Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3647/09.6TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
EXERCÍCIO DO COMÉRCIO
INIBIÇÃO
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 36, 81, 186, 189 CIRE
Sumário: 1 – A inibição para o comércio deixou, no CIRE, de ser imediata e automática, mas mantém o CIRE a mesma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem – pessoas singulares (não apenas os insolventes, também os administradores) afectados pela qualificação da insolvência como culposa – pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência; por outro lado, com a inibição para o exercício do comércio protege-se a actividade mercantil.

2 – Tendo carácter temporário – de 2 a 10 anos – cabe ao juiz, na fixação da sua duração, atender à gravidade do comportamento da pessoa a inibir e à relevância de tal comportamento na verificação/agravamento da situação de insolvência.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação (em 05/11/2009) “E (…), SA”, com os sinais dos autos – veio a respectiva Administradora (nos termos do art. 188.º/1 do CIRE), M (…) apresentar parecer em que propôs que a insolvência seja qualificada como culposa, devendo ser afectado pela qualificação R (…)  administrador de direito da devedora insolvente entre 28/04/2008 e 05/11/2008; invocando, em síntese, que o referido administrador da insolvente dissipou o património da sociedade, celebrou negócios ruinosos, dispôs de bens em proveito próprio e incumpriu os deveres de elaboração e depósito das contas anuais, assim preenchendo as previsões das alíneas a), b), d) e h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

Foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.

Após o que o Ministério Público emitiu parecer concordante com a qualificação da insolvência como culposa, pelos mesmos fundamentos fácticos e jurídicos expostos nas alegações apresentadas pela Exma. Administradora da Insolvência.

Tendo o requerido R (…) apresentado oposição, na qual, em súmula, invocou a sua impreparação e falta de qualificação técnicas para o cargo de administrador que desempenhou, sendo que já recebeu (após a morte do seu pai, ocorrida em 19/03/2008) a devedora em total estado de insolvência e que apenas procurou conseguir meios que permitissem liquidar os débitos da devedora/insolvente (impugnando ter recebido, no negócio de cessão da posição contratual de locatária que a devedora/insolvente detinha em contrato de locação financeira, as importância de 299.420,00 € e de 100.000,00 €), pugnando pela ausência de culpa na sua actuação e pela improcedência da qualificação.


*

Foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e dispensada a operação de condensação.

Foi realizada a audiência, que decorreu com observância do legal formalismo, após o que os autos ficaram a aguardar o desfecho duma acção (1.361/09.1TBCBR) que a devedora/insolvente havia intentado antes de se apresentar à insolvência.

Entretanto, acabou por ser proferida sentença, tendo-se decidido:

(…) 1.qualificar a insolvência de “E (…) Ldª” como culposa;

      2.declarar o referido R (…) afectado por tal qualificação e, em consequência, declará-lo inibido para o exercício do comércio durante um período de 4 (quatro) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada da actividade económica, empresa pública ou cooperativa. (…)”

Inconformada com tal decisão, interpõe a devedora “E (…)SA” recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “(…) se digne decidir pela suspensão da medida de inibição ou uma severa redução de tal período dada a impossibilidade de sobrevivência do aqui recorrente.”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

1. A pena de inibição de actividade comercial de 4 anos é impeditiva de relançamento de uma vivência económica do Arguido, sendo manifestamente excessiva e sem efectiva justificação.

2. As circunstâncias pessoais do aqui Recorrente, no plano do conhecimento profissional e em face das suas debilidades psíquicas com alguma relevância, justificam que se atenda à especial gravosidade da decisão de inibição, tanto em termos éticos, como sociais.

3. Entende-se que os factos conhecidos e constantes dos autos, tanto da insolvência como do processo criminal, justificam a efectiva suspensão do procedimento de inibição para o exercício do comércio. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

II – A – Factos provados:

1. O presente processo de insolvência foi instaurada a requerimento da devedora através de requerimento que deu entrada em juízo em 14/Outubro/2009;

2. Por sentença proferida em 5/Novembro/2009 foi a devedora declarada em situação de insolvência;

3. A sociedade insolvente, matriculada na Conservatória de Registo Comercial de (...) (…), constituiu-se em 4/01/2001, tendo começado por adoptar a denominação de “E (…), S.A.” alterada para “E (…) Ldª” em 31/05/2005, tendo a sua sede (…), (...) , (...) , e por objecto “o comércio de móveis, equipamento de interiores, artigos de iluminação, confecções, produtos para o lar, sua distribuição, importação e exportação”;

4. A sociedade insolvente tinha o capital social de 50.000 € representado por 50.000 acções, ao portador, no valor nominal de 1€ cada, sendo 26.000 acções pertença da herança aberta por óbito de E (...) e 24.000 acções a R (...) ;

5. A estrutura da administração da sociedade insolvente consistia num Conselho de Administração formado por um administrador único, ou um mandatário ou um procurador, eleito por períodos de quatro anos, sendo que E (…) foi seu administrador único até 19/Março/2008, data do seu falecimento, sucedendo-lhe na administração o filho R (…), nomeado administrador único em 28/Abril/2008, renunciando a essas funções em 5/Novembro/2008;

6. A sociedade insolvente obrigava-se pela assinatura de um administrador ou pela assinatura do mandatário ou procurador, de entre accionistas ou outras pessoas, para a prática de actos de gestão;

7. A fiscalização da sociedade insolvente competia a um fiscal único, eleito por quatro anos, tendo sido designado no contrato social e desempenhado essas funções ao longo da existência da sociedade, M (…)

8. No ano de 2006 a sociedade insolvente apresentou o resultado líquido negativo de (-) 50.099,13 €, sendo que já nos três anos anteriores também apresentara resultados líquidos negativos crescentes de ano para ano, e o balanço apresentava os capitais próprios negativos em 15.036 €;

9. No ano de 2007 a sociedade insolvente apresentou o resultado líquido negativo de (-) 73.352,05 €, tendo o volume de negócios baixado 8,43% relativamente ao exercício anterior, apresentando o balanço os capitais próprios negativos em 88.388,43 €;

10. A administração da sociedade não tomou quaisquer medidas para ultrapassar a situação descrita nos pontos 8. e 9.;

11. Em 2008 não foram elaboradas nem aprovadas as contas;

12. Em 24/Novembro/2008 o ROC A (…) participou ao MºPº, entre outros factos, o desaparecimento dos documentos de contabilidade da sociedade insolvente, declarando a impossibilidade de elaborar o relatório de auditoria às contas;

13. No ano de 2008, a sociedade insolvente não organizou a contabilidade de harmonia com as regras de normalização contabilística;

14. A sociedade insolvente não procedeu ao registo das contas anuais na Conservatória de Registo Comercial nos anos de 2007 e seguintes;

15. Em 12/Março/2003, a sociedade insolvente celebrou um contrato de locação financeira imobiliária com o “B (…), S.A.” que tinha por objecto um prédio urbano sito na Rua dos x (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 687 e inscrito na matriz sob os artigos 606, 607, 608, 609, 610 e 611, destinado à prossecução do objecto social da sociedade insolvente;

16. Em 10/Outubro/2008 a sociedade insolvente e a sociedade “J (…)Ldª” celebraram um contrato de cessão de posição contratual, em que aquela cedeu a esta, a posição que detinha no contrato mediante a contrapartida declarada de 84.000 €, paga através do cheque n.º 4514229137 sacado sobre o “B (…), S.A”;

17. À data da cessão o valor em dívida à locadora “B (…)S.A.” era de 72.971,77 €;

18. Em 17/Outubro/2018 o administrador da insolvente R (…)  e sua mãe, A (…)subscreveram documentos intitulados “recibo de quitação” nos quais declaram que “no âmbito do contrato de cessão da posição contratual celebrado em 17/Setembro/2008 (…) pelo valor de 483.420 €” foram recebidas, em numerário, as quantias de 100.000 € e de 299.420 €, tendo esta importância sido recepcionada pela A (…) e aquela primeira pelo referido R (…);

19. As quantias de 100.000 € e de 299.420 €, correspondentes ao remanescente da contrapartida da cessão de posição contratual recebidos pelos referidos A (…) e aquela primeira pelo referido R (…) não foram nem depositadas na conta bancária da titularidade da sociedade insolvente, nem afectas à satisfação dos compromissos para com os credores sociais;

20. Em Outubro de 2008 a sociedade insolvente vendeu os seguintes veículos automóveis:

- de matrícula 91-25-ZJ, pelo valor de 15.000 € a (…)

- de matrícula 59-86-JM, pelo valor de 1.200 € a “(…)

- de matrícula 74-61-OM, pelo valor de 1.200 € a “(…)


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II – B – Factos não Provados

Não se provou que:

a. No ano de 2008, designadamente entre 28.Abril.2008 e 5.Novembro.2008, tenham desaparecido da esfera patrimonial da sociedade insolvente existências no valor de 157.423,37 €.


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III – Fundamentação de Direito

A sentença recorrida qualificou a presente insolvência, da “E (…), SA.”, como culposa e afectou em virtude de tal qualificação R (…)

Pretende a recorrente – a própria devedora/insolvente “E (…) SA.” – que a inibição para o exercício do comércio durante 4 anos imposta ao R (…), único afectado pela qualificação da insolvência, seja suspensa ou reduzida; o que significa que a recorrente não manifesta qualquer divergência recursiva quer em relação à qualificação da insolvência como culposa quer em relação a ter sido afectado por tal qualificação R (…).

Sendo assim, perante o objecto traçado para a apelação pela própria recorrente – suspensão ou redução da inibição para o exercício do comércio imposta ao seu administrador afectado pela qualificação da insolvência – não temos como totalmente seguro que, para um tão estrito objecto recursivo, a mesma possua legitimidade[1].

Seja como for, concedeu-se que possa haver dúvida e, sendo assim, considerou-se ser preferível admitir e conhecer do recurso, com tal estrito objecto, interposto pela própria devedora/insolvente[2].

Vejamos, então:

Tendo em vista concluir pela qualificação da insolvência e pela correspondente afectação do R (…), observou-se na sentença recorrida:

“ (…)

Importa averiguar se R (…), que lhe sucedeu na administração no período de 28/04/2008 a 5/11/2008, não tendo criado essa situação de insolvência, é, ou não, responsável pelo agravamento da situação de insolvência. (…)

Da conjugação da factualidade vertida nos pontos 16. a 19. resulta que a contrapartida da cessão de posição contratual firmada entre a sociedade insolvente e a sociedade “(…), Ldª” foi, não de 84.000 € conforme declarado pelos contraentes, mas antes 483.420 €.

E, ainda, que desta importância apenas 84.000 € foram depositados na conta bancária da sociedade insolvente e que o remanescente do preço foi recebido pelo administrador da insolvente R (…) e sua mãe, A (…) nos quantitativos de 100.000 € e de 299.420 €, respectivamente.

Mais decorre que aquele administrador da insolvente não providenciou pela posterior integração dessas quantias na esfera patrimonial da sociedade insolvente, seja através do seu depósito na conta bancária da titularidade da sociedade insolvente, seja através da afectação das mesmas à satisfação dos créditos sociais (…).

Tal factualidade permite concluir que a conduta do administrador da sociedade insolvente R (…), enquadrada na previsão das alíneas a), b) e d) do n.º 3 do artigo 186º, agravou a situação de insolvência já existente, tanto bastando para concluir pela verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência da sociedade de “E (…), SAª” como culposa. (…)

Nada disto – e isto é o essencial da sentença recorrida – é colocado em crise pela recorrente, podendo assim afirmar-se que está consolidado nos autos que a situação de insolvência da recorrente é anterior às funções de administrador de direito, entre 28/04/2008 e 05/11/2008, do R (…), sendo o mesmo, porém, responsável, em virtude da sua actuação em tal lapso temporal, pelo agravamento de tal situação de insolvência.

A AI, no seu parecer inicial, alinhou várias condutas dolosas causadoras de tal agravamento, avultando desde logo as respeitantes aos quantitativos de 100.000 € e de 299.420 €, que, segundo a AI, terão sido desviados da insolvente em proveito pessoal do R (…)

Foram estes “desvios” que foram dados como provados na sentença recorrida (cfr. pontos 18 e 19 dos factos), sendo que a recorrente, não impugnando a decisão de facto, não deixa de referir nos arts. 5.º a 7.º da sua alegação recursiva:

“Que os factos (…) acima descritos, os quais serviram de fundamento à douta sentença, foram indevidamente tidos por provados, tendo tal circunstância culminado numa imerecida pena, com consequências inenarráveis na esfera do R (…)  e sua mãe, A (…).”

“É verdade que receberam a quantia de 84.000 €, por meio do cheque n.º 4514229137. Mas já não é verdade que, pelo facto de terem subscrito documentos intitulados “recibo de quitação”, tenham recebido em dinheiro, efectivamente, as quantias de 100.000 € e de 299.420 €.”

“Aliás, nem se percebe a razão pela qual foi utilizado, primeiramente, como meio de pagamento, um cheque, de valor muito inferior (84.000 €) às duas quantias ditas em numerário (100.000 € e 299.420 €), as quais, reforce-se, nunca foram recebidas.”

Pese embora o montante significativo das quantias em causa, a “eventualidade” do R (…) não haver recebido tais quantias de 100.000 € e de 299.420 € – e sem prejuízo, insiste-se, da decisão de facto não ter sido impugnada e da verdade intraprocessual estar em definitivo estabelecida – é pouco relevante quer para as decisões já estabilizadas (da qualificação da insolvência e da sua afectação) quer para a medida da sua inibição de exercício do comércio.

A argumentação da recorrente apenas confirma, com todo o respeito, um dos eixos da defesa/oposição (ao parecer da AI) do R (…) ou seja, que o mesmo não tinha/tem “qualquer espécie de preparação técnica nem de qualificação para o cargo que lhe era exigido”[3].

Sucede que os deveres gerais dos administradores estabelecidos no art. 64.º do CSC – o dever de cuidado, dum gestor criterioso e ordenado; e o dever de lealdade, de gestão no interesse da sociedade – não admitem nem se compadecem de “impreparados” e “desqualificados”.

Segundo o dever geral de cuidado, os administradores hão-de aplicar nas actividades de organização, decisão e controlo societários o tempo, esforço e conhecimento requeridos pela natureza das funções, as competências específicas e as circunstâncias (ou seja, uma pessoa sem a competência técnica necessária não deve aceitar o cargo); compreendendo, entre outros, o dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis, isto é, um administrador está obrigado a não dissipar ou esbanjar o património social e a evitar riscos desmedidos.

Segundo o dever de lealdade, os administradores devem ter exclusivamente em vista os interesses da sociedade e procurarem satisfazê-los, abstendo-se portanto de promover o seu próprio benefício ou interesses alheios.

E é justamente por estes serem os contornos dos deveres gerais dos administradores duma sociedade que as alíneas constantes do art. 186.º/2 do CIRE tecem em “malha fina” os comportamentos que fazem presumir iuris et de iure estar-se perante uma insolvência culposa; ou seja, comportamentos que não respeitem os referidos deveres de cuidado e lealdade facilmente integram, não uma, mas várias das alíneas do art. 186.º/2 do CIRE.

Vem isto a propósito da recorrente (e por certo o R (…)) entender que faz diferença para o que para os autos interessava e interessa – qualificação da insolvência, identificação do afectado e medida da sua inibição para o exercício do comércio – o ter-se dado como provado, indevidamente, que o R (…) “desviou” para o seu bolso € 400.000,00.

Em face do que consta dos autos – dos documentos juntos pela AI e do que se diz na PI da acção (1.361/09.1TBCBR) que protelou a prolação da sentença recorrida – o valor declarado (de € 84.000,00) no documento que formalizou o negócio de cessão da posição contratual (que a devedora tinha no contrato de locação financeira) à (…) é claramente simulado: o R (…) não nega que sejam suas as assinaturas dos 2 recibos (de cerca de € 400.000,00, ambos passados à (…)) e muito menos diz que o conteúdo dos recibos seja ficcional (e constitui conteúdo dos recibos, como consta do ponto 18 dos factos, o dizer-se que o valor/preço real do referido negócio de cessão da posição contratual foram € 483.420,00); e a aqui recorrente, como A. na PI da acção 1.361/09.1TBCBR, diz (designadamente, no art. 11.º de tal PI) que os bens objecto (mediato) da cessão da posição contratual valiam € 1.000.000,00.

Temos pois – é onde se pretende chegar – que “só” isto, que o R (…) aceita desde início, configura comportamentos que preenchem de forma evidente e ostensiva as alíneas b) e d) do art. 186.º/2 do CIRE.

Ainda que o R (…) não tenha recebido os 400.000,00 € dos dois recibos – e sem prejuízo, insiste-se sempre, da decisão de facto não ter sido impugnada e da verdade intraprocessual estar em definitivo estabelecida neste ponto contra o R (…) – o certo é que desenhou o negócio para receber tal montante pessoalmente[4], ou seja, dispôs dos bens da devedora/insolvente em proveito pessoal[5] e, concomitantemente, ao fazer entrar na sociedade tão só € 84.000,99, fez um negócio extremamente ruinoso para a devedora/insolvente em seu proveito.

Em síntese, o que releva – maxime para o objecto da presente apelação – é que o R (…), quando era administrador único da recorrente, numa altura em que a mesma há muito se encontrava em situação de insolvência, “espatifou”, num negócio ruinoso – que também escondia, com correlação com tal ruína para a devedora/insolvente, o seu proveito pessoal – o património da devedora insolvente, “trocando” uma expectativa jurídica no valor de cerca de € 900.000,00 (o valor dos imóveis menos o que faltava pagar de rendas à locadora financeira), pela entrada na conta bancária da devedora da soma pecuniária de € 84.000,00.

E, claro está, em face dum tão grosseiro e ostensivo comportamento violador dos referidos deveres gerais de cuidado e lealdade[6], inibi-lo do exercício do comércio por 4 anos, a merecer censura, não é certamente por excesso.

Expliquemo-nos:

A declaração judicial de insolvência “priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência” (cfr. art. 81.º/1 do CIRE); além disto, com a sentença de declaração de insolvência, o juiz declara, via de regra, aberto o incidente de qualificação da insolvência (art. 36.º/1 do CIRE), sendo neste incidente – no âmbito do qual se situa o presente recurso – que são inibidos de exercer o comércio as pessoas singulares (não apenas os insolventes, também os administradores) afectados pela qualificação da insolvência como culposa.

Dantes – no CPC e no CPEREF – a inibição legal do falido para o exercício do comércio era uma consequência imediata da declaração de falência.

Dispunha o art. 1191.º do CPC que “é proibido ao falido exercer o comércio, directamente ou por interposta pessoa, bem como desempenhar as funções de gerente, director ou administrador de qualquer sociedade civil e comercial.”

Esta proibição – como referia Sousa Macedo, in Manual das Falências, Vol. II, pág. 49 – “não é apenas uma sanção, mas antes se apresenta também como uma protecção à actividade mercantil. Ter caído em falência provoca uma suspeita de falta de aptidão comercial ou mesmo de falta de idoneidade. Se é certo que este aspecto seria tido em conta na praça ao conceder-se crédito, compreende-se que haja vantagem em tomar uma atitude de prevenção, evitando o exercício do comércio por quem se tenha por inábil.”

Depois, pelo levantamento da inibição e pela reabilitação, previstos nos art. 1283.º e 1284.º do CPC, readquiriria o falido a plenitude dos seus direitos, designadamente a capacidade comercial.

Entretanto, com o CPEREF, passou a estabelecer-se (art. 148.º/1) “que a declaração de insolvência implicava a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou de pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa”; e estabeleceu-se nos art. 238.º e 239.º a cessação de tais efeitos e a reabilitação do falido.

Com o CIRE deixou, como já se referiu, de ser assim, só ficando inibidos de exercer o comércio as pessoas singulares (não apenas os insolventes, também os administradores) afectados pela qualificação da insolvência como culposa.

Sendo a insolvência culposa – o que já se encontra em definitivo declarado nos autos – “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com grave culpa, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art. 186.º/1 do CIRE)

E, sendo a insolvência culposa, tem o juiz de identificar as pessoas afectadas pela qualificação (a pessoa singular insolvente ou os administradores da entidade colectiva insolvente) e, depois, deve “declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão (de administração ou de fiscalização) de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa” (art. 189.º/2/c) do CIRE).

Enfim, a inibição para o comércio deixou, no CIRE, de ser imediata e automática, mas mantém a lei a mesma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência; por outro lado, a inibição para o exercício do comércio não se funda num deficit nas faculdades pessoais do afectado, não visa proteger o inibido, visando sim proteger o comércio

Em síntese: a inibição para o exercício do comércio continua a ser uma sanção e também uma medida de protecção da actividade mercantil.

E tendo carácter temporário – de 2 a 10 anos – cabe ao juiz, na fixação da sua duração, atender à gravidade do comportamento da pessoa a inibir e à relevância de tal comportamento na verificação/agravamento da situação de insolvência.

E é justamente por tudo isto – face à gravidade e relevância para o agravamento da situação de insolvência do circunstancionalismo factual atrás analisado, de que se retira, em resumo, que o afectado “espatifou”, num negócio ruinoso e em que ocultamente pretendeu retirar proveito pessoal, o património da devedora insolvente, “trocando” uma expectativa jurídica no valor de cerca de € 900.000,00 (o valor dos imóveis menos o que faltava pagar de rendas à locadora financeira), pela entrada na conta bancária da devedora da soma pecuniária de € 84.000,00 – que a inibição para o exercício do comércio (e demais cargos referidos no art. 189.º/2/c) do CIRE) não pode baixar dos 4 anos fixados na sentença recorrida; e muito menos, por a lei o não prever ou consentir, tal inibição pode ser suspensa.


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Improcede pois “in totum” o que a apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.
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IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante (a isenção do art. 4.º/1/u) do RCP não compreende um recurso com o presente objecto).


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Coimbra, 28/05/2019

Barateiro Martins ( Relator

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Quem, fora de toda a dúvida, possuía legitimidade para uma apelação com tal estrito objecto era o R (...) (cfr. 631.º/2 do CPC).
[2] A própria devedora/insolvente hesita sobre a identidade de quem está a interpor o recurso, designando-se a si própria como “o recorrente” e não como “a recorrente” e termina a aludir à “impossibilidade de sobrevivência do aqui recorrente”. Mais, não vemos, no presente apenso, que haja sido conferido mandato forense pela “E (…) SA”; e a existir, no processo principal, um tal mandato forense é por certo o que foi conferido, há 10 anos, tão só para a apresentação à insolvência.

[3] Artigo 14.º da oposição do R (…)
[4] E um negócio assim desenhado, em relação a uma sociedade há muito em situação de insolvência, tem um significado e ressonância altamente censuráveis e, por isso, indesculpáveis.
[5] O ter sido porventura enganado não apaga o desvalor do seu comportamento, “em proveito pessoal”.
[6] E também claramente violador do dever específico de apresentação à insolvência constante do art. 18.º/1 do CIRE; apresentação esta que é o que um administrador duma sociedade em situação de insolvência tem que fazer e não pôr-se a vender todos bens com o argumento que é para assim obter meios pagar aos credores.