Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/08.0TACTB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 32º,Nº5 DA CRP ,61º E 271º DO CPP
Sumário: O facto de ainda não haver constituição de arguido não impede, por si só, que sejam tomadas, de acordo com o disposto no artigo 271º do CPP, declarações para memória futura, em acto presidido pelo juiz com a presença do representante do Ministério Público e de defensor nomeado ao(s) suspeito(s).
Decisão Texto Integral: 16
Recurso n.º 380/08.0TACTB-C.C1
[Proc.º de Inquérito (actos jurisdicionais), do 1.º J.º do T. J. de Castelo Branco]
I – RELATÓRIO

1 – S (arguido melhor id.º nos autos), inconformado com o despacho judicial (de Ex.mo JIC) – exarado, em 13/04/2010, na peça certificada a fls. 68/78 do presente processo incidental –, declarativo de improcedência de arguição de nulidade de realização de diligência processual de produção antecipada de prova previamente à sua própria constituição de arguido, por pretensa violação do princípio do contraditório, pugnando pela respectiva revogação, dele interpôs o recurso ora avaliando, de cuja motivação Ínsita na peça junta a fls. 86/90. extraiu o seguinte quadro-conclusivo (por transcrição):
«1ª Requereu o requerente que se considerassem os depoimentos prestados para memória futura, constantes de fls. 953 e segs., nulos e todos dos actos que deles dependessem e pudessem afectar.
Tal requerimento foi indeferido tal como consta do douto despacho que ora se recorre de fls.1397 e segs., e com o qual não se concorda pelos motivos infra aludidos.
2ª No dia 26 de Março de 2010 decorreu o primeiro interrogatório judicial do arguido, ora requerente.
Nessa data, foi o requerente informado e confrontado com depoimentos colhidos para memória futura (cfr. fls. 953 e segs.).
Considera o arguido que os depoimentos para memória futura prestados nos autos estão tolhidos de nulidade insanável, o que expressamente se invoca, nos termos dos arts. 119º nº l al. c, 271º nº 3, 58º nº 1 al. a, 61º nº l al. a e b todos do C.P.P., preceitos estes que foram violados no despacho recorrido.
3ª Os presentes autos iniciaram-se em 2008, tendo em conta uma participação do SEF da Guarda e uma informação de serviço do Posto de Fronteira do Aeroporto de Faro.
Desde essa data até à data em que o arguido se apresentou voluntariamente em tribunal para depor (26/03/2010), nunca foi constituído arguido, apesar de contra ele correr inquérito por suspeita fundada de prática de crimes, na certeza que o arguido se encontrava em Portugal e/ou que podia ser notificado na sua morada em Espanha por meio de carta rogatória – tal como está a acontecer com outros suspeitos residentes em Espanha – por forma a ser constituído arguido, bem conhecida dos investigadores dos autos.
4ª Os depoimentos para memória futura deveriam ter sido precedidos da constituição de arguido do ora requerente, por forma a que os seus direitos constitucionalmente prescritos fossem acautelados, dado tratar-se do principal suspeito.
5ª O princípio do contraditório, que mais não significa do que a possibilidade de as "partes" poderem deduzir as suas razões, de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário, e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras.
O preceituado no art. 32º nº 5 2ª parte da C.R.P., configura dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; e em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo.
Assim, o princípio constitucional do contraditório foi violado pois nenhuma destas possibilidades foram conferidas ao arguido/recorrente.
6ª Nos termos do nº 3 do artigo 271 ° do C.P.P.:
"Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor".
Visou a alteração legislativa consagrar o que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X se expôs: "Em todos os casos de declarações para memória futura, passa a garantir-se o contraditório na sua plenitude, uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento. Assim, admite-se que os sujeitos inquiram directamente, nos termos gerais, as testemunhas".
Garantido integralmente o contraditório, naturalmente que as declarações para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento.
Assim, como ao recorrente ninguém comunicou a data dos depoimentos, o constituiu arguido e o informou que poderia estar presente – o que este desde já declara que pretendia ter estado presente – o seu julgamento parcialmente já ocorrera sem a sua presença, com integral desrespeito pelos direitos da defesa.
Nestes termos, requer a V.Exªs. se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência revogar o douto despacho, considerar os depoimentos prestados para memória futura nulos e todos dos actos que deles dependerem e puderem afectar.»
2 – O Ministério Público – por Ex.mos magistrados em serviço na primeira instância e nesta Relação – pronunciou-se pela insubsistência argumentativa e pela consequente improcedência do recurso, (cfr. respectivas peças – de resposta e parecer –, de fls. 95/100 e 104/105, nesta sede tidas por transcritas nos respectivos dizeres).
3 – Exercitando a faculdade legal prevenida no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente reiterou a tese e pretensão recursória, (cfr. peça de fls. 107).
4 – Observadas as pertinentes formalidades legais, nada obsta à apreciação, em conferência, do respectivo mérito, [cfr. art.º 419.º, n.º 3, al. b), CPP].

II – FUNDAMENTAÇÃO

§ 1.º

Como supra se enunciou, emerge da economia recursória, máxime do segmento conclusivo da referente motivação – delimitador do âmbito do atinente inconformismo –, a demanda pelo id.º arguido-recorrente à Relação da verificação/análise da suscitada inquinação do acto processual de produção antecipada de prova previamente à sua constituição como arguido, por pretensa violação do princípio do contraditório.

§ 2.º

Como vista ao pertinente/cabal tratamento jurídico de tal questão importa reter a essencialidade do sindicado despacho, (cujo teor igualmente se reproduz):
«O cidadão Português S foi constituído arguido no âmbito deste processo na sequência da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público para que fosse emitido Mandado de Detenção Europeu para assegurar a sua comparência neste Tribunal, e da sua apresentação em juízo, no dia subsequente, de um requerimento em que dizia querer prestar declarações.
Essa constituição como arguido teve lugar no dia 26 de Março de 2010.
Nesse mesmo dia, no decurso do primeiro interrogatório a que foi sujeito, o arguido S foi confrontado com a prova existente nos autos, nos termos que melhor se pode ver da acta da respectiva diligência junta a fls. 1306 a 1322, entre ela, as "declarações para memória futura" já tomadas a quatro testemunhas nos termos constantes de fls. 953 a 956 e 982 a 985, com base no disposto no artigo 271º do C.P.P..
Na sequência do conhecimento que diz ter tido nessa altura dessas declarações assim prestadas, veio o arguido S. arguir a nulidade da referida prova testemunhal dizendo que a tomada das declarações às testemunhas deveria ter sido precedida da sua constituição como arguido, por forma a que os seus direitos constitucionais tivessem sido acautelados, o direito de estar presente na diligência, e bem assim o direito a constituir defensor e a ser por ele assistido.
A base legal dessa arguição de nulidade assenta-a ele nas disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, al. c), 271.º, nº 3, 58.º,n.º 1, a) e b), todos do Cod de Processo Penal.
A Digna Magistrada titular do inquérito pugnou pelo indeferimento da arguida nulidade.
Cumpre apreciar e decidir:
Cumpre desde já pôr em evidencia que as diligências com vista á audição daquelas testemunhas para memória futura foram determinadas, quanto às duas primeiras, pelo nosso despacho de 19.02.2010 (cfr. fls. 466 e ss.), na sequência da determinação que fizemos, naquela mesma data de diversas outras diligências (buscas, apreensões, intercepções telefónicas), destinadas a recolher prova da actividade criminosa investigada nos autos, e quanto às duas últimas, pelo nosso despacho de 22.02.2010 (fls. 954), sendo que a testemunha Valquiria Pereira de Carvalho teve de ser notificada no Centro de Acolhimento Temporário do SEF, em Lisboa (cfr. fls. 964) pois que a mesma já tinha ordem de expulsão do território nacional no âmbito de processo administrativo que lhe havia sido instaurado pelos referidos Serviços.
Na altura havia suspeita de que o dito S e seus associados, de forma organizada e reiterada, estavam a promover o aliciamento, transporte e alojamento a mulheres estrangeiras para fins de exploração sexual, fazendo-as circular pelas boites "P…", em Fuentes de Onoro (Espanha), "O…", em Celorico da Beira e "K.. da N…", em … Mangualde, boites que aquele explora directa, ou indirectamente, numa actividade dirigida à prática reiterada de vários crimes, designadamente, dos crimes de auxílio à imigração ilegal com intenção lucrativa e associação de auxilio à imigração ilegal, p.p., respectivamente, nos art. 183º e 184º da Lei 23/07 de 04 de Julho, assim como, dos crimes de tráfico de pessoas, lenocínio, p.p. nos arts. 160º e 169º do Código Penal.
A data escolhida para a determinação das referidas diligências foi fortemente determinada pela necessidade de assegurar a cooperação policial com as autoridades espanholas que, no âmbito de um processo similar de "Diligências Previas nº 502/09” a correr termos pelo 2º Juzgado de Instrucción do Tribunal de Ciudad Rodrigo, numa actuação concertada, que teve lugar na noite do dia 19 para o dia 20 de Fevereiro de 2010, de um e do outro lado da fronteira.
Antes dessas diligências, era completamente desconhecido o paradeiro de todos os suspeitos, incluindo do próprio S. De resto, nessa mesma noite o dito suspeito veio a ser detido pelas autoridades espanholas no estabelecimento comercial de diversão nocturna de nome "P.." sito em Fuentes de Onoro, e sujeito naquele 2º Juzgado de Instrucción a primeiro interrogatório judicial, que determinou a sua sujeição da prisão preventiva, posteriormente substituída pela prestação de uma caução e obrigação de apresentação periódica naquele Tribunal nos dias 1 e 15 de cada mês, e bem assim, proibição de se ausentar para fora do Espaço Shengen.
Para além disso, na sequência das diligências ocorridas na referida noite do dia 19 para o dia 20 de Fevereiro de 2010, veio a ser detido o arguido A e submetido a primeiro interrogatório judicial no dia 22.02.2010, revelando-se o seu depoimento importante para perceber os exactos contornos da organização, de que o mesmo e o dito S fazem parte (cfr. fls. 932 e ss.).
Ou seja, aquando da determinação da realização e do agendamento das declarações para memória futura no dia 19.02.2010, não era totalmente conhecido nos autos o paradeiro de todos e cada um dos suspeitos, designadamente do arguido S, assim como não era desejável, para os ulteriores termos da investigação que esses suspeitos tivessem conhecimento imediato de que o eram, e para além disso, a trama das suas relações criminosas não tinham clareza que hoje, com a prova entretanto recolhida, têm.
Por outro lado, a audição das testemunhas afigurava-se ser premente, pois que mão sequência das diligências entretanto determinadas, sendo todas elas de nacionalidade brasileira, havia o sério perigo de que, entretanto, desaparecessem, tanto mais que, todas elas, declararam temer pela sua segurança pessoal e não beneficiavam do estatuto de protecção previsto no DL nº 93/99, de 14.07.
Em face do panorama com que nos deparamos havia que tomar uma decisão.
E fizemo-lo nos termos que na altura deixamos consignados na fundamentação do despacho que determinou a realização das declarações para memória futura naquelas condições.
Com vista a assegurar que a diligência requerida produzisse efectivamente o efeito útil pretendido e a prova produzida fosse efectivamente susceptível de ser valorada em julgamento, ponderamos quais as cautelas a adoptar para o efeito.
A diligência de tomada de declarações para memória futura, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do C.P.P., exige que seja dada a possibilidade ao arguido e ao seu defensor de estarem presentes e, dessa forma contraditar o depoimento que a pessoas ouvida em declarações venha a prestar.
Nos casos em que alguém ainda não foi constituído arguido no momento da diligência, ficará privado de participar na mesma e de ali exercer o contraditório relativamente ao depoimento prestado. Posteriormente, quando for constituído arguido e presente a julgamento, pode suceder que a pessoa entretanto ouvida para memória futura em sede de inquérito, não esteja presente nesse mesmo julgamento, ficando o arguido constituído numa fase posterior do processo privado do exercício do contraditório relativamente ao depoimento já tomado em sede de inquérito nos termos do disposto no artigo 271º do C.P.P., o que, se não for rodeado de cautelas, poderá inquinar de nulidade a valoração do dito depoimento em sede de julgamento.
Aprofundemos:
Dispõe o art. o 271º 1 do Código Processo Penal que em caso de (...) deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento (...) o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, (...) pode proceder à sua inquirição, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
No caso vertente, já na altura sabíamos que, no momento em que fossemos proceder à tomada de declarações para memória futura, haveria suspeitos que com toda a probabilidade viriam a ser constituídos arguidos numa fase posterior do processo, mas que ainda o não tinham sido naquele momento, pelo que não lhes poderia ser comunicada a data e local da inquirição nos termos legalmente previstos.
Aliás será que, nessas situações, ocorre, necessariamente e irremediavelmente a violação do princípio do contraditório?
Salvo melhor opinião, pareceu-nos que não, conquanto a situação ficasse desde logo acautelada com a nomeação àqueles, logo nesta fase do processo, de um defensor.
A Constituição garante como vimos que o julgamento e os actos que a lei determinar esteio subordinados ao princípio do contraditório, art.º 32º nº 5. Depois o nº 6 remete para a lei a determinação dos casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais.
O art.º 271º n.º 2 estipula que ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor (...) são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para que possam estar presentes se o desejarem. O nº 3 refere que a inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida as pessoas referidas no número anterior solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais e podendo ele autorizar que sejam aquelas mesmas a fazê-las.
De entre os pressupostos para a prestação de declarações para memória futura não consta a exigência de que o inquérito corra contra pessoa determinada. A Constituição, como vimos, remete para o legislador a responsabilidade de determinar quais os actos, além do julgamento, que estão subordinados ao princípio do contraditório, assim como os casos em que, assegurados os direitos de defesa, dispensa a presença do arguido.
A faculdade de o arguido estar presente, prevista no art.º 271º n.º 2 do Código Processo Penal é, e consubstancia indiscutivelmente, um momento relevante do contraditório. Agora o que é preciso lembrar é que o processo penal é um espaço de conflito e de compatibilização de interesses. As finalidades primárias a cuja realização o processo penal se dirige são, de uma parte, a realização da justiça e a descoberta da verdade, como formas necessárias de conferir efectividade à pretensão punitiva do Estado; de outra parte a protecção face ao Estado dos direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido. Ora esta conflitualidade deve ser resolvida, partindo do caso concreto, através da tarefa de operar a concordância prática das finalidades em conflito, optimizando os ganhos e minimizando as perdas axiológicas (Cfr. F. Dias, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código Processo Penal, RPCC, 8º Fasc. 2, pág. 202).
O interesse na realização da justiça e a descoberta da verdade tem como consequência que, mesmo na hipótese de o inquérito correr contra pessoa ainda não determinada, tenha lugar e se leve a cabo a produção de prova para memória futura (Neste sentido, e num caso similar ao dos autos, cfr. o Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2001, CJ XXJ/I, Tomo II, pág. 228).
Temos em vista aquelas situações, como a do caso, em que a investigação estava ainda no seu início e urgia acautelar a prova, os depoimentos de testemunhas que poderiam ser expulsas do país, poderiam desaparecer ou ser feitas desaparecer (cfr. a propósito do risco de as testemunhas serem feitas desaparecer pela própria organização criminosa, o teor das declarações por elas prestas ao Tribunal). Como proficientemente realça no referido Acórdão, pressuposto material da diligência prevista e regulada no artigo 271º do C.P.P., é que se tenha cometido crime, pressuposto processual é que haja absoluta necessidade de acautelar a produção, em audiência de julgamento desse meio de prova, e é o caso; já não é pressuposto que alguém tenha sido previamente constituído arguido (Em sentido divergente, Mouraz Lopes, O interrogatório da vítima nos crimes sexuais: as declarações para «memória futura», Sub Judice, 26, 2003, pág. 16, referindo expressamente que não pode lançar-se mão do instituto sem que previamente tenha sido constituído arguido no processo).
Basta ter em vista v.g. o depoimento do ofendido que corre perigo de vida e cujo depoimento é crucial para esclarecer a autoria dos factos delituosos.
Agora o que é exigível, para a validade dessa prova, é que logo nesse acto se assegurem todas as garantias de defesa, o que vale por dizer que a presença de um advogado constituído defensor é sempre obrigatória. Defensor de quem? Desde logo da legalidade, fiscalizando e garantindo o cumprimento da lei, de que a lei é integral e escrupulosamente cumprida, de que se verificam os pressupostos da inquirição, que se respeitam os procedimentos legalmente estabelecidos, que o depoimento decorre de acordo com as regras legais, sem constrangimentos, podendo e devendo (o defensor) verificar se o depoimento é coerente, formulando as perguntas adicionais que entender em seu critério necessárias; defensor da autenticidade do auto que reproduz o depoimento, etc., etc. Depois, defensor do (futuro) arguido e sempre do arguido.
É certo que não existindo arguido a tarefa do defensor é mais espinhosa e admitimos que poderá ser menos eficaz. Não vamos tapar o sol com a peneira: é a natureza das coisas, como agora se diz: é a vida (José Gil, Portugal, Hoje o medo de existir). Mas também não é menos certo que diversas são as situações em que o arguido é representado por defensor, defensor que não conhece nem o arguido nem o processo e só no acto tem notícia da condenação – temos em vista as audiências de julgamento em recurso – e mesmo assim não se discute a constitucionalidade dessa solução legislativa.
Não estando o futuro arguido presente vê restringido indiscutivelmente um seu direito. Agora essa restrição não é, nem desproporcionada, nem intolerável e o certo é que não há outra maneira de acautelar o interesse público da realização da justiça e a descoberta da verdade, quando urge, como no caso, levar a cabo a inquirição mesmo sem que o inquérito corra contra pessoa já constituída arguida. A parcela dos direitos do arguido que são afectadas é mínima, o seu direito ao contraditório é afectado numa dimensão menos relevante, sem qualquer cinismo, quase marginal atendendo até a que não se sabe quem é o arguido, pelo que é justo e proporcionado que se restrinjam para dar prevalência ao interesse público da descoberta da verdade e punição dos culpados.
O momento essencial do contraditório fica intocado, pois ocorre na audiência de discussão e julgamento. E se é verdade que o não assistir ao depoimento é uma desvantagem, exercer em audiência de julgamento o contraditório a um depoimento para memória futura tem, além das desvantagens da falta de imediação, da ausência da oralidade, etc. comuns à acusação, à defesa e ao próprio tribunal, uma indiscutível vantagem: permite uma defesa organizada e estruturada, o depoimento é conhecido e definitivo, não é uma surpresa, o que não acontece com o depoimento acabado de fazer em audiência de julgamento, e convém lembrar que o contra interrogatório é seguido à inquirição pela acusação, art.º 348º nº 4 do Código Processo Penal.
Depois, e isso para nós releva indiscutivelmente, não se pode esquecer que a intervenção do juiz na fase de inquérito do actual processo penal e no concreto caso de declarações para memória futura caracteriza-se pela tutela das liberdades, alheando-se da actividade investigativa. Ao juiz na fase do inquérito estão reservadas funções jurisdicionais típicas de guardião dos direitos fundamentais dos cidadãos, surgindo aqui na veste de juiz das liberdades. Daí que não é despicienda esta função do juiz como garante dos direitos dos arguidos.
Assim, no nosso entender, ficará o direito ao contraditório efectivamente garantido, no seu núcleo essencial e no momento próprio que é a audiência de julgamento e em momento prévio à decisão (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 372/00 de 12.7.2000), não se podendo concluir pela violação do princípio do contraditório, valendo essas provas para efeito de formação da convicção do tribunal, art. 355º nº 1 e 2 do Código Processo Penal.
Com esta interpretação que Tribunal fez dos artigos 271º, 356º nº 2 al. a) e 255º nº 2 do Código Processo Penal, julgamos não infringir o princípio do contraditório com o âmbito que a Constituição lhe desenha no art. 32º, n.ºs 5 e 6, nem o disposto no art. 271º do Código Processo Penal.
Aliás, e numa argumentação subsidiária, vem entendendo a jurisprudência que a não comunicação ao arguido do dia, hora e local da prestação do depoimento ao abrigo do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, no caso de inquérito que já corra contra pessoa determinada, porque não constitui uma nulidade taxativamente prevista como insanável, art. 119º do Código Processo Penal, antes configurando mera irregularidade, deve ser arguida, nos termos do artigo 123º do Código Processo Penal, sob pena de se dever considerar sanada. E este entendimento dominante tem o respaldo do Tribunal Constitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 429/2004 de 16.6.2004, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.97, Acórdão da RP de 24.11.04, disponíveis no sítio na internet destes tribunais).
Ora, sendo assim, por maioria de razão, julgamos que acautelando a defesa do futuro arguido pela nomeação prévia de um defensor, ficará suficientemente acautelado o respeito devido pelo princípio do contraditório, em termos de a prova que vamos agora produzir poder ser valorada mesmo relativamente a ele em audiência de julgamento.
De resto, este mesmo entendimento pelo Direito Italiano, rejeitando a inconstitucionalidade desta solução, na sentença da Corte Costituzionale Italiana nº 181, de 16.05.1994.
A confortar esta solução, que já vimos defendendo desde há alguns anos a esta parte, temos ainda Paulo Pinto de Albuquerque, no seu "Comentário do Código de Processo Penal", 2.ª Edição Actualizada, pag. 702, nota 9.
Posto isto, na altura decidimos determinar que a secção procedesse à designação de um defensor que represente nos autos os cidadãos suspeitos no âmbito desta investigação e que ainda não foram constituídos arguidos, designadamente o agora arguido S, que esteve presente na diligência (cfr. fls. 454), fez os requerimentos tidos por necessários, fez as intervenções que julgou oportunas e deu a sua anuência ao desenrolar das inquirições.
E sendo assim, julgamos que não se verifica a nulidade aqui arguida, devendo por isso essa mesma arguição ser julgada improcedente.
O que se decide.»

§ 3.º

APRECIANDO:
A essência dos argumentos do recorrente assenta na afirmação de que deveria ter sido representado na diligência antecipada de prova realizada nos autos.
Não o diz, mas subentende-se, que a produção antecipada de prova é sempre nula por ausência de representação, no caso de inexistir arguido.
Não o diz, mas pode-se concluir da sua argumentação, que a produção antecipada de prova nunca será possível se os suspeitos – cada um e todos – não estiverem ainda constituídos arguidos nos autos; sem arguido constituído não há produção antecipada de prova.
Para sustentar esta posição seria necessário que a totalidade dos direitos do arguido se impusesse, de forma absoluta, ao direito de punir do estado e ao direito de defesa da sociedade perante as violações das suas normas penais.
A produção antecipada de prova é um procedimento de carácter excepcional que tem em vista assegurar a obtenção e conservação de um meio de prova.
É um meio cautelar de prova, tendo em vista a urgência ou conveniência da sua produção – com vista ao respectivo aproveitamento em sede de julgamento – pelo perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento.
Vista essa possibilidade de aproveitamento probatório e com o fim de assegurar o contraditório, o procedimento previsto no art.º 271.º do CPP afasta-se do esquema habitual de recolha e produção de prova em inquérito, sendo a direcção da diligência atribuída ao juiz, com a notificação de todos os intervenientes, incluindo o arguido e seu defensor, dessa forma se assegurando um formalismo idêntico ao da audiência e com o contraditório no seu cerne.
A circunstância de ainda não haver constituição de arguido não invalida o acerto e a plena aceitação das declarações para memória futura, pois que a referente diligência foi presidida por Juiz e foi assegurado o contraditório possível – na ocasião –, com a presença do defensor nomeado.
É um caso nítido de contraposição de dois valores conflituantes: dum lado um pleno contraditório; doutro a necessidade de recolha e produção antecipada de prova.
Este – em função da inexistência de arguido constituído –, deve, porém, claramente prevalecer, com o mínimo de constrangimento do direito ao contraditório, com um patamar aceitável da respectiva compressão.
E isso manifestamente se verifica quando, não havendo arguido formalmente constituído, a diligência é presidida por juiz e se encontra presente um defensor nomeado ao(s) suspeito(s), potencial(ais)/virtual(ais) arguido(s).
Não há, pois, qualquer violação do preceituado no art.º 32.º, n.º 5, 2.ª parte, da C.R.P..

III – DISPOSITIVO

Destarte – sem outras considerações por despiciendas –, delibera-se:
1 – A negação de provimento ao avaliando recurso do id.º arguido S.
2 – A sua condenação ao pagamento da soma pecuniária equivalente a 4 (quatro) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento na respectiva acção recursiva, (cfr. normativos 513.º, n.º 1, do CPP; 446.º, do CPC; e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).
***
(Consigna-se, nos termos do art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal, que o antecedente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, primeiro signatário).

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Coimbra,

Os Juízes-desembargadores:

.........................................................................
(Abílio Ramalho, relator)

.........................................................................
(Luís Ramos)