Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1801/16.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PESSOAS SINGULARES
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.17-A CIRE
Sumário: No que respeita aos devedores pessoas singulares, o processo especial de revitalização ( PER) apenas é admitido àqueles que detenham uma empresa (“organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”).
Decisão Texto Integral:



            Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

S (…) e L (…) intentaram, ao abrigo do disposto no art.17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), processo especial de revitalização, alegando estar numa situação económica difícil susceptível de recuperação; mais alegam que trabalham por conta de outrem, auferem vencimentos de €505,00 e €620,00 e o seu passivo ascende a €481.423,49.

O pedido foi indeferido liminarmente.


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            Inconformados, aqueles recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1. Os ora Recorrentes, ao abrigo do disposto no artigo 17.º-A do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, intentaram o presente processo especial de revitalização, pois, apesar de estarem numa situação económica difícil, reúnem condições para a sua recuperação;

2. E, pese embora sejam ambos, neste momento, trabalhadores por conta de outrem, em tempos (nesses em que foram necessariamente os avalistas das operações financeiras da sociedade que constituíram e geriam), eram empresários;

3. E foi precisamente nesses tempos em que foram empresários, que os Recorrentes assumiram pessoalmente as dívidas que a sociedade comercial em causa detinha, isto para que conseguissem saldar as suas dívidas e obter a total satisfação dos credores, nomeadamente perante a Segurança Social, fornecedores e outros credores;

4. O recurso ao presente processo especial de revitalização é também ele um esforço visível dos Recorrentes para lograr concretizar os seus objectivos;

5. Na senda deste princípio interpretativo tem vindo a ser defendido, por alguma jurisprudência, alicerçada em doutrina nesse mesmo sentido, que onde a lei não distingue – artigo 17.º-A, n.º 1 e 2 do CIRE – não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção, donde podem recorrer ao procedimento especial de revitalização todos os sujeitos previstos no artigo 2° do CIRE, prevalecendo o critério da autonomia patrimonial tenham ou não personalidade judiciária;

6. Assim, o Tribunal da Relação de Évora, por decisão datada de 9 de Julho de 2015, proferida no âmbito do processo n.º 1518/14.3T8STR.E1, já referido, entendeu que, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos, o regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não;

7. Nesse sentido, também o douto Acordão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 21/01/2016, proferido no âmbito do processo n.º 1279/15.9T8STR.E1;

8. Sendo também o entendimento do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 2015, proferido no processo n.º 811/15.2T8FNC-A.L1-7, quando, en passant, refere que “as condições de acesso por parte de alguém que queira socorrer-se do PER, resultam do que dispõe o artigo 17.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRE, ou seja, todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil, ou em situação de insolvência iminente.”;

9. Na verdade, os arts. 17-A a 17-I não limitam a aplicação as pessoas colectivas ou equiparadas, prevendo-se expressamente que pode ser utilizado “por todo o devedor”;

10. Neste sentido, para além da jurisprudência supra citada, o Ac. RC de 30/6/2015 (proc. nº 1687/15), Ac. RE de 9/7/2015 (proc. nº 1518/14), Ac. RE de 5/11/2015 (proc. nº 371/15), Ac. RP de 16/12/2015 (proc. nº 2112/15) e Ac. RC de 07.04.2016 (proc. nº 3876/15.3T8ACB.C1), disponíveis em www dgsi.pt;

11. Podem assim recorrer ao procedimento especial de revitalização todos os sujeitos previstos no artº 2º, prevalecendo o critério da autonomia patrimonial tenham ou não personalidade judiciária;

12. A mesma posição é assumida por Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, 2015, 15-16), ao referir que “o PER é aplicável a qualquer devedor, pessoa singular ou colectiva, e ainda aos patrimónios autónomos, independentemente da titularidade de uma empresa (é aplicado na sua plenitude o

disposto no artº 2º, n.º 1” do CIRE (v. também, no mesmo sentido, Fátima Reis Silva, in Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente, 2014, 21; Paulo Tarso Domingues, in I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2014, 15);

13. Também Catarina Serra (O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 176) defende a mesma posição ao salientar que “o regime do PER aplica-se, assim, a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos (cfr. artº 1º, n.º 2, e artº 17º- A, n.º 1» do CIRE)”.

14. “O devedor não terá necessariamente de ser uma sociedade comercial. As pessoas singulares e demais pessoas colectivas e patrimónios autónomos previstos no artº 2º, n.º 1, do CIRE podem ser objecto de PER… Sendo certo que o PER foi concebido no interesse da recuperação do tecido empresarial, ainda assim as vantagens de um processo expedito e não estigmatizante pode até ser mais justificado no caso de pessoas singulares”, conforme defendem Nuno Casanova e David Dinis (O Processo Especial de Revitalização, 1ª edição, 13-14).

15. Também, acolhendo a mesmo entendimento veja-se Isabel Alexandre (II Congresso do Direito da Insolvência, 2014, 235), afirmando que “os sujeitos que podem utilizar o processo de revitalização não são necessariamente titulares de empresas… o processo de revitalização tem sido também utilizado por pessoas singulares não titulares de empresas” (…)»

16. Neste conspecto, será de entender ter-se por lícita a utilização do PER por pessoas singulares sem actividade empresarial ou comercial própria, como sucede com os aqui Requerentes.

17. É, sem dúvida e salvo melhor e douta opinião, a solução mais razoável e a mais justa.

18. Porquanto, outras mais pessoas singulares em condições análogas às dos Requerentes puderam recorrer ao PER.

19. Logo, é o princípio da igualdade que está posto em causa.

20. O douto despacho de que se recorre, viola a lei e coarcta gravemente os direitos fundamentais dos ora Recorrentes.

21. Deste modo, afigura-se-nos dever proceder o presente recurso, ou seja, deverá ser revogado o douto despacho de indeferimento liminar sob recurso, e

substituído por outro despacho que dê seguimento aos trâmites processuais previstos nos artos 17º-A a 17º-I do CIRE, a fim de ser decidido, oportunamente, sobre se os cônjuges requerentes devem beneficiar, e em que termos, da pretendida revitalização.


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            Não foram apresentadas outras alegações.

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A questão a decidir é a de saber se os devedores, pessoas singulares trabalhadoras por conta de outrem, podem utilizar o PER que suscitaram.

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            Os factos a considerar são os supra relatados.

Os recorrentes são trabalhadores por conta de outrem.

Eles foram sócios e gerentes de identificada sociedade.


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A questão relativa ao âmbito de aplicação do Processo Especial de Revitalização (PER) tem merecido uma resposta uniforme do Supremo Tribunal de Justiça.

Seguindo nós a jurisprudência dos acórdãos de 5.4.2016 (proc 979/15) e de 21.6.2016 (proc 3377/15), disponíveis em www.dgsi.pt, sintetizamos as seguintes considerações:

Apesar da letra da lei não o distinguir, o seu espírito tem subjacente a revitalização da atividade económica do devedor, entendido como agente económico, como organizador de capital e trabalho, visando o exercício de uma atividade económica. A principal motivação da criação do processo de revitalização foi, como expresso na sua exposição de motivos, “a manutenção do devedor no giro comercial” e “o combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”.

À luz desse propósito deve ser lido o articulado legal, o que conduz a uma sua interpretação restritiva.

Ora, o devedor não titular de empresa apenas detém uma "situação patrimonial estática", não susceptível de revitalização.

Os recorrentes, neste momento trabalhadores por conta de outrem, defendem que “em tempos (nesses em que foram necessariamente os avalistas das operações financeiras da sociedade que constituíram e geriam) eram empresários”.

Porém, invocarem eles a sua anterior qualidade de sócios gerentes de sociedade comercial não corresponde ao prenchimento do pressuposto relativo à titularidade de qualquer empresa.

A sociedade é uma pessoa jurídica diversa dos respectivos sócios, gerentes e administradores.

A empresa (organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica – conforme o art. 5º do CIRE) é da titularidade da sociedade e não dos respectivos sócios, gerentes ou administradores.

Sendo assim, na circunstância referida, os recorrentes não foram titulares de qualquer empresa. (Neste sentido, acórdão desta Relação, de 13.10.2015, proc 996/15, no sítio digital já referido.)

Por outro lado, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos artigos 249º e seguintes do CIRE, não coartando o direito daqueles de evitar a insolvência. E a lei fá-lo na consideração da diferença das situações possíveis, distinguindo a recuperação dos meios produtivos, pelo PER, da salvaguarda de um plano de pagamentos cautelar e anterior à insolvência, por aqueles devedores singulares, não havendo, por isso, uma violação do princípio (constitucional) da igualdade.

Este princípio também não pode ser considerado violado no caso porque decisões judiciais transitadas noutros casos, e não identificados, terão nesses entendido ser possível o recurso ao PER por pessoas singulares não titulares de empresas.

No caso, segundo a interpretação que temos por correta, a solução respeita o princípio de que todas as pessoas singulares não detentoras de empresa não podem recorrer ao PER.

Pelo exposto, não merece censura a decisão recorrida.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se aquela decisão.

            Custas pelos Recorrentes.

           

Coimbra, 2016-09-13

Fernando Monteiro ( Relator )

Carvalho Martins

Carlos Moreira