Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2085/12.8TBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
PASSAGEM DA GRAVAÇÃO
REJEIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO
NULIDADE FORMAL
CONFIRMAÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 640 Nº1 E 2 CPC, 220, 288, 289, 1143 CC
Sumário: 1.- Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes;

2.- A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, sendo que o cumprimento deste último preceito não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital com início às …e termo às …, nem com a simples referência parcial das declarações e dos depoimentos prestados;

3.- Não são susceptíveis de confirmação os negócios jurídicos nulos, por falta de forma;

4.- As partes podem, no entanto, criar um sucedâneo jurídico, consistente na possibilidade de renovarem ou reiterarem o negócio nulo, correspondendo esta novação a um novo contrato em substituição do antigo;

5.- A causa de pedir na acção executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental da sua demonstração;

6.- Se o título executivo, um escrito particular de mútuo, atestar um empréstimo que não ocorreu – pois provou-se que aconteceu de forma verbal e em momento temporalmente anterior -, esse título executivo que não consubstancia qualquer contrato de mútuo subjacente não pode servir para fundar o prosseguimento da execução, pois dele não deriva nenhuma obrigação exequenda, nem crédito do exequente, nem dívida do executado.

Decisão Texto Integral:



I – Relatório

1. A (…)  intentou acção executiva contra M (…), com base em escrito particular de mútuo, pedindo o pagamento das seguintes quantias: 25.000 € de capital; 1.300 € de juros moratórios, à taxa anual de 9,6%, desde 1.3.2012 até 17.9.2012; juros moratórios vincendos até integral pagamento.  

Alegou ter emprestado ao executado a referida quantia de 25.000 €, pelo prazo de 6 meses, com o pagamento de juros remuneratórios, à taxa anual de 9,6%, a pagar mensalmente. Decorrido o prazo acordado, o executado não reembolsou qualquer parte do dinheiro emprestado, tendo pago os juros moratórios até ao final de Fevereiro de 2012.

O executado M (…) deduziu oposição, alegando, em síntese, que o contrato de mútuo apresentado como título executivo é nulo por vício de forma, por violação do art. 1143º do Código Civil. Na data do aludido contrato nada foi emprestado. O que aconteceu é que em datas anteriores, por diversas vezes, o exequente emprestou-lhe dinheiro com a obrigação de o devolver, sem qualquer prazo fixado, e de pagar juros à taxa convencionada, quantias que ele executado foi pagando. Posteriormente, as relações pessoais entre as partes deterioraram-se e o exequente solicitou-lhe a assinatura do documento apresentado como título executivo. Assim, o valor de 25.000 €, inscrito no título executivo, reporta-se ao montante da dívida que é muito anterior à data da assinatura desse título, quantia que, contudo, está integralmente paga. Além disso, os juros reclamados são ilegais, nos termos do art. 1146º do CC.

Pugnou, ainda, pela condenação do exequente por litigância de má fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a 10.000 €.

O exequente contestou, alegando que o título executivo cumpre os requisitos de forma impostos pela lei, e confirmou que a entrega dos 25.000 € emprestados ocorreu antes da data da assinatura do título executivo, o que fizeram para documentar a dívida e os termos do acordo. Os únicos pagamentos efectuados pelo executado foram os juros acordados, o que fez até Janeiro de 2012, não tendo reembolsado qualquer parte do capital.

Pugnou, também, pela condenação do executado por litigância de má fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a 5.000 €.

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A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a oposição e na qual se decidiu:

- determinar a extinção parcial da execução na parte em que excede, as quantias de: 25.000 €, de capital; juros moratórios, sobre o capital referido, à taxa legal determinada nos termos do art. 559º, nº 1, do CC, vencidos desde 29.10.2012 e vincendos até efectivo e integral pagamento.

- absolver as partes do pedido de condenação por litigância de má fé.

*

2. O executado/opoente recorreu, concluindo que:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

 

II – Factos Provados

1. O Exequente A (…) instaurou, a 18-09-2012, o Processo Executivo ao qual os presentes autos se encontram apensados contra o Executado M (…), com vista à cobrança coactiva de créditos no valor global de €26.300,00 (fls.1 a 3 do Processo Executivo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

2. No Processo Executivo ao qual os presentes autos se encontram apensados o título executivo é um denominado contrato de mútuo, remunerado com o pagamento de juros, celebrado entre as partes, pela quantia de €25.000,00, e datado de 20-12-2010 (original a fls.41 e 42 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

3. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 1996 e anterior a 20-12-2010, mediante acordo verbal entre as partes, o Exequente entregou por empréstimo ao Executado a quantia de €25.000,00, nas condições que posteriormente vieram a ser formalizadas no título executivo a 20-12-2010, com excepção do formalizado prazo para a restituição dos €25.000,00 emprestados.

4. A quantia de €25.000,00 mencionada no título executivo não foi entregue pelo Exequente ao Executado na data de 20-12-2010, nem posteriormente a essa data.

5. A partir do recebimento dos €25.000,00 emprestados, o Executado efectuou diversas entregas mensais de dinheiro ao Exequente, pelo menos até Janeiro 2012, inclusive.

*

Factos não Provados

- O executado restituiu ao exequente os € 25000 que este lhe emprestou.

(…)

*

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Inexistência de mútuo subjacente ao título executivo.

2. O recorrente pretende que o facto não provado acima referido passe a provado, e mais dois outros factos que aponta nas suas conclusões de recurso, nos parágrafos 2º e 4º (que o executado/recorrente, durante 6-7 anos efectuou entregas mensais de 530 € ao exequente, as quais se destinavam ao pagamento da quantia mutuada; que antes da data constante do contrato executado, o executado entregou ao exequente, quantias mensais em dinheiro, para pagamento de um empréstimo contraído, entre 1998 e 2010).

Antes de mais, cabe desde já dizer que não se compreende que o executado/recorrente pretenda seja dado como provado o referido 4º parágrafo, visto que tal matéria já resulta assente da conjugação dos factos provados sob 3. a 5.

E quanto ao 2º parágrafo, trata-se de matéria não alegada na p.i. da sua oposição, para além de ser meramente concretizadora do facto essencial, esse sim, alegado pelo ora recorrente na dita oposição (de acordo com o ónus que sobre si impendia, fixado no art. 5º, nº 1, do NCPC), de que restituiu ao exequente os 25.000 € que este lhe emprestou. Ora, este facto essencial alegado mas não provado pelo executado/recorrente mostra-se pelo mesmo impugnado, pelo que a análise a levar a cabo deve e irá recair apenas sobre o dito facto não provado.

O apelante fundou a mencionada impugnação no depoimento das testemunhas (…) e numa suposta quitação dada pelo exequente (que vem mencionada como doc. nº 1, junto com a p.i.).

Anote-se, desde logo, que tal documento (nº 1) nunca foi junto aos autos (como o recorrente bem sabe, e resulta de fls. 45) pelo que é incompreensível e até inadmissível que o venha referir em alegações de recurso.      

Restam, por isso, para ponderação apenas as duas identificadas testemunhas.     

Nas alegações o recorrente menciona parcialmente o que elas terão dito/afirmado na audiência de julgamento. Mais refere que tais depoimentos estão gravados no sistema digital, com início às …e termo às … .

Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise critica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das suas alegações de recurso verifica-se que o recorrente não cumpriu o 5º dos indicados requisitos legais, pois não indicou, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que funda a sua impugnação, baseada nos aludidos depoimentos das testemunhas que mencionou, apesar de, face à gravação efectuada (vide as respectivas actas a fls. 56v e 63), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos.  

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente no aludido nº 2, a) do art. 640º, do NCPC não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados com início às …e termo às …, nem sequer com a sintética transcrição parcial das declarações e dos depoimentos prestados, já que esta é meramente facultativa. Não deixando a lei neste ponto qualquer dúvida, face aos termos claros e terminantes com que está redigida (vide igualmente no mesmo sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 685º-B, págs. 62/64, e A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, notas 3. e 4. ao referido artigo, págs. 138/142, normativo do CPC semelhante ao actual 640º do NCPC, e a título de exemplo os recentes Ac. desta Rel. de 10.2.2015, Proc.2466/11.4TBFIG e de 17.12.2014, Proc.6213/08.0TBLRA, disponíveis em www.dgsi.pt).

No caso, o recorrente limitou-se a referir, que os apontados depoimentos se encontram gravados no sistema digital com início às …e termo às …, mencionando, ainda, parcialmente, os aludidos depoimentos das 2 referidas testemunhas, em vez de indicar com exactidão as passagens da gravação, por ex. do minuto 4,20 ao minuto 4,55, do minuto 10,10 ao 10,50, etc, em que as ditas testemunhas depuseram, no sentido supostamente por elas afirmado/defendido. Veja-se, por exemplo, o caso da testemunha R (...) que depôs durante cerca de 49 m, em que não vem indicado nenhuma passagem exacta das declarações que o recorrente transcreveu.

E era o que devia ter observado, a fim de permitir, como pretendia, a eventual resposta de provado ao apontado facto, depois de prévia audição por esta Relação e subsequente análise e ponderação de tais depoimentos.

Tem, por conseguinte, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da matéria de facto de ser rejeitada, relativamente a tal ponto enumerado pelo recorrente, com base em tais concretos elementos de prova.  

Desta sorte, não procede a impugnação da matéria de facto.  

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

Sobre a validade formal do contrato subjacente ao título executivo:

Prevê o artigo 1143.º (forma) do Código Civil que:

Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a €25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a €2.500,00 se o for por documento assinado pelo mutuário.”.

No caso concreto:

Provou-se que em data não concretamente apurada, mas posterior a 1996 e anterior a 20-12-2010, mediante acordo verbal entre as partes, o Exequente entregou por empréstimo ao Executado a quantia de €25.000,00, nas condições que posteriormente vieram a ser formalizadas no título executivo a 20-12-2010, com excepção do formalizado prazo para a restituição dos €25.000,00 emprestados.

Traduzem estes factos, a nosso ver, que entre as partes foi celebrado um contrato de mútuo, que é “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.” – artigo 1142.º do Código Civil.

O contrato celebrado é, no entanto, nulo por falta de forma.

Com efeito, o artigo 1143.º do Código Civil, em qualquer uma das redacções vigentes no período apurado em que ocorreu a celebração do contrato, exigia, no mínimo, a celebração do contrato por documento assinado pelo mutuário. No caso “sub judice” o contrato não obedeceu ao requisito de forma.

A inobservância da forma legalmente prescrita para os negócios jurídicos produz a sua nulidade (artigo 220.º do Código Civil). Tal vício, uma vez declarado, obriga os contraentes a restituir o que tiver sido prestado – artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil.

É certo que as partes, posteriormente, a 20-12-2010, vieram a formalizar o contrato de mútuo através do documento que é o título executivo. Contudo, a nulidade formal que vicia o contrato desde a sua celebração não é passível de sanação, nem as partes declararam no contrato reduzido a escrito qualquer vontade de novação (artigo 857.º do Código Civil) em relação ao contrato nulo.

Desta forma, é forçosa a aplicação do “assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/95, de 28/03/1995, segundo o qual: “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.”.”.

Estamos de acordo com a decisão recorrida até ao penúltimo parágrafo da parte que se transcreveu. Mas já discordamos, quanto ao referido no último parágrafo respeitante ao mencionado Assento, que no caso concreto não temos por ser de aplicação necessária. Expliquemos.

Efectivamente o mútuo celebrado entre as partes em data incerta, mas posterior a 1996 e anterior a 20.12.2010, ocorreu de forma verbal e portanto, por vício formal tal mútuo é nulo. As partes posteriormente, em 20.12.2010, deram forma a tal anterior mútuo, como consta do título executivo (com excepção da parte respeitante ao prazo de restituição da quantia mutuada).

No entanto, essa formalização à posteriori não sana a nulidade formal do referido mútuo, já que em princípio, salvo casos contados previstos na lei, não é possível afirmar-se genericamente que podem confirmar-se actos nulos, mas apenas anuláveis (art. 288º, a contrario, do CC).

M. Pinto (Teo. Ger. Dir. Civil, 1ª Ed., pág. 471) alerta, porém, para a hipótese de haver um sucedâneo da confirmação, que consiste na possibilidade de as partes renovarem ou reiterarem o negócio nulo, correspondendo esta renovação num novo contrato.

Igualmente Menezes Cordeiro (em Tra. Dir. Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4ª Ed., 2014, pág. 968) admite a possibilidade de renovação do contrato, que naturalmente implicaria a concordância de ambas as partes.

E Oliveira Ascensão (Teo. Ger. Dir. Civil, Vol. II, 2ª Ed., págs. 413, 415 e 418) afastando a susceptibilidade de confirmação de nulidades absolutas, como é o nosso caso, por se tratar de nulidade formal - no mesmo sentido indo o Ac. do STJ de 23.5.1973, BMJ, 225, pág. 236 - também concebe a hipótese de as partes novarem o negócio, substituindo o negócio inválido por outro sem defeito, havendo, assim, um novo negócio.      

Ora, não sendo o mútuo celebrado verbalmente sanável, por formalização posterior, também se constata que o denominado contrato de mútuo celebrado entre as partes em 20.12.2010, que é o título dado à execução, não novou o anterior contrato de mútuo, como bem assinala a decisão recorrida, porque inexiste manifestação de vontade expressa nesse sentido, no aludido escrito particular, como resulta do disposto nos arts. 857º e 859º do CC.

Aqui chegados, depara-se a seguinte realidade: temos um contrato de mútuo, datado de 20.12.2010, que é o contrato dado à execução – e único alegado pelo exequente no requerimento inicial executivo – em que sabemos que a quantia de 25.000 € não foi mutuada nesse dia, ou posteriormente, pelo exequente ao executado, quando a lei exige a datio rei, isto é exige que haja dinheiro emprestado por um dos contraentes ao outro contraente mutuário para que se constitua um contrato de mútuo (contrato quoad constitutionem), como decorre do art. 1142º do CC.

Isto é, subjacente ao título executivo, está comprovado inexistir qualquer contrato de mútuo.

Esta conclusão, leva-nos para outra problemática, referente à natureza e função do próprio título executivo.

Ensina Lebre de Freitas (A Acção Executiva, À luz do CPC de 2013, 6ª Ed., pág. 81) que o título executivo extrajudicial é um documento escrito que constitui prova legal para fins executivos, e que a declaração nele representada tem por objecto o facto constitutivo do direito de crédito ou é, ela própria, este mesmo facto.

Por outro lado, professa (págs. 86/90) que o título executivo é condição necessária e suficiente da acção executiva.

Necessária porque não há execução sem título.

Suficiente porque, perante ele, deve ser, em regra, dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.

Contudo, apurada uma desconformidade entre o título e o direito que se pretende fazer valer fica impedida a realização dos respectivos actos executivos, desconformidade essa que pode resultar, tanto no plano da validade formal como no campo da validade substancial, das declarações de vontade e de ciência que lhe constitui o conteúdo ou do acto jurídico a que a declaração de ciência se reporte, ou ainda de causa que afecte a ulterior subsistência da obrigação exequenda (apuramento esse que pode derivar do próprio título executivo, ou de factos alegados no requerimento inicial, ou de prova produzida em embargos à execução, etc). 

Finalmente, doutrina (págs. 90/91) que deve ser recusada a identificação do título com a causa de pedir, pois não constituindo aquele um acto ou facto jurídico tal construção não se harmoniza com o conceito de causa de pedir – esta é o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente, nos termos do art. 581º, nº 4, do NCPC. Esta interpretação é de sufragar e é a que vem sendo seguida pelo STJ, por ex. nos Acds. de 15.5.2003, Proc.02B3251 e 10.11.2011, Proc.4719/10.0TBMTS-A.

Ou seja, o fundamento substantivo da acção executiva é a própria obrigação exequenda, sendo que o título executivo é um mero instrumento documental legal de demonstração da existência do alegado direito de crédito, constituindo a condição daquela acção.         

Importa, agora concluir, atendendo ao que o acervo factual provado nos demonstra.

Foi dado à execução um título, consubstanciado em escrito particular, datado de 20.12.2010, que comprovaria um mútuo de 25.000 € do exequente ao executado. Temos, por isso, um documento condição necessária e suficiente da acção executiva.

Só que a declaração nele representada, que devia ser o facto constitutivo do direito de crédito, não corresponde à realidade, já que nesse dia ou posteriormente nada foi emprestado pelo exequente ao executado. O verdadeiro empréstimo ocorreu de forma verbal em momento temporalmente anterior. Existe, portanto, uma desconformidade entre o título e o direito que se pretende fazer valer. É que a causa de pedir apresentada pelo exequente seria o dito empréstimo formalizado particularmente em 20.12.2012, e nessa altura nada ocorreu. Ou seja, não está provado que subjacente ao indicado título executivo haja sido contratualizado algum empréstimo. Pelo que, não provada a existência de alguma obrigação exequenda, não provado que desse título decorre algum crédito, a execução não pode ser levada a cabo, já que a dívida supostamente decorrente de tal título não existe.    

Como assim, sem prejuízo da eventual formação de título executivo em acção declarativa adrede a apresentar, a oposição do executado/oponente procede, devendo extinguir-se a execução.  

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes;

ii) A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, sendo que o cumprimento deste último preceito não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital com início às …e termo às …, nem com a simples referência parcial das declarações e dos depoimentos prestados;

iii) Não são susceptíveis de confirmação os negócios jurídicos nulos, por falta de forma;

iv) As partes podem, no entanto, criar um sucedâneo jurídico, consistente na possibilidade de renovarem ou reiterarem o negócio nulo, correspondendo esta novação a um novo contrato em substituição do antigo;

v) A causa de pedir na acção executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental da sua demonstração;

vi) Se o título executivo, um escrito particular de mútuo, atestar um empréstimo que não ocorreu – pois provou-se que aconteceu de forma verbal e em momento temporalmente anterior -, esse título executivo que não consubstancia qualquer contrato de mútuo subjacente não pode servir para fundar o prosseguimento da execução, pois dele não deriva nenhuma obrigação exequenda, nem crédito do exequente, nem dívida do executado.  

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a sentença apelada, e, consequentemente, se declarando extinta a execução.

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Custas pelo exequente/recorrido.

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Coimbra, 9.5.2017

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias