

a) da imputação de um facto ofensivo da honra de outrem (entendendo-se o “facto” como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como juízo de existência);

b) da formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa (entendendo-se o “juízo”, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor); ou

c) da reprodução daquela imputação ou juízo.

Note-se que a proposição “mesmo sob a forma de suspeita”, ligada a todos os referidos elementos do tipo não é um verdadeiro e próprio elemento do tipo, mas antes um alargamento modal à imputação dos factos ou juízos desonrosos. Isto é: a imputação de factos ou a formulação de juízos desonrosos podem ser inequívocas ou podem estar cobertas pelo manto perverso e acutilante da suspeita.

O outro segmento prende-se com o rodeio ou enviesamento, que exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros – critério que serve para estabelecer a diferenciação essencial entre a difamação e a injúria, tipo legal de crime previsto no artigo 181º do Código Penal que se preenche se a imputação for levada a cabo de forma directa.

O crime de difamação tem natureza dolosa, o que significa que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo por isso a imputação baseada em qualquer das modalidades de dolo definidas no artigo 14º do Código Penal.

De todo o modo, sempre se dirá que basta o dolo genérico para afirmar o tipo legal de crime em apreço. Como refere MAIA GONÇALVES[5], neste tipo de crimes contra a honra bastará o dolo genérico, em qualquer das suas formas, de directo, necessário ou eventual para integrar o elemento subjectivo da infracção. Não é, portanto exigível qualquer dolo específico (…) será tão-somente necessário que o agente quisesse com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias, ou previsse essa ofensa de modo a que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, nada mais. OLIVEIRA MENDES[6] vai mesmo mais longe quando afirma que por [estar] em causa [um] [crime] de perigo, (…) não é necessário que o agente, com o seu comportamento, queira ofender a honra ou a consideração alheias, nem mesmo que se haja conformado com esse resultado, ou sequer que haja previsto o perigo, bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos [na] [norma] [incriminatória][7]. Por sua vez, dentro do mesmo timbre, referem SIMAS SANTOS E LEAL-HENRIQUES[8], que no tipo de ilícito em questão já não é exigível que haja a especial intenção, o propósito de ofender, sendo bastante a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém”.

O dolo, entendido como elemento subjectivo geral, deve referir-se a todos os elementos objectivos do tipo de ilícito correspondente, assegurando a congruência tipo objectivo – tipo subjectivo.

Consubstancia-se, assim, o dolo na consciência do agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração do visado tal como a reprodução da imputação ou do juízo e na vontade de imputar o facto ou formular o juízo, ou de reproduzir a imputação ou juízo, sabendo que a sua conduta é proibida por lei.

Cumpre ainda assinalar que a difamação não é punível se se verificarem, cumulativamente, as condições previstas nas alíneas a) e b) do n.º2 do artigo 180º, atento o preceituado nos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo – nesse caso, estaremos perante uma verdadeira causa de justificação.

Trilhados os elementos do tipo legal de crime em análise, importa antes de mais tomar posição quanto à premissa em causa nos presentes autos: poderá a pessoa colectiva ser sujeito passivo de um crime de difamação?

A dúvida é já antiga e divide doutrina e jurisprudência.

É certo que houve já jurisprudência fixada no sentido afirmativo.

Nesse sentido, veja-se o já o longínquo Assento 1/1960 de 24 de Fevereiro de 1960 (Proc 030057, em www.dgsi.pt) que lapidarmente afirma “As pessoas colectivas podem ser sujeito passivo nos crimes de difamação e de injuria”, seguido depois quer por doutrina quer pela Jurisprudência durante algum tempo.

Contudo, tal Assento não teve em conta (porque não podia ter) o então ainda inexistente art. 187.º do Código Penal, o que é uma alteração a atender no caso concreto.

A honra das pessoas colectivas não é honra em sentido restrito aplicável às pessoas singulares mas antes o crédito, o prestígio, a confiança depositada na pessoa colectiva.

Efectivamente, quando não existia no ordenamento jurídico-penal o art. 187.º do Código Penal, estando-se perante pessoa colectiva, para imputar crime contra a honra havia que interpretar a “honra” relativamente ao art.180.º do Código Penal como “credibilidade, prestígio, confiança”, no fundo, o seu bom nome comercial.

Contudo, hoje não há margens para dúvidas de que se criou um novo tipo legal de crime no art. 187.º do Código Penal onde se quis proteger autonomamente o bom-nome das pessoas colectivas -neste sentido veja-se o recente Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2008 (Proc. 24/07.7TAAVR.C1 disponível em www.dgsi.pt ) ao referir que “Com a nova redacção dada pelo legislador ao artigo 187.º, provinda da 23.º alteração ao Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ficou definitivamente arredada qualquer dúvida quanto ao fim visado pela norma: proteger o bom-nome de organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, e bem assim de pessoa colectiva, instituição ou corporação (…).”

Assim, estando tal bem jurídico do bom-nome da pessoa colectiva (enquanto credibilidade, prestígio e confiança) protegido na incriminação do art. 187.º não vemos o que sobrará para o art. 180.º (sendo que não podemos aqui estar a referir-nos à honra das pessoas singulares administradores das pessoas colectivas).

Cremos pois, que o legislador quis proteger a pessoa colectiva no art. 187.º do Código Penal de modo completo, já que, salvo melhor opinião, não se perceberia porque é que estando a legislar a posteriori sobre tal questão, ainda assim, continuasse a deixar de fora situações que seriam enquadráveis no art. 180.º do mesmo Código (entendemos que o ficou de fora, designadamente os juízos de valor, foi uma opção legislativa, desde logo porque se bem se pensar os juízos se dirigirão mais às pessoas singulares que administram a pessoa colectiva do que à pessoa colectiva).

Na senda de tal alteração legislativa a Jurisprudência vem paulatinamente revendo a sua anterior posição.

Veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 02.10.2002, Proc. 0141459, onde se refere “I-Os artigos 180 e 181 do Código Penal, tutelam penalmente o direito à honra e consideração. A doutrina dominante adopta uma concepção dual da "honra", vendo-a como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. II -Com a revisão do Código Penal de 1995, o legislador criou uma particular incriminação, que visa proteger as pessoas colectivas, introduzindo um novo tipo legal de crime no artigo 187. III -

As pessoas colectivas não podem ser sujeito passivo do crime de difamação, após a introdução do citado artigo 187, já que a tutela penal do bom nome ou reputação das pessoas colectivas é esgotantemente realizada pelo dito artigo 187.”

De modo ainda mais esclarecedor, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 06.12.2006 (Proc. 0643716) “A polémica sobre a possibilidade de as sociedades serem objecto e destinatárias de crime de difamação é antiga; e parece-nos que, mesmo com a introdução do Art. 187º no actual Código Penal, a dúvida não ficou definitivamente esclarecida. Em arestos recentes, os Tribunais superiores têm decidido no sentido negativo, pese embora a jurisprudência abundante do nosso Supremo Tribunal, que considerou – mesmo antes da revisão do Código Penal – serem as sociedades alvo de crimes de difamação: vejam-se, nessa perspectiva, os acórdãos de 1.7.2004 (processo nº 0343089) e de 3.1.2006 (processo nº 0545282), in http://www.dgsi.pt.Contudo, o problema e a querela jurisprudencial deixarão de ter razão de ser quanto ao primeiro ponto, se entendermos, como entendemos, que a "honra" da pessoa jurídica tem contornos e elementos diversos da honra das pessoas singulares: a pessoa jurídica, v.g. uma sociedade, goza de credibilidade, prestígio, confiança, sendo essa a sua "honra" em sentido jurídico, elementos exactamente previstos e ponderados no recente Art. 187º do Código Penal. Isto é: a introdução, na nossa lei penal, daquele Art. 187º teve por móbil e como escopo o fim da referida querela, considerando finalmente que as pessoas jurídicas podem, com efeito, ser vítimas de crimes de difamação, quando são violados os respectivos bens jurídicos ali representados: oncretamente, a sua credibilidade, o seu prestígio, a confiança que merecem dos cidadãos. E assim, um atentado ao bom nome de uma pessoa jurídica nunca irá ser punido pelo Art. 180º, reservado apenas às pessoas singulares, mas tão-só pelo citado Art. 187º, com as agravações ali previstas do Art. 183º, maxime o seu nº 2. E nem a inclusão de tal preceito no Capítulo relativo aos Crimes contra a Honra (Capítulo VI) impede este entendimento, pois que este será, definitivamente, o local adequado para a sistematização de tal ilícito penal.”

Estes pois os motivos, como se vê mais jurídicos do que fácticos, para não se aceitar o crime de difamação por referência a pessoa colectiva, e nessa medida, não ser de imputar o mesmo ao arguido.[9]

Vejamos pois a imputação ao nível do art. 187.º do Código Penal.

b) No que tange ao crime de ofensa a pessoa colectiva pública (art. 187.º do Código Penal):

Dispõe o dito artigo 187.º do Código Penal, na redacção dada pelo D.L. n.º 59/2007 de 04-09 que “1 -Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa

até 240 dias. 2 -É correspondentemente aplicável o disposto: a) No artigo 183.º; e b) Nos n.os 1 e 2 do artigo 186.º”

São, pois, elementos do tipo objectivo de ilícito: a) a afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço; c) não tendo o agente fundamento para, em boa fé, reputar tais factos de verdadeiros.

O primeiro elemento objectivo do tipo de crime de ofensa a pessoa colectiva, organismos ou serviço é a afirmação ou propalação de factos inverídicos.

Ao invés do que sucede nos crimes de difamação e de injúria – em que o tipo legal abrange não só a imputação de factos, mas também a formulação de juízos ofensivos da honra ou consideração – o crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, apenas contempla a afirmação ou prolação de factos inverídicos.

Conforme elucida FARIA COSTA “Utilizando uma linguagem analítica poder-se-á dizer que a noção de facto se traduz naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (…) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjuntos de acções (com unidade) que se protelam no tempo. De forma simples: um facto é um juízo de existência ou de realidade.[10]”.

Pelo contrário, o juízo “deve ser percebido, neste contexto, não como a apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor.

O que é o mesmo que dizer: deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorado em função do fim prosseguido (a verdade, a beleza, a moral, a justiça, etc.).[11]

Nos crimes de difamação e injúria o legislador optou por equiparar a imputação desonrosa de um facto e a formulação de um juízo desonroso. Porém, tal equiparação já não foi feita no crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço. Por outro lado, tem que se tratar de factos inverídicos.

O segundo elemento que a lei exige é que se esteja perante factos idóneos – que tenham capacidade para – ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança. Esta idoneidade ou capacidade para ofender a credibilidade, prestígio ou confiança deve ser aferida tendo em conta “a compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática”.

Segundo FARIA COSTA uma instituição é credível quando “pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial”, tem prestígio quando, “pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve” e é digna de confiança “quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar”.[12]

No artigo 187º, nº 1 do Código Penal o bem jurídico protegido “não é a honra, enquanto interesse essencialmente intrínseco e inerente à dignidade da pessoa, mas antes a credibilidade” (cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 04.07.2005, www.dgsi.pt) dos entes aí previstos.

Em terceiro lugar, é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar de verdadeiros.

Não é necessário, para que se verifique preenchido este elemento típico, que o agente tenha conhecimento do carácter não verídico dos factos; basta que não tenha fundamento para em boa fé os reputar de verdadeiros.

Na anterior redacção da norma discutia-se se era ainda elemento objectivo do tipo legal de crime que as entidades referidas no tipo legal exerçam autoridade pública.[13]

Dizia a este propósito FARIA COSTA “o exercício da autoridade pública é um elemento condicionante para todas as entidades que o tipo descreve. Pois, na nossa perspectiva, só aquele elemento é que se pode considerar capaz de dar sentido a uma incriminação desta natureza. Proteger – proteger penalmente – a credibilidade, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva quando ela não exerça autoridade pública e quando se sabe que essa mesma pessoa colectiva pode ser vítima de uma difamação ou injúria seria um alargamento a todos os títulos injustificável e insustentável. Pensar-se assim e ajuizar-se dessa forma seria dar maior protecção à pessoa colectiva do que à própria pessoa individual. Na verdade, nessa óptica que rejeitamos e que o próprio texto-norma inequivocamente também afasta, a pessoa física, o homem concreto na sua inderrogável unidade de sentido ético veria protegida a honra, mas não veria, expressamente, defendida a sua credibilidade, o seu prestígio ou a confiança que os outros nele depositam.”[14]

Ora, “se é certo que a concessão, a toda e qualquer pessoa colectiva, da protecção derivada do art.º 187.º a beneficiaria em relação às pessoas singulares, desprovidas da protecção a interesses que, limitando-se à credibilidade, prestígio e confiança, não integram a sua honra e consideração – o que constituiria desigualdade não fundada na diferença relevante e, por isso, ofensiva do art.º 13.º da Constituição –, já parece haver fundamento para essa desigualdade se ela for estabelecida em favor de entidades que exerçam autoridade pública” – Cfr. Ac. Relação de Coimbra de 12.01.2000, tomo I, pag. 47.

No sentido de que neste tipo legal apenas se incluíam as entidades aí descritas que exerçam uma autoridade pública cfr os Acórdãos da Relação do Porto de 02.10.2002 (Proc. n.º 0141459), e de 07.01.2004 (proc. n.º 0343089), da Relação de Guimarães de 04.07.2005 (proc. n.º 1026/05-2), da Relação de Lisboa de 26.01.2005 (proc. n.º 10236/2004-3) em www.dgsi.pt.

Contudo, esta posição jurisprudencial assente sobre a doutrina de FARIA COSTA não era ainda assim unânime.

Com efeito, mesmo na redacção da norma anterior a 2007, já outros entendiam que o requisito da autoridade pública não era exigível erigindo os alicerces de tal entendimento num argumento de relevo: o de que o art. 188.º, n.º1 al. b) do Código Penal ficaria destituído de sentido se se optasse pela interpretação segundo a qual o art. 187.º apenas protege pessoas colectiva com autoridade pública.

Diz-se em Acórdão da Relação do Porto de 06.12.2006 (Proc. 0643716) que “Em resumo dir-se-á que, quando se trata de pessoa colectiva que não exerça autoridade pública, o procedimento criminal depende de acusação particular; quando exerce essa autoridade, o procedimento criminal dependerá de queixa. Esta norma ficará sem conteúdo, se se considerar que só as pessoas colectivas que exercem essa autoridade podem ser objecto desse tipo de crime e só esta interpretação garante alguma utilidade, validade e perenidade da norma referida, sob pena de se tornar anódina e inócua. E tal interpretação surge na sequência, quer da discussão em sede de comissão revisora (veja-se a acta da 45ª sessão da Comissão Revisora do Código Penal, de 11 de Dezembro de 1990), quer da jurisprudência do STJ.” .

Em suma, enquanto uns entendiam que o exercício da autoridade pública era um elemento condicionante para todas as entidades que o tipo descreve [15] , outros entendem que sujeito passivo deste tipo de crime não tem necessariamente que exercer autoridade pública, invocando a letra do art. 188.º, n.º 1, al. b) do CP, norma de cuja redacção se pode extrair que o ofendido com este tipo de crime pode não exercer autoridade pública [16] .

Contudo, independentemente da posição que se adoptasse anteriormente, em nossa opinião, não se poderá hoje deixar de atender à nova redacção dada pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro.

De acordo com o art. 187.º, n.º 1 do CP, na redacção introduzida por aquela lei, parece resultar mais claro que o exercício de autoridade pública apenas é requisito do tipo quanto aos organismos e serviços, podendo qualquer pessoa colectiva ser sujeito passivo deste crime.

Neste sentido veja-se o recente Acórdão da Relação e Coimbra de 12.03.2008 (Proc. 24/07.7TAAVR.C1 disponível em www.dgsi.pt ) ao referir que “Com a nova redacção dada pelo legislador ao artigo 187.º, provinda da 23.º alteração ao Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ficou definitivamente arredada qualquer dúvida quanto ao fim visado pela norma: proteger o bom-nome de organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, e bem assim de pessoa colectiva, instituição ou corporação, ainda que não exerçam poderes de imperium. E ainda que a Nova Lei, que temos como interpretativa, tenha de ser tratada como lei nova -estando sujeita ao regime da sucessão de leis penais, com a consequente proibição de aplicação (retroactiva) aos factos praticados antes da sua entrada em vigor, quando desfavoráveis ao arguido Taipa de Carvalho, “Sucessão de Leis Penais”, 2.ª edição revista, 1997, pág. 328. -, não deixa de ser representativa do pensamento do legislador na elaboração da Lei Antiga. Em síntese conclusiva: o tipo de crime introduzido no Código Penal pela revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, para além do organismo ou serviço que exerça autoridade pública, tutela todas as pessoas colectivas, instituições ou corporações, independentemente de exercerem ou não autoridade pública.”

Assim, uma interpretação que não deixe sem conteúdo o art. 188.º n.º 1, al. b) do CP e que atenda à recente alteração legislativa do art. 187.º leva-nos a considerar que qualquer pessoa colectiva, instituição ou corporação podem ser sujeitos passivos do crime previsto no art. 187.º do CP.

Por outro lado, importa ainda sublinhar que, nos termos do art. 187.º, n.º2 do Código Penal são aplicáveis o art. 183.º do Código Penal (publicidade e calúnia) e o disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código (dispensa de pena).

Aqui impõe-se outra consideração com relevo para o caso: é que, o art. 187.º, n.º2 do Código Penal não remete para o art. 182.º do mesmo Código (imputação por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão). Mas, em nosso modesto entender, não o diz porque não é preciso dizê-lo. É que o art. 180.º e 181.º do Código Penal são tipos previstos na base da oralidade das afirmações (o que está precisamente relacionado com o facto de se tratarem de sujeitos activos e passivos enquanto pessoas físicas e daí que se diga “dirigindo-se a terceiro” ou “dirigindo-lhe palavras”) e daí necessitar da extensão do art. 182.º do Código Penal. Já nas pessoas colectivas o art. 187.º, n.º1 diz-se “afirmar ou propalar” afigurando-se-nos que o tipo legal de crime abrange as ofensas quer verbais quer escritas no próprio n.º 1 do artigo e daí que o n.º 2 não faça qualquer remissão (estando assim respeitado o princípio da legalidade nos seus vários corolários). Mal se entenderia que assim não fosse já que tal resultaria numa impunidade sistemática da ofensa à pessoa colectiva (já que o modo escrito será o modo mais vulgar de ofensa à pessoa colectiva).

Acrescerá ainda o elemento subjectivo, sendo que o crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço tem de ser realizado dolosamente, podendo o dolo revestir qualquer das formas previstas no art.º 14.º do Código Penal.

Afirmemos desde já a conclusão para depois analisarmos as premissas: o arguido não pode, a nosso ver, ser condenado pelo presente tipo legal de crime. Senão vejamos.

Conforme referimos, o primeiro dos elementos é que sejam afirmados factos e que os mesmos sejam inverídicos.

Quanto a este primeiro requisito do tipo legal de crime, no caso concreto, importa referir que em 08.04.2008 o arguido juntou aos autos de insolvência referidos um requerimento subscrito pelo próprio punho no qual designou a assistente de “pseudocredor” ou de “hipotético credor”, falando de um plano previamente traçado entre o requerente da insolvência, a requerida, e a ora assistente “tendo em vista, além e mais, prejudicar terceiros e desviar todo o património”. Refere ainda nesse requerimento que “suspeita seriamente o signatário que o crédito do requerente da insolvência alguma vez tenha existido…, o mesmo se dizendo quanto ao crédito de Abel Fernandes quem em manifesto conluio e de acordo com um plano pré-determinado, todos aceitam e não põem em causa”;

Mais aí referiu que “Todas as situações relatadas, para além de outra, são muito estranhas, e no mínimo, muitíssimo duvidosas, deixando antever uma insolvência fictícia ou fraudulenta, por associação de interesses manifestamente ilegítimos do requerente, requerida e pseudo-credor Abel Fernandes, que poderão passar pelo branqueamento de capitais ou outros.

Dizer desde logo que nem todas as expressões vindas de enunciar e constantes dos factos provados se reconduzem a factos. Com efeito, serão factos o afirmar que o crédito da assistente não existia e que era fruto de um plano que visa prejudicar terceiros. Já serão juízos de valor o falar de insolvência fraudulenta ou de associação de interesses ilegítimos ou até adjectivar de “pseudo-credora”.

De todo o modo existem factos pelo que deste ponto de vista nenhum óbice há à imputação.

Mas tais factos, nos termos da lei, têm de ser inverídicos.

Cabia pois à acusação alegar e provar a inveracidade dos factos alegados.

Ora se analisarmos minuciosamente a acusação particular e seu acompanhamento, em nenhum momento se alega que as expressões em causa são inverídicas. Apenas se diz que o arguido juntou o requerimento ao processo de insolvência contendo as expressões aludidas, e que, em virtude disso, a pessoa colectiva foi ofendida no seu bom-nome (alegando-se ainda que os administradores da mesma também mas os mesmos não são os ofendidos dos autos enquanto pessoas singulares), o que o arguido quis e conseguiu fazer.

 Poder-se-á dizer que tal ideia está implícita. Contudo, não se nos afigura poder condenar o arguido com base em elementos implícitos da acusação. Os elementos do tipo legal do crime deveriam estar alegados na acusação, coisa que não sucede quanto à inveracidade das expressões.

Caindo o primeiro elemento do tipo legal de crime em apreço, desnecessário subsumir os factos aos demais, impondo-se assim a absolvição do arguido por este tipo legal de crime.


***

            A primeira questão suscitada respeita a saber se as pessoas colectivas podem ser, em simultâneo, sujeitos passivos de crime de difamação ou injuria a par do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva.

            A questão foi perfeitamente elucidada na sentença sob recurso, havendo divergência de opiniões, mas vingando a nível jurisprudencial a tese de que após a revisão do CP de 1995 e com os esclarecimentos da revisão de 2007, a “honra”, prestígio e confiança das pessoas colectivas são protegidas pelo disposto no art. 187 do CP, respeitando os arts. 180 e 181 às pessoas singulares, pessoas físicas. Isto apesar de anteriormente a 1995 se entender que as pessoas colectivas podiam ser (alvos) sujeitos passivos de difamação ou injuria. Nomeadamente a partir do Assento do STJ de 24-02-1960.

A honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal e interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior – Faria Costa Comentário Conimbricence, Tomo I-607.

Consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constitui a dignidade objectiva, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública –Cfr. Ac. da R. Lx de 06-02-1996, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 156.

            Porque se vinha entendendo que a “honra e consideração” são atributos das pessoas singulares, por serem valores eminentemente pessoais e ligados à condição humana, mas porque também havia necessidade de proteger as pessoas colectivas no seu prestígio, a revisão penal de 1995 veio introduzir o art. 187. O legislador autonomizou a protecção dos valores inerentes à pessoa colectiva -credibilidade, prestígio e confiança-  e reservou para as pessoas singulares, pessoa humana a previsão dos arts. 180 e 181, onde se consagram e protegem os valores tradicionais da honra e da consideração social que lhes são devidos. Neste sentido, Ac. da R. Porto de 15-10-2007 in Col. Jurisp. tomo IV, pág. 227.

            Neste aresto se refere, “de facto a pessoa humana tem uma essência e uma grandeza únicas, é figura central da modernidade civilizacional, e como tal, agrega em torno de si valores que merecem um tratamento exclusivo e singular que a destacam em relação à protecção também merecida por entidades de natureza distinta”.

Defensores desta tese são os Cons. Leal Henriques e Simas Santos que no seu Código Penal defendem que a honra e a consideração são requisitos exclusivos das pessoas singulares, sendo que às pessoas jurídicas apenas se adequam outras realidades, tais como, o crédito e a confiança, razão porque é inaceitável a tese de que a pessoa jurídica pode, sob o ponto de vista jurídico-penal, ser ofendida na sua “honra”. Que a distinção entre pessoa física e pessoa colectiva apenas se faz para fins patrimoniais e económicos, e que as ofensas dirigidas a um ente colectivo são, na realidade, dirigidas às pessoas físicas que o compõem, dirigem ou administram, assim sufragando o entendimento de Nelson Hungria (Comentário ao Código Penal Brasileiro VI, 44ª 46).

Esta é a tese que seguimos, sabendo que é discutível e controversa, tendo entendimento contrário o Prof. Figueiredo Dias expresso nas actas de revisão do CP, Maia Gonçalves no seu Código Penal anotado e comentado, Cons. O. Mendes in “O Direito À Honra E A Sua Tutela Penal” onde refere, a pág. 115 que se conclui que “as pessoas jurídicas podem ser sujeito passivo não só do tipo legal do crime do art. 187, mas também do crime de difamação do art. 180”.

Assim que se entenda como bem decidido na sentença ao absolver o arguido do imputado crime de difamação.

A segunda questão respeita ao preenchimento, ou não dos elementos do tipo de crime do art. 187 do CP.

Entendeu-se na sentença recorrida que faltava ter ficado provado, desde logo, um dos elementos objectivos do tipo – a inveracidade dos factos imputados.

Entende a recorrente que “se se provou que a assistente labora há mais de 50 anos e é empresa conceituada em todo o país e que o arguido conseguiu ofender o bom-nome, crédito e confiança da assistente (factos 8 a 10), aliás conforme foi alegado na acusação, tal basta para dizer que expressões como" pseudo credor", "manifesto conluio", "crédito que alguma vez tenha existido", "branqueamento de capitais" não são verídicos”.

             Mas não tem razão a recorrente.

É necessário ficar provado que o agente sabia que propalava ou proferia afirmações que sabia serem inverídicas.

A recorrente podia ter sido ofendida na sua credibilidade, prestígio e confiança, com factos verídicos.

Os factos propalados têm de ser capazes de ofender e serem inverídicos.

Como salienta o Cons. O. Mendes, in ob. Cit. Pág. 115, referindo-se ao art. 187, diz, “de fora fica pois a afirmação ou propalação de factos verídicos, susceptíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança”.

Daí a necessidade de ficar provada a inveracidade dos factos.

Acrescendo, como é referido nesta obra, pág. 116 que, “não basta afirmar ou propalar factos inverídicos. Conquanto se não exija o conhecimento da inveracidade da imputação, o qual a existir agravará o crime –arts. 187, nº 2 e 183, nº 1 al. a) -, impõe-se no entanto que o agente actue sem fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira, isto é, que não tenha razões sérias para aceitar o facto ou factos imputados como verdadeiros”.

Também a acusação deveria fazer prova, haver factos provados da inexistência de boa fé por parte do agente.

Assim que se entenda não estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime do art. 187 do CP.

Refere a recorrente que atribuir-lhe “o ónus da prova de um facto negativo vai contra as regras da repartição do ónus da prova” e, “que é ao agente que incumbe a prova da verdade da imputação”, socorrendo-se do art. 182, nº 2 al. b) do CP.

Mas sem razão. A inveracidade dos factos propalados, assim como a ausência da boa fé, são elementos constitutivos do crime e cuja prova compete a quem acusa.

Refere o Cons. O. Mendes na ob. Cit. Pág. 116, que “é evidente que não cabe aqui ao agente fazer prova da existência da «boa fé», uma vez que a inexistência desta é elemento constitutivo do crime”.

Pelo que também neste segmento improcedem as conclusões e o recurso.

Pedido Cível:

Entende a recorrente que deveria haver condenação no pedido cível, já que ficou provada a ofensa ao seu bom nome, crédito e consideração.

Na sentença recorrida entende-se não haver fundamento, justificando-se esse entendimento, nos termos que se seguem.

2.5 – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

Nos termos do artigo 129° do Código Penal "a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela Lei Civil".

Impõe-se o recurso, antes de mais, ao que está disposto no artigo 483° do Código Civil.

De tal preceito decorre que o instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exige que estejam preenchidos os seguintes pressupostos: facto voluntário; ilicitude; nexo de imputação de facto ao agente; dano; e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Ora, o arguido foi absolvido em sede penal.

Por tal razão, não podemos deixar de atentar no disposto no art. 377.º do Código de Processo Penal que refere que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (...).”

O legislador ao permitir a dedução do pedido de indemnização cível no processo penal parece ter restringido o mesmo apenas à verificação de responsabilidade por factos ilícitos, deixando de fora a responsabilidade contratual.

De facto, o artigo 129º do Código Penal, já referido, remete somente para o artigo 483º do Código Civil, artigo este que estabelece os pressupostos gerais da responsabilidade civil por factos ilícitos, responsabilidade que emerge da violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos.

Ademais, não obstante o artigo 377º, n.º1 do C.P.C., estabelecer um princípio de autonomia entre a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal, não impedindo que o Tribunal, em caso de absolvição da responsabilidade criminal, conheça da responsabilidade civil, o certo é que esta última tem de ter a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal.

Tal questão ficou, de resto, definitivamente decidida no Acordão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 7 /99, tendo sido fixada a seguinte jurisprudência: “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, n.º1 do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se basear em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”

Ora, importa referir que o pedido em causa se baseia em responsabilidade extra-contratual pelo que, salvo melhor opinião, não há por princípio um óbice há à procedência do mesmo, assim estejam verificados os requisitos da responsabilidade extracontratual.

Vejamos desde logo o requisito da ilicitude.

Estará em causa a honra da pessoa colectiva enquanto credibilidade, prestígio, confiança (bom-nome).

É indiscutível que as pessoas colectivas tem direito ao bom-nome e reputação (art. 25.º, n.º1 e 26.º, n.º1 do Código Civil) tanto assim que as mesmas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza (art. 12.º, n.º2 do Código Civil). Se dúvidas existissem refere a um tal propósito RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA[17] que “...por força do art. 160, nº 1, do Código Civil ou por efeito de disposição legal específica, há seguramente que reconhecer às pessoas colectivas, porquanto, v.g., titulares de valores e motivações pessoais, alguns dos direitos especiais de personalidade que se ajustam à particular natureza e às específicas características de cada uma dessas pessoas jurídicas, ao seu círculo de actividades, às suas relações e aos seus interesses dignos de tutela jurídica”, nestes se incluindo o direito ao bom nome e o crédito das pessoas colectivas, que são objecto de direitos juscivilísticos” .

Estatui o art.º 484, do C. Civil, que quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudica o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa singular ou colectiva, responde pelos danos causados”, artigo este que é uma concretização dos artigos 26º, nº 1, da Constituição, 70º, nº 1 e 72º, nº 1, do Código Civil.

É certo que tal pode colidir com o direito à liberdade de expressão mas, se assim é importará fazer operar a concordância prática, optimizando cada um dos mesmos. Conforme se consignou em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.09.2007, disponível em www.dgsi.pt “ O conflito entre o direito ao bom-nome e reputação com o direito de liberdade de expressão soluciona-se optimizando a eficácia de cada um deles através da distribuição proporcional dos custos desse conflito sem que, porém, se atinja o conteúdo essencial de cada um”.

Importa referir que em sede civilista se admite qualquer forma de ofensa à honra, sendo certo que não afasta a ilicitude o facto de os factos serem ou não verdadeiros. Aliás, justamente em relação ao artigo em apreço, o refere MENEZES CORDEIRO afirmando que “É indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom-nome e a reputação de uma pessoa”[18].

Ora, nos termos dados como provados no caso concreto, importa referir que o arguido afirmou que a sociedade demandante era uma hipotética credora, que existia um plano previamente traçado para prejudicar terceiros, afirmando mesmo que “Todas as situações relatadas, para além de outra, são muito estranhas, e no mínimo, muitíssimo duvidosas, deixando antever uma insolvência fictícia ou fraudulenta, por associação de interesses manifestamente ilegítimos do requerente, requerida e pseudo-credor Abel Fernandes, que poderão passar pelo branqueamento de capitais ou outros.”

As expressões utilizadas, independentemente de se não ter apurado se são verdadeiras ou não, quanto a nós, vão além do que a liberdade de expressão deve permitir. Com efeito, uma coisa era o demandado ter descrito factos concretos do que tivesse porventura sido acordado contra si, coisa diferente é imputar de modo genérico associações de interesses para branqueamentos de capitais com planos predeterminados para lesar terceiros.

Tais imputações, de modo objectivo, ofendem a credibilidade, o prestígio e o bom-nome de uma pessoa colectiva.

Para que se afirme a responsabilidade civil extracontratual necessário se torna ainda que o demandado haja agido com culpa. Nos termos do art.º 487, n.º2, do C. Civil, na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

O critério legal da apreciação da culpa é pois abstracto, uma vez que a sua avaliação é feita tendo em conta as concretas circunstâncias subjacentes à situação em causa, por referência a uma pessoa normal.

Ora, não podemos deixar de afirmar que o demandado agiu com culpa, in casu, dolo, uma vez que se impunha que o mesmo medisse as repercussões do que escrevia (tanto mais que ao escrever se tem mais tempo, e, nessa medida, maior possibilidade de ponderação quanto ao que se consigna). O arguido quis efectivamente escrever o que escreveu e ofender a demandante no seu bom-nome comercial.

Aqui chegados impõe-se aferir se existe o requisito do dano.

No pedido de indemnização civil deduzido nos autos vinham apenas peticionados danos não patrimoniais.

De resto, nenhum dano patrimonial concreto foi alegado/provado, apenas se tendo alegado/provado que com tais exclamações e imputações teve o arguido a intenção e ofender a consideração, bom-nome, crédito, e confiança da assistente, bem como dos seus administradores, o que efectivamente conseguiu.

Mais se deu como provado que também os administradores da demandante se sentiram ofendidos com as ofensivas alegações do requerido e que pessoas houve que vieram comentar aos administradores as referidas afirmações.

No que se refere aos administradores da demandante se sentirem ofendidos, não é tal facto aqui autonomizável já que os mesmos não têm a veste de demandantes processuais enquanto pessoas singular.

Resta pois saber se são indemnizáveis danos não patrimonais de pessoas colectivas…

Por ser ilustrativo da resposta a tal questão, veja-se o que refere o Acórdão da Relação de Lisboa de 23.09.2007 (Proc 8509/2006-7, disponível em www.dgsi.pt ) aí se referindo, precisamente num caso em que estava em causa o bom-nome que “ Na apelação os Réus sustentam a inexistência de obrigação de indemnizar as Autoras invocando a insusceptibilidade das pessoas colectivas sofrerem dores morais. Defendem, pois, que a violação de um direito afecto à personalidade jurídica da sociedade, como é o caso do direito ao bom-nome e à imagem, apenas será indemnizável se da lesão resultar um reflexo negativo na sua potencialidade de lucro. Entendemos merecer acolhimento o posicionamento defendido pelos Réus o qual, aliás, se sustenta em consistente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Na sequência do que foi decidido no acórdão doSTJ de 27.11.2003 (processo 03B3692, acessível através das Bases Documentais do ITIJ), os danos morais decorrentes da ofensa do bom nome e reputação apenas assumem cabimento nas pessoas físicas para as quais a dimensão ética não só se mostra importante, como é inerente à sua condição humana já que tem a ver com aspectos psíquicos e emocionais inconcebíveis na configuração da estrutura da pessoa jurídica. No que se refere às sociedades comerciais, uma vez que a sua natureza impõe, por inerência, o lucro como objectivo da sua actividade, a ofensa ao seu bom nome e imagem só será relevante para efeitos de ressarcimento se da mesma resultar um dano patrimonial indirecto, ou seja, se dela redundar no que tem vindo a ser identificado pela jurisprudência como o reflexo negativo em termos de potencialidade de lucro.”

Ora, no caso concreto, efectivamente nenhum dano patrimonial vem autonomizado, nem se alegou/provou que o lucro da sociedade houvesse sofrido diminuições em virtude (causalidade) da ofensa ao bom-nome em causa.

Caindo por terra o requisito do dano, não poderá emergir a responsabilidade civil extracontratual e a inerente obrigação de indemnização, pelo que seria também aqui inócua a análise dos demais requisitos e da adequação do seu montante.

Assim, cumpre julgar improcedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos.

Ficou provado o que o arguido escreveu pelo seu punho em requerimento apresentado em processo judicial, factos 3 a 7 dos provados.

Ficou provado que o arguido teve intenção de ofender a consideração, bom nome, crédito e confiança da assistente, o que efectivamente conseguiu, conforme ponto 8 dos provados.

Houve pessoas que vieram comentar aos administradores da assistente as referidas afirmações, conforme ponto 13 dos provados.

A sentença recorrida reconhece  ser “indiscutível que as pessoas colectivas têm direito ao bom nome e reputação (art. 25, e 26 nº 1 do Código Civil)”.

Nos termos do art. 484 do CC, quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa singular ou colectiva, responde pelos danos causados.

No caso concreto, a actuação do arguido nada tem a ver com “liberdade de expressão”, sendo mera ofensa e mesmo que verdadeira, não afasta, necessariamente, a ilicitude. Citando o Prof. Menezes Cordeiro refere a sentença que “é indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom nome e reputação de uma pessoa”.

E reconhece, “as expressões utilizadas, independentemente de se não ter apurado se são verdadeiras ou não, quanto a nós, vão além do que a liberdade de expressão deve permitir” e, “tais imputações, de modo objectivo, ofendem a credibilidade, o prestígio e o bom nome de uma pessoa colectiva”.

O art. 487 do  nº 2 do CC exige que o agente tenha actuado com culpa, e no caso presente verifica-se, o demandado agiu com dolo, o demandado quis escrever o que escreveu e ofender o bom nome da demandante, como resulta dos factos provados..

Danos patrimoniais não foram alegados, vindo apenas peticionados danos não patrimoniais, no montante de 15.000,00€ e juros desde a notificação do pedido cível.

E, não vislumbramos fundamento nenhum para que se considere que as pessoas colectivas não são passíveis de sofrerem danos morais. Se até podem ser sujeitos passivos de um crime, porque não se hão-de repercutir as ofensas em danos morais?

Ao ofender-se uma sociedade no seu bom nome, crédito e confiança, necessariamente se lhe causa dano.

Aquela interpretação estaria correcta, no entendimento antigo de que as pessoas colectivas não seriam sujeitos passivos de crime mesmo quando houvesse ofensa ao seu bom nome.

A razão de as pessoas singulares poderem ser indemnizáveis quando sofrem danos morais, verifica-se igualmente em relação às pessoas colectivas e quem sofre ofensa ao seu bom nome, sofre danos.

E, pode haver ofensa não a sociedades, mas a organismos ou institutos sem fins lucrativos em que a ofensa não se reflectirá negativamente “em termos de potencialidade de lucro”.

Assim que entendamos que a pessoa colectiva pode sofrer danos não patrimoniais e sofrendo-os, são indemnizáveis.

E, no caso concreto houve danos e indemnizáveis, merecedores da tutela do direito, mesmo tendo-se verificado a absolvição do arguido, nos termos do disposto no art. 377 nº 1 do CPP.

Nos termos do nº 3 do art. 496 do CC, o montante da indemnização será fixado equitativamente.

Ponderando os factos provados e o exposto, entende-se como adequada a indemnização no montante de 1.500,00€.

Indemnização acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido cível e até ao pagamento.

E, neste segmento se julga procedente o recurso.


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Decisão:

Pelo que exposto ficou, acordam nesta Relação e Secção Criminal, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente AS Fernandes S.A., e em consequência:

1-Condena-se o demandado ES a pagar à demandante AS…, S.A., a quantia de 1.500,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido cível ao demandado e, até integral pagamento.

2-No mais, mantém-se integralmente a sentença recorrida.

Custas da parte crime, pela assistente, com 4 Ucs de taxa de justiça.

Custas da parte cível, em ambas as instâncias, por demandante e demandado, na proporção do vencido.

Coimbra,

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[1] in Código Penal Comentado, p. 847, apud MIGUEL BAJO FERNANDEZ e JÚLIO DIAZ-MAROTO. Manual de Derecho Parte especial – delitos contra la libertad y seguridad, libertad sexual, honor y estado civil, Editorial Centro de Estúdios Ramon Areces, S.A., p. 283 e 284.

[2]  Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, 1999, Tomo I, p. 607

[3] Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92º, pág. 164

[4] Faria Costa, ob. cit, p. 609.

[5] In Código Penal Português, Anotado e Comentado – Legislação Complementar, 14.ª edição, 2001, p. 585.

[6]  In Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, pp. 56-59.

[7]  Vide, com a mesma perspectiva o Ac. RP de 10-1-2001, proferido no proc. n.º 0011155, in

www.dgsi.pt.

[8] 9 In ob. cit., p. 318.

[9] Por uma questão de honestidade intelectual não deixaremos aqui de frisar que existe um entendimento algo diferente a este que defendemos. “Maia Gonçalves refere, em anotação ao art. 187.º do Código Penal que ”Como se esclareceu no seio da CRCP e resulta claramente do texto legal, o objectivo deste artigo é diferente dos referentes aos crimes de difamação e de injúria. Aqui trata-se antes de criminalizar as acções e os rumores não atentórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma pessoa colectiva, de um organismo ou de um serviço, valores que, em bom rigor, não se incluem no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria. Será por exemplo o caso de alguém propalar o facto inverídico de que determinado produto produzido pela fábrica A tem defeito e não funciona passado um ano (apresentado na 45ª sessão da CRCP, em 11 de Dezembro de 1990.)” Nesta ordem de ideias, e independente da discutida amplitude do conteúdo do citado artigo 187º, verifica-se que este normativo não afasta a aplicação do artigo 180º do CP, que mantém a autonomia e, por conseguinte a aplicação, quando dele são sujeitos passivos as pessoas colectivas. Parafraseando José de Faria Costa poderemos dizer que “O núcleo do bem jurídico que aqui se quer defender se prende, de modo incontornável, com a ideia de bom nome.”] Mas, como salienta este mesmo Autor: “O bom nome assume-se, assim como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevantes.” – apud Acórdão da Relação de Évora de 26.10.2004, Proc. n.º 1567/04-1, em www.dgsi.pt

[10] Cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense, Tomo I, pag. 609 e 610

[11] Faria Costa, ob. cit., pag. 610

[12] FARIA COSTA, ob. cit., pag. 680 e 681.

[13] “O exercício de autoridade pública que se pressupõe neste contexto normativo outro não pode ser senão aquele que a doutrina administrativa designa por sentido objectivo. De sorte que, nesta acepção, de forma lapidar e sintética, se pode afirmar que «autoridade significa “poder público” ou conjunto dos poderes públicos – do imperium”». RODRIGUES QUEIRÓ, “Autoridades administrativas”, Dicionário Jurídico da Administração Pública 1990 627

[14] FARIA COSTA, ob. cit., pag. 683

[15] Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RL de 26-01-2005, proferido no processo n.º 10236/2004-3, pelo relator Clemente Lima; Ac. da RP de 02-10-2002, proferido no processo n.º 0141459, pela relatora Isabel Pais Martins; Ac. da RP de 07-01-2004, proferido no processo n.º 0343089, pela relatora Isabel Pais Martins; Ac. da RP de 01-03-2006, proferido no processo n.º 0545282, pelo relator Dias Cabral; Ac. da RP de 13-12-2006, proferido no proc. n.º 0645744, pelo relator António Gama e Ac. da RG de 04-072005, proferido no processo n.º 1026/05-2, pelo relator Miguez Garcia.

[16] Neste sentido, vide, Ac. da RL de 31-10-2007, proferido no processo n.º 3549/2007-3, pelo relatorJoão Sampaio; Ac. da RP de 19-02-2003, proferido no processo n.º 0242153, pelo relator PintoMonteiro; Ac. da RP de 06-12-2006, proferido no processo n.º 0643716, pelo relator Cravo Roxo e Ac.da RP de 15-10-2007, proferido no processo n.º 0743317, pelo relator Artur Oliveira.

[17] O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 596 a 598

[18]  MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Vol. II, p. 349.