Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1335/13.8TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: FACTOS COMPLEMENTARES
CRITÉRIOS DA SUA ADMISSIBILIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – J.C. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 5º NCPC.
Sumário: I- Os factos complementares ou concretizadores dos essenciais que compõem a causa de pedir nos termos do art. 5º do CPC, para poderem ser tomados em consideração pelo tribunal têm que ser considerados como provados na sentença e previamente a tal ser dado conhecimento às partes que irão ser acrescentados.

II- Para que se possam dar como provados os factos complementares ou concretizadores é necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tenham ficado provados, não sendo de admitir que não sendo provados esses factos essenciais da causa de pedir, se julgue a acção procedente com base nos ditos complementares ou concretizadores mas que afinal substituam os da causa de pedir que não se tenham provado.

Decisão Texto Integral:




                   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Em processo comum com forma ordinária, M... intentou acção declarativa fundada em responsabilidade civil extracontratual contra S..., Lda., pedindo a condenação desta a título indemnizatório de danos resultantes de queda, nas instalações da ré :

- a quantia de 86.064,99€ (oitenta e seis mil e sessenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos) por todos os danos patrimoniais [sendo € 85.496,40 a título de lucros cessantes – perda de rendimentos pelo período de 17 anos até perfazer a idade da reforma; e dispêndio medicamentoso e deslocações de € 568,59];

- a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros) a título de danos morais à A.;

- e juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

 A queda ocorrida no decurso de festa de passagem de ano teria resultado das más condições do piso molhado.

Na contestação a Ré impugnou os factos onde se lhe atribui responsabilidade e ainda as consequências do acidente, atribuindo tal queda ao facto de a autora usar sapatos de salto muito alto, trazendo numa mão uma taça de espumoso, que ia consumindo, e na outra um prato com comida.

Em incidente de intervenção principal espontânea deduzido pelo Centro Hospitalar ..., EPE, pretensão no sentido do ressarcimento de despesas hospitalares da assistência prestada à autora, perfazendo € 4491,90, nos termos e ao abrigo do art. 495º, nº 2 do CCivil.

Admitido o incidente de intervenção principal, foi feito o saneamento do processo com enunciação do objecto do litígio e organização dos temas de prova, sem reclamação.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu na totalidade a Ré dos pedidos.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a autora concluindo que:

...

Termos em que, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que faça a boa aplicação da lei e do direito nos termos supra expostos assim se fazendo justiça”.

A recorrida contra alegou defendendo a confirmaçºoa de sentença apelada.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

 Fundamentação

O tribunal, em primeira instância deu como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

...

2.Factualidade não provada:

… …

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso remete para a apreciação da nulidade da sentença por oposição entre ao fundamentos e a decisão e para impugnação da matéria de facto, pretendendo a recorrente que seja fixado como não provado o facto h) dos considerados como provados na sentença e como provado o facto 9 dos julgados não provados na sentença.

… …

Quanto à invocação da nulidade da sentença por contradição/oposição entre os fundamentos e a decisão, a recorrente situa esse vício no facto de, na motivação dos factos provados e não provados, o tribunal a quo ter deixado expresso que “a única sujidade eram papelinhos e serpentinas” e daí não entender a recorrente como se pôde concluir na sentença que “não resulta da factualidade dada por demonstrada que a ré não cumpriu os seus deveres, de modo a assacar-lhe a responsabilidade pelo acidente sofrido (…)”.

Abordando esta questão a partir da origem, que se situa na petição inicial, verificamos que aí, nos arts. 6 a 10, como únicos factos geradores da responsabilidade da ré pelo acidente descrito, invocou que: “ 6. o pavimento do 1.º andar da danceteria estava molhado e escorregadio tendo sido necessário proceder à limpeza de algumas zonas onde existiam desperdícios de comida.

7. Embora a Ré tenha procedido à limpeza de algumas zonas do pavimento, a verdade é que, não foram colocadas placas identificativas de piso molhado e escorregadio.

8. Note-se que, o pavimento do 1.º andar da danceteria estava especialmente escorregadio. Com efeito,

9. além de ter sido aí servida a ceia buffet da passagem de ano encontravam-se, ainda, restos de comida e espumoso no chão.

10. A verdade é que, por o piso do 1.º andar estar molhado e escorregadio a A. ao deslocar-se escorregou e caiu batendo com força com o braço direito no chão.”

Da leitura destes factos extrai-se que a autora apresentou como única causa para a sua queda o chão estar molhado, sem que a ré o tivesse sinalizado e, ainda, em haver nele restos de comida e espumoso.

Posto que exista uma certa incongruência nesta forma de articulação, já que primeiro parece que a autora quer significar que o chão estava molhado depois de ter sido limpo porque não existia sinalização (que só se coloca depois da operação de limpeza e para informar que o chão ainda esta húmido), a seguir acrescenta que, afinal, o chão estava molhado por haver nele (sem que tivesse sido limpo) “espumoso e restos de comida”, mesmo assim , e ultrapassando esta incongruência que não é irrelevante, observamos que em nenhum momento da petição, ou posteriormente, a autora aludiu a que existiam também papéis, celofane ou serpentinas no chão e, menos ainda, que tivessem sido estes a provocar a sua queda. Restringiu a sua invocação ao piso molhado e com restos de comida e excluiu da causa fundamento e do nexo de causalidade entre eles e a queda, qualquer outra razão (fosse ela a existência de papeis, serpentinas, objectos avulsos ou outra).

Aliás, percebe-se a alegação deduzida quanto a líquidos e comida no chão porque dela faz emergir o nexo de causalidade assente numa potencialidade de provocação da queda que, no caso dos papéis, em si mesmos, já não existe, a não ser que se alegasse concretamente, para lá da existência desses materiais no chão, a especial natureza dos mesmos para inscreverem o aludido nexo.

Partindo destas observações, no despiste da problemática que a recorrente não suscita mas que pode e deve suscitar-se, temos presente que constitui dever do autor, nos termos do art. 5 nº1 do CPC (que replica o 264 nº1 do código anterior) alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido.

No CPC anterior o art. 264 nº1 autorizava o juiz a fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos “instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa”, e autorizava ainda no seu nº2 a utilizar os factos complementares que fossem complemento ou concretização de outros articulados e resultassem da instrução e discussão da causa, isto desde que a parte interessada manifestasse vontade deles se aproveitar e à parte contrária fosse dada a possibilidade de contraditório.

Por sua vez, no CPC de 2013 - art. 5 - mantém o sentido daquelas anteriores disposições, salvo que o juiz não precisa agora de perguntar pelo assentimento da parte interessada quanto à introdução dos factos no processo.

 A alteração existente de um para outro diploma pretende,“ tanto quanto se possa perceber, enfatizar que apenas os factos essenciais têm se ser alegados na petição inicial, deixando clara a regra, que já existia, que os factos instrumentais podem ser mais tarde adquiridos no processo”[1].

Ainda que se tenha deixado de fazer referência no CPC de 2013 ao princípio do dispositivo, ele encontra-se na liberdade das partes da decisão sobre a propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar)[2].

Os factos não principais dividem-se, na terminologia do Código, em factos instrumentais, concretizadores e complementares.

Esta última categoria foi incluída no texto do Código em 95/96 (no então n.º 3 do art. 264.º), mantendo-se agora com uma ligeira alteração. Antes eram designados como “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outras que as partes hajam oportunamente alegado”, hoje “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado”. A diferença está no desaparecimento do qualificativo essenciais.

Na noção de Castro Mendes[3], factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes e, para Teixeira de Sousa[4], são aqueles que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.

Numa distinção clara, Lopes do Rego [5] escreve que “factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, enquanto que “factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu”.

Num mesmo registo de clareza tomamos a escrita de Teixeira de Sousa ao alertar para que “(…) nunca se entendeu o (agora) disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC como permitindo suprir a inexistência ou insuficiência da causa de pedir; logo, não se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a), nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma a causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser completado por nenhum outro facto.”[6]

São assim factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à acção ou à excepção os quais se podem dividir em essenciais ou complementares (ou concretização dos que as partes alegado), sendo os primeiros aqueles que constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes dão a eficácia jurídica necessária para fazer essa actuação[7], deixando-se registado que se são complemento ou concretização dos essenciais, em boa verdade e rigor lógico não se podem provar os segundos sem que os primeiros o estejam.

Ora, tudo o que se deixa exposto, serve para que concluamos que a circunstância de na sentença se ter feito alusão, descriminando negativamente, a existência de papéis e serpentinas no chão, não releva para que se possa reclamar (e só implicitamente e não de forma expressa  a apelante o parece fazer)  que a existência de papéis e ou serpentinas no chão se traduzia num facto complementar ou concretizador dos que a autora houvesse alegado, admissível mesmo que não alegado. E isto por duas ordens de razões. A primeira, mais evidente, porque o tribunal não considerou esse facto provado e como tal não o associou à discussão nos autos. A segunda, porque nenhuma das partes, por maioria de razão a autora, o assinalou ou fez questão de o inscrever no acervo dos que pretendia discutir e sobre o qual pretendia definição de prova, como provado ou não provado, nem o julgador comunicou nos termos do art. 5 nº2 al.b) do CPC às partes a alusão a esse facto (que não declarou provado) para que elas se pudessem pronunciar.

Além do mais, num juízo que nos parece substancialmente definitivo, nunca esse facto se poderia ter como complementar ou concretizador dos essenciais (e menos ainda instrumental) uma vez que ele, a pretender-se que tivesse ficado provado e fosse tomado em consideração na decisão a proferir seria sempre um “facto alternativo” ou “substitutivo” da causa de pedir não alegado, e por isso não admissível.

Como escrito antes, a autora articulou na petição inicial que a sua queda se deveu ao facto de o chão estar escorregadio, fosse porque estava molhado, fosse porque tinha restos de comida, Neste âmbito, a discussão da prova desses factos e do seu nexo de causalidade circunscrevia-se à observação da cerificação de um piso molhado (ou não seco) em resultado dessas circunstâncias (líquidos e/ou comida).

Ora, o querer-se introduzir (se tivesse sido dado como provado e não foi) que a queda existente teria resultado, não do chão estar molhado mas sim da existência de papéis e serpentinas no chão, deslocaria a causa de pedir e o nexo de causalidade de uns factos para outros, diferentes, alternativos e substitutivos e por isso, não complementares nem concretizadores.

Podemos discutir se seria ou não complementar e concretizador, caso se tivesse provado que o chão estava escorregadio, quaisquer factos que embora não alegados tivessem resultado demonstrados da discussão em julgamento no sentido de o chão estar molhado (não por haver nele comida ou bebida) mas outro motivo qualquer (v.g. desde a condensação até à queda no chão de alguém que com a transpiração o pudesse tornar escorregadio como acontece nos recintos desportivos). Neste caso a alegação do chão estar molhado, com a prova desse facto essencial alegado que era o chão estar escorregadio, poder-se-ia questionar se se inseria numa mesma linha de concretização e complementaridade.[8]

No caso, repete-se, mesmo que o tribunal tivesse dado como provado (e não deu por tal não constar nos factos descriminados na sentença) que havia papéis e serpentinas no chão no momento da queda da autora, de forma alguma se podia pretender que esse facto era complementar ou concretizador do antes alegado uma vez que, então, teria de admitir-se o inadmissível e que era, que não se tendo provado os factos essenciais da causa de pedir, se poderiam substituir estes por outros, provados sem alegação no decurso da audiência, e que não eram complementares, concretizadores ou mesmos instrumentais de nenhuns outros já que os essenciais teriam sido julgados não provados.[9] 

Apreciando agora com estas reflexões normativas a invocada nulidade da sentença por oposição entre a fundamentação e a decisão geradora da nulidade prevista no art. 615 nº1 al. c) do CPC teremos de advertir liminarmente que os fundamentos a que alude o preceito não são os que constem da motivação da matéria de facto (art. 607 nº4), ou seja, da análise crítica das provas e a especificação da convicção do julgador, porquanto se houver deficiente motivação, a consequência é a contida no art. 662 nº d) do CPC traduzida na remessa dos autos ao tribunal de primeira instância para que fundamente regularmente e suficientemente “a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa”. 

Devemos pois ter algum rigor quando pretendemos abordar a nulidade da sentença consistente na oposição entre os fundamentos e a decisão para ter desde logo presente que os fundamentos que aqui interessam não se encontram na motivação da matéria de facto mas tão só entre os factos que ficaram provados, a sua subsunção jurídica e a decisão de direito.

Na fundamentação da decisão, no âmbito do art. 615 do CPC, tem-se em vista que o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que partindo dos factos obtidos vai até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de maneira racional, lógica e congruente seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[10]

Rematando esta parte das conclusões de recurso, cremos que elas improcedem porque:

a sentença não deu, nem poderia dar como provada[11] qualquer matéria referente à existência de serpentinas e confettis no chão e, como assim, não a poderia subsumir nas normas jurídicas;

a circunstância de as testemunhas ou as próprias parte poderem referir quaisquer factos em audiência, ainda que não alegados, mesmo a serem estes verdadeiros e aceites pelo tribunal como tal, não lhes dá a força de facto provado se não for considerado expressamente como tal pelo juiz motivando-o, nem de confissão, se não se tratar de um dos factos alegados uma vez que a confissão nos autos se reporta à confissão de facto que tenham sido articulados e não outros[12];

- os factos fixados como provados na sentença e tomados em consideração na decisão proferida, subsumidos às normas jurídicas aplicáveis, conduzem à absolvição ré sem qualquer incongruência ou contradição por não terem logrado prova os geradores, como causa alegada, da obrigação de indemnizar (que o chão estivesse molhado ou com restos de comida) 

Quanto à nulidade da sentença por não se ter pronunciado sobre questões que devesse pronunciar – violação da primeira parte da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – a recorrente suatenta que embora a sentença refira várias vezes que havia sujidade no chão pela existência de “papel celofane, confetti ou serpentinas que terão caído ao chão em resultado da comemoração da passagem de ano” não se pronunciou sobre tal questão, sobre a verificação de tal facto que, aliás, poderia e deveria ter conduzido, nos termos supra expostos, a uma solução diversa daquela a que o Tribunal chegou até porque o mesmo deveria, inclusive, ter sido incluído na matéria de facto provada, tanto mais que se trata de facto provado por confissão das partes.

Na análise destas conclusões de recurso reparamos que elas repetem os mesmos argumentos da nulidade invoca anteriormente [a do art. 615 nº1 al. c)] mas agora na perspectiva de uma outra.

Lembrando o que é essencial e deixámos tratado quanto a não ter sido fixado pelo tribunal como provado que o chão do estabelecimento da ré se encontrava com papéis serpentinas ou confettis ou com sujidade no momento e no local exacto da queda da autora; que não poderia, no caso concreto, ter ficado provada essa matéria por tal facto não ter sido alegado pela autora e não ser complementar, concretizador ou instrumental de qualquer outro que sendo essencial tivesse ficado provado; que não é confissão o que em depoimento de parte em audiência as partes digam quanto a factos que não se encontrem alegados e não sejam complementares, concretizadores ou instrumentais de outros que tenham sido alegados e que venham a ser fixados como provados;

lembrando tudo isto, dizíamos, carece totalmente de fundamento que a Apelante pretenda, como omissão de pronúncia, que o tribunal não tenha aludido na decisão, no tratamento da responsabilidade civil da ré, factos que não foram julgados provados nem poderiam ser, nem se poderiam em qualquer caso tomar em consideração nos termos sobreditos[13].

Improcedem assim, também nesta parte as conclusões de recurso.

… …

Porque a alteração da decisão de direito se baseava, na Apelação, exclusivamente, na invocação da nulidade da sentença e na impugnação da matéria de facto, julgadas estas improcedentes deve manter-se sem alteração a decisão proferida em primeira instância.

 Porém deixamos expresso que como decorre do disposto no art.º 483.º do Código Civil,../../../../../Documents and Settings/fa00140/Os meus documentos/Jurisprudência/Cível/1ª Sec/Drª Maria Domingas Sim├Ães/Apelação 1393-11.doc - _ftn5 a obrigação de indemnizar com origem na responsabilidade civil subjectiva depende da verificação cumulativa de determinados pressupostos, a saber: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Ora, como o primeiro dos enunciados pressupostos é a existência de um comportamento -que não tem de consistir necessariamente numa acção, podendo traduzir-se numa omissão, posto que seja dominável pela vontade, neste caso das omissões resulta do disposto no art.º 486.º, que a imputação ao agente da conduta omissiva exige que sobre ele recaia o dever de praticar o acto omitido, uma vez que inexiste um dever genérico de evitar a ocorrência de danos. “Daí que para alguém ser responsável por omissão pelos danos sofridos por outrem se exija, para além dos outros pressupostos da responsabilidade delitual, um dever específico, que torne um particular sujeito garante da não ocorrência desses danos”[14]../../../../../Documents and Settings/fa00140/Os meus documentos/Jurisprudência/Cível/1ª Sec/Drª Maria Domingas Sim├Ães/Apelação 1393-11.doc - _ftn6.

Tal específico dever pode resultar de contrato, ou ser imposto por lei, como ocorre na previsão dos arts. 491, 492 e 493, havendo ainda que ter em consideração, neste domínio, os denominados deveres de prevenção do perigo (ou, noutra terminologia, deveres de segurança no tráfico), cujo acolhimento permite estender a responsabilidade delitual por omissão a todo aquele que, exercendo o domínio de facto sobre uma coisa, móvel ou imóvel, ou determinada actividade, sendo aquela e esta susceptíveis de causar danos a terceiro, não tome as providências destinadas a evitá-los[15].

Do nº 1 do art.º 483.º extraem-se ainda com clareza as modalidades que a ilicitude pode revestir: violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, incluindo ainda os assinalados deveres de segurança no tráfico[16], que terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos factores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de autoprotecção do lesado, sob pena de “uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa” [17].

                Deixando estas considerações, o que concluímos, como na sentença recorrida , é que os factos provados não permitem confirmar um juízo de ilicitude, culpa ou bem assim de um nexo de causalidade, por não ter ficado demonstrado que a ré não cumpriu os seus deveres, de modo a assacar-lhe a responsabilidade pelo acidente sofrido.

                Assim, improcede na totalidade a Apelação.

                Síntese conclusiva:

- Os factos complementares ou concretizadores dos essenciais que compõem a causa de pedir nos termos do art. 5 do CPC, para poderem ser tomados em consideração pelo tribunal, têm que ser considerados como provados na sentença e, previamente a tal ser dado conhecimento às partes que irão ser acrescentados.

- Para que se possam dar como provados os factos complementares ou concretizadores é necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tenham ficado provados, não sendo de admitir que não sendo provados esses factos essenciais da causa de pedir, se julgue a acção procedente com base nos ditos complementares ou concretizadores mas que afinal substituam os da causa de pedir que não se tenham provado.

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.

Coimbra,  7 de Novembro de 2017

Relator: Des. Manuel Capelo

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo


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[1] Mariana França Gouveia, in O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual, p. 604
[2] José Lebre de Freitas, introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, editora, p. 136 e Mariana França Gouveia, op. e loc . cit
[3] Direito Processual Civil, II, p. 208
[4] Introdução ao Processo Civil, p. 52
[5] Comentário ao CPC, p. 201
[6] In Blog do IIPC , https://blog ippc.blogspot.pt/2014/07/factos-complementares-e-causa-de-pedir.html
[7] AC STJ de 18-05-2004 proc. n.º 1570/04, in dgsi.pt
[8] Em objecção podemos argumentar que, mesmo com a prova de que o chão estava escorregadio se devia exigir ao autor a concretização da causa por não bastar à descrição da causa de pedir a generalidade de uma alegação e por se exigir que se em julgamento alguém vem trazer o conhecimento de uma outra causa que não a experienciada pelo autor, então mais ainda se devia exigir a ele que viveu a experiencia que tivesse sido o próprio a alegar o que concretamente o havia feito cair.
[9] Ainda que se quisesse argumentar que os papeies no chão, mesmo na forma de serpentinas tornavam segundo as regras de experiência comum o chão escorregadio, sempre teria de retrucar-se que nenhuma regra de experiência comum poderia sufragar esse raciocínio pois duas superfícies secas não tornam uma escorregadia notando-se que nestes casos, vg. O de um tapete sobre um chão, o facto de o tapete poder deslizar sob a pressão do andar não permite concluir que o chão está escorregadio mas antes um outro raciocínio de causalidade, qual seja o de uma superfície seca mais pequena móvel sobre uma superfície maior fixa pode causar um efeito de deslocação da primeira. O que seria necessário alegar e provar por se traduzir num processo de causalidade distinto do articulado.

[10] Michele Tarufo, Páginas Sobre Justicia Civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[11] Não podia porque não eram factos alegados nem eram complementares nem concretizadores nem instrumentais.
[12] Menos ainda se nem sequer são complewmentares , copncretizadores ou instrumentiais
[13] Não são complementares, concretizadores ou instrumentais nem, no caso de o serem (complementares ou concretizadores), havia sido dada às partes conhecimento de que iriam ser considerados.
[14] Menezes Leitão, “Direito das obrigações”, vol. I, 9.ª ed., pág. 296, e também Carneiro da Frada, “Contrato e deveres de protecção”, Coimbra 1994, págs. 163-165. Segundo este autor estão em causa situações em que a violação da propriedade ou da integridade pessoal não resultou de um ataque directo ou imediato a esses bens, ainda que negligente, e sim de uma conduta que só mediatamente a produziu, ou que se traduziu então na não observância de um dever de cuidado que a teria certamente evitado. E foi a propósito destas hipóteses, em que o dano se produziu já para além do quadro do decurso da acção que o originou, ou então por virtude de uma omissão, que se desenvolveram os chamados deveres de segurança no tráfico. Estes deveres cumprem dogmaticamente duas funções: a de assinalar os termos da equiparação à acção no campo da violação dos direitos de outrem, preenchendo assim a previsão delitual, por um lado; e a de proporcionar os quadros de tratamento das chamadas ofensas mediatas dos bens delitualmente protegidos, sobretudo do ponto de vista da fixação do juízo de ilicitude, por outro. Materialmente exprimem, quanto a este último aspecto, a reprovação de fazer perigar certas posições jurídicas, impondo àquele que cria ou mantém uma situação especial de perigo a adopção de providências adequadas a prevenir os danos que ela pode ocasionar.
[15] Menezes Leitão, ob. cit., pág. 297
[16] Frada Carneiro, ob. e loc. citados chama a atenção para o facto de, Independentemente da ordenação sistemática dos deveres de prevenção do perigo na 1.ª parte do n.º 1 do art.º 483.º (que parece preferir) ou antes na 2.ª alternativa (assim os aproximando das disposições de protecção cuja violação acarretaria responsabilidade delitual), no campo das omissões e das ofensas mediatas a direitos de outrem, a ilicitude não ser automaticamente indiciada pela produção (adequada) de uma lesão no direito de outrém, “necessitando antes de ser positivamente determinada pela ponderação de diversos factores, com relevo naturalmente para a perigosidade de um comportamento no confronto com a necessidade de protecção do potencial lesado, para as próprias concepções dominantes no tráfico jurídico, eventualmente até para a utilidade social da actividade portadora de riscos, etc”.
[17] Frada Carneiro, ob. e loc. Citados.