Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1255/09.9TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO MATERIAL
DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO NO PROCESSO PRINCIPAL
Data do Acordão: 12/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE CASTELO BRANCO - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 29.º, N.º 5, DA CRP; ART. 335.º, DO CPP; ARTS. 577.º, AL. I), E 581.º, DO CPC
Sumário: I - Para que a excepção de caso julgado material funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, não importa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.

II - Na verdade, a expressão “mesmo crime” não dever ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas antes como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, por ser subsumível a determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um ilícito penal.

III - Existe identidade de “objecto do processo” e, em consequência, caso julgado material, no caso, como o dos autos, em que o arguido, embora declarado contumaz, com inerente separação processual, foi julgado - tendo sido decretada a sua absolvição - no processo original.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo registado sob o n.º, a correr termos na Comarca de Castelo Branco, foi proferido despacho em 8-04-2015 a declarar a excepção de caso julgado por violação do princípio ne bis in idem e a determinar o arquivamento dos autos

2. Inconformado, o MP interpôs recurso deste despacho, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

“1.     O arguido A... no processo n° 969/03.3TACBR foi declarado contumaz;

2.      pelo que, só por mero lapso, é que no acórdão proferido naqueles autos foi absolvido dos crimes que lhe eram imputados;

3. já que o mesmo não esteve presente em julgamento, não se fez representar por Mandatário nem, em relação a si, foi exercida a acção penal.

4.  A referida absolvição não pode ter qualquer efeito/consequência em relação ao mesmo;

5.      Já que não foi violado o princípio non bis in idem.

Termos em que a decisão recorrida deve ser revogado e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos

Mas VOSSAS EXCELÊNCIAS, farão a costumada JUSTIÇA !”

3. O arguido A... respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

Em seu entender, a matéria de facto não provada foi consequência directa da prova produzida em audiência de julgamento e foi criticamente analisada e ponderada, pelo que não houve lapso na redacção dos factos provados.

4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, defendendo que:

“… contrariamente ao decidido no despacho recorrido, cujo conteúdo não se insere no formalismo processualmente estipulado entre a decisão que designa dia para julgamento e a decisão final sobre os factos, o que se verifica é que o recorrido não foi julgado relativamente aos factos aqui em análise para os quais se extraiu culpa tocante. Basta atentar no que consta de fls. 879, no que se refere na parte final do relatório do acórdão e no que consta do decisório deste, que tem este cariz, ao absolver os arguidos que aí haviam sido julgados, onde não consta o aqui arguido, o mesmo sucedendo quanto aos restantes declarados contumazes, como teria de ser uma vez que não foram aí julgados, não sendo pois estes parte no processo e faltando este requisito para ocorrer o caso julgado. A menção destes, quer na descrição dos factos não provados, quer na sua referenciação aos crimes, decorre de uma incorrecta redacção relativamente ao que aí era apreciado, mas não tem a virtualidade de os integrar no julgamento efectuado, tendo em conta a sua situação de contumazes que continuaram a manter. Ou seja, não tendo os mesmos sido julgados tendo em conta a culpa tocante, não pode esta inclusão a latere na sentença integrá-los no julgamento para efeitos de apreciação e decisão sobre a conduta penal que lhes era imputada, sendo que só esta se integra na noção de caso julgado.

Daí que, não tendo este ocorrido, não se possa manter o despacho recorrido ordenando o arquivamento dos autos por tal motivo.

5. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO


1. O despacho recorrido (transcrição):

No processo nº 969/03.3TACBR do Tribunal Judicial da Covilhã o Ministério Público deduziu acusação em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo nomeadamente contra A... , casado, engenheiro mecânico, nascido a 31.01.1972, em Moçambique, filho de (...) e de (...) , residente na Rua (...) , Covilhã.

Por despacho judicial de 12.05.2009o arguido A... foi declarado contumaz e, nessa sequência, ordenada a separação de processos dando assim origem aos presentes autos (cfr. fls. 879 a 880 e 902).

Resulta, dos elementos certificados nos autos, que neles foi acusado o arguido A... como co-autor de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº1, alíneas a) e c) e 104º, nº1, alíneas a), d), e) e g) e nº2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06 e seis crimes de falsificação de documento p. e p. pelos art. 255º alínea a) e 256º, nº1, alíneas a) e b) do Código Penal, imputando-se-lhe a prática dos seguintes factos:

(…)

“O arguido A... é sócio gerente da firma “X..., Lda.”, com sede em (... ) – Covilhã, cujo objecto é a actividade de construção civil.

Tal firma, com o NIPC (... ), encontrava-se registada em IRC desde 03/07/2002 no regime geral por opção, e em sede de IVA enquadrada no regime normal, com periodicidade trimestral.

Em Janeiro de 2003, o arguido A... , em conversa com o arguido B... disse a este que necessitava de arranjar despesas para a firma que representa, tendo-se o mesmo disponibilizado para o efeito.

O arguido B... contactou, então, o arguido C..., tendo este entregue àquele, uma factura em branco da “Z..., Lda.”, com o n.º 3219.

Na posse de tal factura, o arguido B... procedeu à emissão da mesma com os elementos fornecidos pelo arguido A... a quem entregou tal documento.

Em data incerta, mas posterior aos factos referidos no ponto 7., o arguido A... foi contactado por um seu amigo, de nome D..., residente em Alcaria, no sentido de lhe arranjar uma factura para poder receber o dinheiro respeitante a uma empreitada que realizara para a firma “ Y... , Lda.”, com sede no Fundão. Nessa altura, o arguido A... falou com o arguido C... tendo este emitido e entregue àquele, com os elementos pelo mesmo fornecidos, uma factura com o nº 3207, da “ Z... , Lda.”, datada de 31/12/2002, no valor de €2.140,00, a qual por sua vez o arguido A... entregou a D... . Passados alguns dias, este devolveu a aludida factura ao arguido A... por o legal representante da firma “ Y... , Lda.” não a ter aceite, por se tratar de uma factura falsa restituindo-a, o arguido A... , ao arguido C... . Em Janeiro ou Fevereiro de 2003, o arguido A... entregou ao arguido E... três facturas da firma “ W... , Lda.” no montante de 4.410.900$00, 3.276.000$00, 3.790.800$00, datadas de 23/10/2000, 20/10/2000 e 15/12/2000, respectivamente, com vista a integrarem a contabilidade da firma em nome individual daquele arguido, a qual tem por objecto a construção civil.

Em contrapartida das referidas facturas, o arguido E... entregou ao arguido A... a importância de 1.667.700$00, em dinheiro, correspondente aos 17% do IVA;

tais facturas haviam sido entregues ao arguido A... , pelo arguido C... para os referidos fins, tendo sido emitidas com os elementos fornecidos pelo arguido E... .

(…)

As facturas ora em causa são facturas forjadas, ou seja, facturas falsas, de empresas verdadeiras, que foram utilizadas para titularem transmissões de bens e prestações de serviços fictícios. Tais facturas não correspondem aos serviços efectuados pelas firmas “K... Lda.”, “ W... , Lda. e “ Z... ; Lda.”, apenas tendo servido para compensar custos com sem suporte documental. Os arguidos agiram consciente e livremente, em comunhão de esforços e identidade de fins, com intenção de obterem benefícios ilegítimos, apresentando despesas que que não se tinham verificado, celebrando, pois, um negócio simulado por forma a que, desta forma, às mesmas empresas não fosse liquidado imposto no seu valor real beneficiando assim de vantagens patrimoniais com a competente diminuição tributária por parte do Estado Português.”


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Por acórdão transitado em julgado, a 25 de Junho de 2009 (cfr. fls. 997), o mesmo arguido, A... , foi julgado no processo comum colectivo n.º 969/03.3TACBR do (extinto) 2º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã que conhecendo da factualidade acima descrita – veja-se pontos 7., 8., 9. e 14. da matéria de facto dada como não provada – em conformidade julgou improcedente a acusação pública deduzida e consequentemente absolveu o arguido da prática dos crimes que lhe estão imputados (cfr. fls. 912 a 925).

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Tendo em conta o teor do aludido acórdão os autos foram com vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto a ulteriores termos processuais.

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Em vista, o Ministério Público nos termos e com os fundamentos melhor exarados a fls. 992, pugna pelo prosseguimento dos presentes sustentando tratar-se um lapso de escrita na elaboração do referido acórdão que se limitou “a copiar” a identificação de todos os arguidos referidos no despacho de acusação.

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Apreciando e decidindo:

O princípio “ne bis in idem” com assento no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, estabelece que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.

Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal, a proibição da dupla apreciação significa que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez. Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal, mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.

Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo.

Na verdade, como refere Henrique Salinas, in “Os Limites Objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento - Fevereiro de 2012), página 686, disponível in http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10124/1/OS%20Limites%20Objectivos%20do%20ne%20bis%20in%20idem.pdf, “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.”

Tal como exemplar e expressivamente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2013, relator Desembargador Alves Duarte, disponível in www.dgsi.pt, “O que se proíbe é um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomemiuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado. Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica.

O actual Código de Processo Penal não contém uma regulamentação autónoma sobre o instituto do caso julgado, pois só em dois artigos se reporta a ele (artigos 84.º e 467.º, n.º 1), avançando a jurisprudência com várias alternativas, desde a aplicação analógica com base nos princípios gerais sobre o tema até à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigos 576º a 581º), quer de forma integral ou mitigada.

Mesmo a entender-se que o legislador não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em matéria de caso julgado, não pode coarctar-se o recurso às normas do processo civil (cfr., por expl., Ac. STJ de 18/12/97, C.J. ano V, tomo III, pág. 259).

Aplicando-se subsidiariamente (art.º 4.° do CPP) as regras do processo civil, o caso julgado apresenta-se como excepção dilatória (cfr. art.º 577.º, alínea i), de conhecimento oficioso do tribunal, que pressupõe a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir (art.º 581º).

Atentos os considerandos expendidos, os documentos certificados acima aludidos e o inter processual referido facilmente concluímos que a responsabilidade penal do arguido A... já foi apreciada e decida no processo comum colectivo n.º 969/03.3TACBR do (extinto) 2º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã não obstante aí ter sido ordenada a separação de processos.

Com efeito, neste processo tem-se em vista a apreciação dos mesmos comportamentos espácio temporalmente determinados que, bem ou mal, foi objecto de decisão no acórdão, acima aludido, já transitado em julgado.

Ora, se assim é, este processo crime constitui a duplicação de outro processo crime onde o comportamento imputado ao aqui arguido A... já foi apreciado e decidido. Daí que o arguido A... não pode ser “perseguido” criminalmente duas vezes pela prática dos mesmos factos.

E não se diga, como sustenta o Ministério Público, tratar-se de um mero lapso de escrita na elaboração do acórdão que “se limitou a copiar a identificação de todos os arguidos referidos na acusação” (cfr. fls. 992) dado que, no aludido acórdão, foi apreciada e decidida toda a factualidade imputada ao aqui arguido e, em conformidade com a matéria de facto dada como provada e não provada, foi proferida decisão absolvendo o arguido A... da prática de todos os crimes que lhe estavam imputados.

Nestes termos, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos, 577.º, alínea i) e 581.º do Código do Processo Civil, ex vi artigo 4.° do Código do Processo Penal, julga-se verificada a violação do princípio ne bis in idem/caso julgado determinando-se o oportuno arquivamento dos autos e, após trânsito, providencie pela cessação da declaração de contumácia do arguido A... .

Notifique, e oportunamente publicite, registe e dê baixa.


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Apreciando:

2. 1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir resume-se a saber se a absolvição do arguido A... constitui um mero lapso dado que no processo n.º 969/03.3TACBR havia sido declarado contumaz, e consequentemente o acórdão proferido no referido processo não faz caso julgado relativamente ao arguido A... .

2.2 O Código de Processo Penal regula, no seu artigo 380.º, a correcção da sentença, nomeadamente por erro ou lapso manifesto - ostensivo - cuja eliminação não importe modificação essencial e que portanto há-de decorrer do pensamento do julgador, a averiguar única e exclusivamente no contexto específico da sentença.

Da leitura do acórdão proferido no processo 969/03.3TACBR  - cfr. fls. 912 a 925 - verifica-se que embora se aluda no relatório ao despacho proferido em sede de audiência de julgamento a determinar a separação de processos em relação aos arguidos A... , F... e G... ( cfr. fls. 914), os factos não provados incluem os que na acusação lhe eram imputados, e no dispositivo são expressamente absolvidos “na total improcedência da acusação” sendo o arguido A... de um crime, como co-autor, de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº1, alíneas a) e c) e 104º, nº1, alíneas a), d), e) e g) e nº2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06 e de seis crimes de falsificação de documento p. e p. pelos art. 255º alínea a) e 256º, nº1, alíneas a) e b) do Código Penal.

É manifesto que naquele processo - e nunca nos presentes autos - a rectificação da sentença seria inadmissível porque importaria seguramente modificação essencial do decidido - (art. 380º, nº 1, b) do CPP)

É claro que existiu um erro grave, pois a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido - art 335º nº 3, do CPP. O que não foi observado, não obstante o despacho assinalado no relatório da sentença.

Contudo, toda e qualquer nulidade, incluindo a pressuposta ausência de defesa do contumaz, ao não ter defensor, cometida naquele processo nº 969/03.3TACBR, ficou sanada com o trânsito da decisão porque dela o MP não recorreu.

Assim, não obstante o erro cometido, não se vê como possa ser ultrapassado o efeito do caso julgado.

Com efeito, a suspensão do processo decorrente da declaração de contumácia não constituiu como devia, obstáculo ao conhecimento do mérito da causa.

Não tendo o MP reagido, recorrendo atempadamente da decisão proferida no processo comum colectivo nº 969/03.3TACBR, o que permitindo o caso julgado entretanto verificado, impede que nos presentes autos de recurso interposto da decisão acima transcrita, se conheça do acerto do ali decidido e se apreciem novamente os factos imputados ao arguido na acusação.

Como se assinalou no despacho recorrido, “… não se diga, como sustenta o Ministério Público, tratar-se de um mero lapso de escrita na elaboração do acórdão que “se limitou a copiar a identificação de todos os arguidos referidos na acusação” (cfr. fls. 992) dado que, no aludido acórdão, foi apreciada e decidida toda a factualidade imputada ao aqui arguido e, em conformidade com a matéria de facto dada como provada e não provada, foi proferida decisão absolvendo o arguido A... da prática de todos os crimes que lhe estavam imputados.

2.3 Da violação do princípio ne bis in idem

Sendo o acervo factológico nos presentes autos, o mesmo que foi apreciado no processo 969/03, impedido está o tribunal a quo de proceder ao respectivo julgamento, sob pena de violação do caso julgado, excepção que materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5 da CRP, resolvendo definitivamente o thema decidendum.

Com efeito, estabelece-se como princípio que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

“O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).

Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.

Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eademres). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomeniuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas:

(i) Para que proceda a excepção de caso julgado requere-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.

(ii) A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.

Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomenjuris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado.

O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".

A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao nomeniuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.

Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.

Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem". Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal.” - cfr. Ac. Rel. Coimbra de 10 de Julho de 2014.

Na verdade, convém atentar que “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto - Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226. Ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões condenatórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto». Aliás, o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, dando dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».

A propósito, convém atentar que “… é unânime na nossa doutrina, a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” - Ac. Rel. Coimbra, Rel. Des. Alberto Mira.

«Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados» - Frederico Isasca, idem, pág. 242 e 229,- apud, sublinhado nosso.

… Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».

No caso sub judice existe clara identidade de “objecto do processo” entre os presentes autos e os do processo comum colectivo nº 969/03.3TACBR.

Verifica-se pois uma situação de caso julgado, com o consequente acerto do despacho recorrido.

III - DISPOSITIVO

Termos em que, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Coimbra, 2 de Dezembro de 2015

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

 (Isabel Valongo - relatora)



 (Jorge França - adjunto)

Sem tributação.