Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/19.9IDVIS-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CRIME FISCAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO
PAGAMENTO DA TOTALIDADE DA PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA DEVIDA
Data do Acordão: 05/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 14.º DO RGIT
Sumário: Por contrariar lei especial, concretamente a norma do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05-06-2001), a suspensão da execução da pena de prisão decorrente da prática de crime previsto naquele regime jurídico não pode ficar condicionada ao pagamento de quantia inferior à da prestação tributária devida.
Decisão Texto Integral:




Acordam em Conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

1. Decisão recorrida:

Por sentença de 9 de dezembro de 2020, proferida pelo Juízo Local Criminal de Viseu – J1, Comarca de Viseu, no processo comum n.º 30/19.9IDVIS, foi decidido:

1) Condenar o arguido P, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, mediante a obrigação de o arguido entregar à autoridade tributária a quantia de 15.253,08 (quinze mil duzentos e cinquenta e três euros e oito cêntimos), no prazo de 5 (cinco) anos, comprovando-o nos autos (sendo, pelo menos, a quantia de 1.200,00 no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses);

2) condenar a arguida A., Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7º, 12º, nº 3 e 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 (cinco euros), o que perfaz 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

2. Recurso do arguido P. (conclusões que se transcrevem na parte relevante):

«(...) 3- Ficou provado que “O arguido trabalha atualmente como administrativo (responsável pelas compras) numa empresa, auferindo pelo menos a quantia de € 680,00 mensais. Vive com a companheira, que trabalha num supermercado, auferindo pelo menos a quantia mensal de € 800,00. Pagam de renda de casa a quantia mensal de € 650,00. Não têm despesas mensais significativas, para além das necessárias à subsistência no meio onde residem…”

4-O presente recurso terá por objeto, apenas, a parte da decisão que sentencia “... subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido entregar à autoridade tributária a quantia de € 15.253,08 (quinze mil duzentos e cinquenta e três euros e oito cêntimos), no prazo de 5 (cinco) anos, comprovando-o nos autos (sendo, pelo menos, a quantia de 1.200,00 no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses).

5- Ora, salvo o devido respeito, como ficou provado, a obrigação fixada não se se afigura adequada e proporcional à situação económico-financeira apurada, bem como à disponibilidade manifestada pelo próprio arguido.

6-O Arguido aufere apenas a quantia de € 680,00 mensais, vive com a companheira, que aufere apenas a quantia mensal de € 800,00, pagando de renda de casa a quantia mensal de € 650,00, a que acrescem as demais despesas necessárias à subsistência no meio onde residem.

7-Em causa está a interpretação e aplicação do invocado artigo 14.º do RGIT.

8-A interpretação do artigo 14.º do RGIT tem de ser conjugada com o disposto no artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, no sentido de que nos crimes tributários, assim como sucede relativamente a todos os outros, a subordinação da suspensão da execução da pena ao dever de pagamento poderá acontecer quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para o cumprimento dessa condição.

9-Atenta a realidade provada nos autos, não existem expetativas objetivas de que o Arguido venha a ter meios financeiros que lhe permitam pagar, ao longo de cinco anos, o montante fixado.

10-O mesmo manifestou e manifesta intenção para liquidar o devido mas, objetivamente, não o conseguirá fazer, relativamente à quantia fixada, em cinco anos.

11-Importando interpretar e aplicar a norma em questão, no sentido de se atentar a situação concreta do arguido e, deste modo, permitir que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada seja condicionada ao pagamento, em cinco anos subsequentes à condenação, de metade da prestação tributária e acréscimos legais, e, no caso, 7.500,00 €.»

3. Resposta do Ministério Público (conclusões que se transcrevem integralmente):

Pronuncia-se pela improcedência do recurso.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto aderiu à resposta ao recurso apresentada em primeira instância, no sentido do não provimento do recurso.


II.

II. - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

A única questão a decidir prende-se com o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da totalidade das quantias em dívida à Autoridade Tributária, por violação do art. 51º, n.º 2, do Código Penal.


III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Transcrição da sentença da primeira instância (parte relevante):


«(…) Observado o formalismo legal, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e, discutida a causa, emergiram provados os seguintes factos:
1. A arguida A., Lda.. é uma sociedade comercial por quotas, da qual é gerente o arguido P, obrigando-se com a intervenção deste.
2. A sociedade arguida, detentora do NIPC (…), exercia à data dos factos a atividade principal de “Construção de Edifícios” - CAE (…), pela qual se encontrava coletada no Serviço de Finanças de Viseu, estando englobada no regime normal mensal por opção para efeitos de IVA.

3. Ora, o arguido entregou em 10/1/2019, dentro do prazo legal, a declaração periódica de IVA referente ao mês de novembro de 2018, na qual apurou imposto a favor do Estado na quantia de 23.047,64 €.
4. Contudo, o arguido não fez acompanhar tal declaração periódica dos competentes meios de pagamentos dos valores de IVA supra referidos, não tendo tal valor sido pago até ao ultimo dia do prazo de entrega da referida declaração periódica (10/1/2019), nem nos noventa dias posteriores aquela data, tendo-se apurado que o mesmo recebeu dos clientes até ao dia 10/1/2019 pelo menos a quantia 15.253,08 €, o que lhe permitia pagar parte do valor de IVA apurado.


5. O arguido não pagou os valores em divida no prazo legalmente estabelecido nem até à presente data.
6. Foi cumprida a notificação a que alude a al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, não tendo sido efetuado qualquer pagamento no decurso do prazo.
7. O arguido P. foi desde sempre o gerente da A., Lda., exercendo de facto a gerência da mesma.
8. Nessa qualidade, e não obstante estar ciente da sua obrigação de entregar nos cofres do Estado os valores recebidos a titulo de IVA, não o fez, integrando tais quantias no património daquela.
9. O arguido agiu sempre em seu nome e no da empresa/sociedade que representa, com intenção de integrar tais quantias no património desta, e obter, dessa forma, vantagens patrimoniais a que sabia não ter direito, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que se destinavam a ser entregues nos cofres do Estado, e que não o fazendo estava a defraudar a confiança nele depositada enquanto substituto do verdadeiro contribuinte.

10. Ciente de tal, fez suas aquelas quantias, integrando-as no património da sociedade e delas dispondo como se fossem próprias, assim causando ao Estado uma diminuição das receitas de montante idêntico ao beneficio alcançado.
11. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua condutas era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:


12. A quantia supra referida, que deveria ter sido entregue à Autoridade Tributária, foi utilizada no giro da empresa, designadamente no pagamento de salários aos trabalhadores, no pagamento aos fornecedores e à segurança social, na tentativa de manter a atividade.

13. Tal sucedeu num contexto de dificuldades económico-financeiras da sociedade arguida, para o que contribuíram as dificuldades de recebimento dos clientes, o que culminou com a declaração de insolvência no dia 16 de dezembro de 2019, no âmbito do processo n.º (…), do Juízo de Comércio de Viseu, Juiz 2, que foi encerrado por insuficiência da massa, isto é, por se ter verificado que o património da sociedade arguida não era presumivelmente suficiente para satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, não estando essa satisfação por outra forma garantida.
14. O arguido tentou um acordo de pagamento com a autoridade tributária, que se afigurou inviável por serem exigidas garantias reais, que não conseguia prestar, nem ter conseguido financiamento.

15. O arguido trabalha atualmente como administrativo (responsável pelas compras) numa empresa, auferindo pelo menos a quantia de € 680,00 mensais. Vive com a companheira, que trabalha num supermercado, auferindo pelo menos a quantia mensal de € 800,00. Pagam de renda de casa a quantia mensal de € 650,00. Não têm despesas mensais significativas, para além das necessárias à subsistência no meio onde residem.

16. O arguido é proprietário de uma casa sita na Ilha da Praia, em Cabo verde, avaliada em pelo menos € 75.000,00, que tenciona vender.
17. O arguido manifestou disponibilidade financeira para efetuar o pagamento de € 1.200,00 durante o ano de 2021 e € 3.000,00 nos anos seguintes, até à regularização da dívida à Autoridade Tributária.

18. A sociedade arguida tem o capital social de € 5.000,00.

Ainda se provou que:

19. O arguido P. foi condenado:


- por sentença de 14.01.2003, transitada em julgado em 17.03.2003, pela prática, em 10.03.2000, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
- por sentença de 27.04.2005, transitada em julgado em 31.05.2005, pela prática, em 21.01.2004, de um crime de desobediência, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;

- por sentença de 22.06.2010, transitada em julgado em 28.07.2010, pela prática, em novembro de 1998, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;- por sentença de 05.06.2013, transitada em julgado em 04.04.2014, pela prática, em 13.04.2006, de um crime de fraude fiscal qualificada e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova – a qual foi extinta 04.07.2017. (…)


*
(…) No entanto, a execução da pena de prisão que entendemos aplicar ao arguido é, em nosso entender, suscetível de ser suspensa, por se verificarem, em concreto, os pressupostos previstos no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal.

Prescreve tal artigo que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. (…)
O simples facto de pender sobre o arguido a ameaça de uma pena de prisão, como resultado do seu comportamento ilícito, e o sentido de culpa que lhe é inerente, para o próprio e aos olhos dos outros, assegura, para já, a proteção do bem jurídico em causa e a reintegração do agente na sociedade, devendo ser encarada por este como uma última oportunidade para passar a reger a sua vida de acordo como o Direito.
Assim sendo, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 5 anos (artigo 50º, n.º 5 do Código Penal) lapso temporal fixado em função da condição de pagamento que urge ser aplicada.
Optando-se pela suspensão da execução da prisão imposta ao arguido pela prática de crime fiscal, é obrigatória a imposição da condição de pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, nos termos do artigo 14º, nº 1, do RGIT.
Em termos gerais, os deveres a impor ao condenado no âmbito da suspensão da execução da pena destinam-se «a reparar o mal do crime», conforme refere o artigo 51º, nº 1, do Código Penal e um dos meios previstos para atingir tal objetivo é o pagamento, dentro de certo prazo, «no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado» - cfr. alínea a) do mesmo preceito legal, sendo nesse espírito que se enquadra o artigo 14º, do RGIT.
Conforme doutrina fixada pelo acórdão do STJ nº 8/2012, publicado no DR, Iª série, nº 206, de 24.10.2012, no processo de determinação da pena, a opção pela suspensão da execução da pena de prisão, «...reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura”.
A aplicação do nº 1 do artigo 14º do RGIT não derroga o nº 2 do artigo 51º do Código Penal, pois que constitui apenas uma especialidade ao regime facultativo previsto no nº 1 deste último preceito. Pelo que a fixação do montante concreto do condicionamento da prestação tributária e acréscimos legais dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos, não poderá deixar de ficar sujeito ao regime previsto no nº 2 do artigo 51º do Código Penal, que enforma o princípio geral da humanidade das penas, impondo que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas ou deveres irrealizáveis, sob pena dos fins da suspensão serem negados nos seus próprios termos» - cfr. Ac. Trib. Relação do Porto de 09.10.2019 disponível em www.dgsi.pt/trp, e no mesmo sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 30.04.2018.
Assim, em face do exposto e ao abrigo das citadas disposições legais, decide-se subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido entregar à autoridade tributária a quantia de 15.253,08 (quinze mil duzentos e cinquenta e três euros e oito cêntimos), no prazo de 5 (cinco) anos, comprovando-o nos autos (sendo, pelo menos, a quantia de 1.200,00 no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses) – obrigação que se afigura adequada e proporcional à situação económico-financeira apurada, bem como à disponibilidade manifestada pelo próprio arguido. (…)»


*


2. Conhecimento do Recurso

               Insurge-se o arguido contra a imposição do pagamento das quantias em dívida à Segurança Social como condição para a suspensão de execução da pena única de prisão de 2 anos e 9 meses que lhe foi aplicada, afirmando que as suas condições económicas lhe não permitem proceder ao pagamento da quantia de € 15.253,08 no prazo concedido de 5 anos.

               Defende, para o efeito, que o art. 14º, n.º 1, do RJIT deve ser interpretado conjuntamente com o art. 51º, n.º 2, do CP, não sendo no caso razoável a imposição da referida condição, devendo o montante ser reduzido a € 7,500,00.

Assiste razão ao recorrente nesta parte, uma vez que, de facto, para a aplicação da condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RJIT, o tribunal tem de efetuar um juízo de prognose de razoabilidade positivo quanto à satisfação, por parte do condenado, daquela condição legal.

É que a imposição desta condição do pagamento das quantias em dívida é obrigatória, conforme decorre daquele preceito legal (A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais) e constitui jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 8/2012 (publicado no DR, 1ª Série, n.º 206, de 24 de outubro de 2012), que fixou a seguinte jurisprudência:

No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Esta jurisprudência fixada tem sido objeto de distintas interpretações pelas instâncias, convocando o recorrente na sua fundamentação recursiva a parte da jurisprudência das Relações que entende só poder ser imposta a condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT se resultar do juízo de prognose realizado que o condenado tem condições para cumprir a obrigação em causa (v. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.4.2013, 18.7.2013 e 26.2.2014, citados pelo recorrente, e o recente aresto da Relação de Guimarães de 8.2.2021, no proc. 30/18.6T9VVD.G1, em www.dgsi.pt).

Para dilucidar a questão, essencial será revisitar os fundamentos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012, única forma de lograr uma correta interpretação do sentido do sumário enunciado.

Vejamos:

A questão foi inicialmente colocada ao nível da constitucionalidade da exigência legal de imposição do pagamento da prestação tributária em dívida como condição para aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT.

De forma uniforme, o Tribunal Constitucional pronunciou-se várias vezes pela conformidade daquela imposição com os comandos constitucionais, à margem da condição económica do condenado/responsável tributário, com os seguintes fundamentos, referidos no próprio AUJ:

1º- o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão;

2º- sempre pode haver regresso de melhor fortuna;

3º- a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena.

Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 327/2008 – Não julga inconstitucional a norma que se extrai do art. 14º do RGIT, em conjugação com o n.º 5 do art. 50º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão, concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e legais acréscimos -, 256/2003, 335/2003, 376/2003, 500/2005, 309/2006, 29/2007 – este conjuga o art. 14º, n.º 1, com o art. 9º do RGIT, que dispõe que o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária e legais acréscimos -, 277/2007, 563/2008, 242/2009, 587/2009 – Não julga inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 14º do RGIT quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a condição de pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada -, e 237/2011, entre outros.

Relativamente à doutrina, Germano Marques da Silva (Direito Penal Tributário, 2ª ed., Univ. Católica Editora, págs. 133 a 136) vinca a obrigatoriedade da imposição do dever de pagamento da prestação tributária prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT, que é uma lei especial face ao Código Penal, devendo esta ser conjugada com a disposição do Código Penal quanto ao prazo de suspensão – ou seja, apenas na parte omissa. A propósito, refere: “A imposição de pagamento da prestação tributária em dívida não é exclusiva dos crimes tributários. Também o art. 51º do Código Penal, na redação vigente à data da publicação do RGIT, dispunha que a suspensão da execução da pena de prisão podia ser subordinada ao pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado. A especialidade do art. 14º do RGIT consiste em que a imposição da condição é obrigatória”. E mais à frente esclarece: “O que sucede se o condenado não cumprir a condição de pagamento da prestação tributária? Cremos que pode ser revogada a suspensão da execução, desde que o incumprimento seja culposo e só se o for”. (sublinhado nosso).

Em suma, e de forma idêntica ao que o Tribunal Constitucional refere, o que é defendido é que só o não pagamento culposo da condição de suspensão pode determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo o momento próprio para aferir da culpa do condenado aquele em que a possibilidade de revogação da pena substitutiva venha a ser colocada – conforme preveem expressamente os arts. 55º e 57º, n.º 1, a contrario, do Código Penal.

Regressando à fundamentação do AUJ n.º 8/2012, após referir existirem casos concretos em que o agente, por muito empenho que demonstre, não consegue cumprir a condição imposta, em lado algum encontramos sequer resquícios de um entendimento de ser possível a substituição da pena de prisão pela suspensão da execução da mesma pena sem que seja condicionada ao pagamento da totalidade do imposto em dívida!

Impõe-se considerar que nos acórdãos recorrido e fundamento estava em causa a opção pelas penas alternativas de prisão ou de multa, e não a substituição da pena de prisão pela pena de substituição a que se refere o art. 14º, n.º 1, do RGIT. E é sob este pressuposto que a enunciada uniformização tem de ser lida.

Vincamos, por relevante, os seguintes excertos da fundamentação do AUJ em análise que determinou a elaboração do sumário que, só por si considerado, poderá conduzir a equívocos (destacados e sublinhados nossos):

Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confeção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o art. 339º, n.º 4, do C.P.P. (…)

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio: para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exatamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exatamente por isso a merecer maiores cuidados.

(…) não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido (…)

A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no art. 14º, n.º 1, do RGIT (…)

A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.

Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção pela pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efetiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem de ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever (…)

Feita a escolha, a adoção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento.

Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.

Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.

Pelo exposto, opta-se pela solução do acórdão fundamento.

Um AUJ não poderia nunca, como é evidente, afastar a aplicação de lei expressa; tal só lograria ser obtido através de uma declaração de inconstitucionalidade, que foi ao longo dos anos negada, de forma unânime, pelo Tribunal Constitucional.

O que resulta de forma clara do AUJ n.º 8/2012 é o seguinte:
a) No caso de o crime fiscal ser punível, em abstrato, e em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, o julgador opta, perante as circunstâncias, por uma das penas;
b) Caso a opção seja a pena de prisão, após a determinação da pena em concreto, pondera a eventual aplicação de uma pena de substituição;
c) Se a opção incidir sobre a suspensão da execução da pena de prisão, tem o julgador de considerar, para a sua aplicação, a imposição obrigatória da condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT;
d) Nessa altura, deverá efetuar um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, sob pena de nulidade (conforme impõe o AUJ);
e) Concluindo pela impossibilidade, presente e futura, de o condenado poder cumprir a condição, cuja aplicação é automática, deverá o julgador regressar ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar, prisão ou multa);
f) Se for de afastar a aplicação da pena de multa, por via do art. 70º do Código Penal, e concluir pela incapacidade do condenado de cumprir a condição de suspensão legalmente imposta pelo art. 14º, n.º 1, do RGIT, nem deva/possa ter lugar outra pena de substituição, terá o condenado de cumprir a pena de prisão (no mesmo sentido, cf. Ac. desta Relação de Coimbra de 19.3.2014, no processo 189/09.3IDSTR.C1, relatado pelo Juiz Des. Jorge Dias, e de 12.4.2011, no proc. 89/04.3TAACB.C1, rel. pela Juíza Des. Elisa Sales, ambos em www.dgsi.pt, e o n/ Ac. de 15.1.2020 proferido no proc. 38/14.0TASJP.C2).

Em resumo, conforme sumaria o Ac. da Relação do Porto de 11.9.2019 (Coletânea de Jurisprudência n.º 297, tomo IV, 2019, pág. 213-215), “O juízo de prognose a que alude o AUJ 8/2012 apenas é necessário quando o crime tributário em causa for punível com pena de prisão ou, em alternativa, com pena de multasendo para este efeito que é imposta a obrigação de o julgador sopesar as condições económicas do condenado para satisfazer a condição obrigatória prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT”.

Concluímos assim, e salvo o devido respeito por opinião contrária, pela desconformidade da tese defendida pelo recorrente primeiro com a letra da lei (art. 14º, n.º 1, do RGIT), e depois com o próprio Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012.

Desta forma, por contrariar lei especial e expressa, não pode a suspensão da execução da pena de prisão pela prática de crime previsto no RGIT ser condicionada ao pagamento de quantia inferior ao da prestação tributária em dívida.

Regressando à decisão recorrida, verificamos que foi devidamente ponderada a situação económica do recorrente, tendo sido antecipado, de alguma forma, o juízo a efetuar ao abrigo do art. 55º do Código Penal. E a criteriosa e cuidadosa opção pela parte decisória, que obedece ao comando legal do art. 14º, n.º 1, do RGIT, não deixou de ter em consideração os factos provados em 16 e 17, baseando-se na disponibilidade económica declarada pelo próprio arguido (facto 17), fixada como medida mínima de cumprimento da condição fixada, e na possibilidade de obtenção no futuro, no prazo da suspensão, do montante remanescente, face ao facto provado em 16, que de igual forma teve por base as declarações do arguido.

Pelas razões expostas, não merece qualquer reparo a decisão recorrida, improcedendo a pretensão do recorrente.

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V. DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 19 de maio de 2021

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

              

João Bernardo Peral Novais (adjunto)