Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
200/07.2TATND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: MEDIDA TUTELAR EDUCATIVA
TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 60º,64º ,121º E 128º DA LEI 166/99 DE 14/09 (LEI TUTELAR EDUCATIVA ) 663º DO CPC, APLICÁVEL POR FORÇA DO DISPOSTO NO ARTIGO 4º DO CPP
Sumário: 1.Não tendo o despacho proferido pela Srª juiz sido objecto de recurso, podendo sê-lo, (artº 121º nº 1 b) da LTE), o mesmo, bem ou mal, transitou em julgado, e consequentemente resolveu definitivamente da questão em apreciação. De facto, transitado em julgado o despacho, esgotou-se o poder jurisdicional no que tange à apreciação daquela matéria, tornando-se definitivo (caso julgado formal) (artºs 663º nºs 1 e 3 CPC ex vi artº 4º CPP)
2 Tendo o menor dado entrada no Centro Educativo em 2 de Dezembro de 2008 - consequentemente só nesta data foi institucionalizado - logo só nessa data se iniciou a contagem da duração da medida cautelar aplicada e não em 21 de Novembro de 2008, data da prolação da decisão.
Decisão Texto Integral: 9

Nos autos de processo tutelar educativo a correr termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, proferiu o Mmº juiz despacho em que, para além do mais, decidiu declarar nulo o despacho que reapreciou a medida cautelar de guarda em centro educativo aplicada ao menor PZA que havia sido proferido nos autos pela Mmª juiz de instrução, por considerar a mesma incompetente, mas convalidando-o “ até ao prazo máximo previsto na lei - 6 meses a contar do despacho que decidiu a aplicação dessa medida (desde 21 de Novembro de 2008) ".
Mais determinou a extinção dessa medida cautelar e imediata libertação do menor PZA por, no seu entender, se ter já atingido o prazo máximo de seis meses de duração da medida cautelar de guarda em Centro Educativo.
Inconformado, o Ministério Público recorreu, concluindo:
“ 1° No âmbito dos presentes autos foi proferido despacho, em 25-05-2009, pelo Tribunal a quo que:
- declarou nula a decisão proferida em 20-04-2009 pela Mmª Juiz de Instrução, por considerar a mesma incompetente, tendo depois sido tal decisão convalidada e decidido manter a medida cautelar de guarda em centro educativo aplicada ao menor PZ até a prazo máximo previsto na lei - seis meses "a contar do despacho que decidiu a aplicação dessa medida, em 21/11/2008";
- determinou a extinção dessa medida cautelar e imediata libertação do menor PZA, por se ter já atingido o prazo máximo de seis meses de duração da medida cautelar de guarda em Centro Educativo.
2.° Tal decisão revê a medida cautelar aplicada ao menor e, na medida em que declara que este esteve preso ilegalmente, afecta os direitos patrimoniais de terceiros, atento o regime previsto Lei 67/2007, de 31/12, motivo pelo qual é o presente recurso admissível - art. 121º nº 1 al. a) e f) da L TE - e possui efeito útil.
3.° A Mmª Juiz que proferiu o despacho de 20 de Abril de 2009, não obstante estar afecta à Instrução Criminal, continua a ser Juiz desta comarca.
4.° Sendo a Mmª Juiz afecta à Instrução a garante dos direitos, liberdades e garantia dos arguidos em inquérito e remetendo o art. 128º da LTE para as disposições do Código de Processo Penal, que se aplicam subsidiariamente, verificamos que "os direitos do menor sujeito a medida cautelar de guarda se mostram, concerteza, salvaguardados pela intervenção da Mmª Juiz de Instrução durante o inquérito tutelar educativo.
5.° A decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução, que decidiu manter a medida cautelar aplicada ao menor, ainda que se considere que esta não era competente, transitou em julgado, não podendo o Tribunal" a quo" declará-lo agora nulo.
6.° Na presente situação, o Tribunal onde foi proferido o despacho sempre foi competente para proferir a decisão final - o Tribunal da Tondela - pelo que apenas está em causa, a competência para proferir um determinado despacho... que não a decisão da causa.
7.° Há que interpretar o art. 32º do Código de Processo Penal no sentido de que, se em causa está a prolação de um despacho por Tribunal incompetente, então é até ao seu trânsito em julgado que tal incompetência poderá ser conhecida e declarada oficiosamente (e não até ao trânsito da decisão final, sob pena de sermos levados a soluções jurídicas que violam o princípio da segurança jurídica).
8.° O prazo previsto no art. 60º da LTE contabiliza-se desde o início da execução da medida cautelar de guarda de menor em Centro Educativo e não desde o despacho que o determina.
9.º Na contabilização de tal prazo o artigo 213º do Código de Processo Penal não pode ser aplicado subsidiariamente, quer porque a similitude entre as medidas cautelares e as medidas de coacção é ténue, sendo maior a fronteira que as separa do que os elementos que as unem, mas sobretudo porque a LTE, nos seus artigos 60º a 64º estabelece todo o regime aplicável às medidas cautelares, não deixando vazio legal que permita tal aplicação subsidiária.
10.º Não interpretamos o art. 213º do Código de Processo Penal como passando a prever que o prazo máximo de aplicação da medida de coacção se conta desde o momento da sua aplicação, mas apenas que as respectivas revisões se deverão processar desde o momento dos respectivos despachos.
11.º A contabilização do prazo máximo da medida cautelar não foi apreciada no despacho que decidiu prorrogar a medida cautelar de guarda em Centro Educativo.
12.º O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/09 acaba por concluir que o regime da LTE se reconduz exclusivamente à realização dos interesses da criança em vista da interiorização dos valores fundamentais da vida em sociedade e da essencialidade do seu respeito.
13.º A contabilização do tempo de permanência do menor em centro educativo por força da aplicação de medida cautelar desde a data do respectivo despacho e não da sua efectivação violaria a jurisprudência do AUJ 3/09 pois esquece o superior interesse do menor e a sua necessidade de educação para o direito que, ainda que cautelarmente, só poderá ser atingida desde o momento em que este entra na instituição, sendo certo que o despacho que fixa o tempo de colocação do menor em centro educativo tem subjacente, precisamente, tais finalidades as quais, claramente, não podem ter início sem que o menor ingresse efectivamente no Centro Educativo.
14.º O princípio subjacente à intervenção tutelar da necessidade de educação do menor para o direito afasta a aplicação do regime do Código de Processo Penal relativo à prisão ilegal e impõem que se considere que, cada minuto que o menor passa no Centro Educativo constitui, isso sim, um minuto a mais para o seu crescimento sadio e harmonioso, de acordo com as regras do direito.
O despacho proferido pelo Tribunal a quo em 25 de Maio de 2009 enferma manifesta ilegalidade, por violação dos citados incisos legais e, sobretudo, dos princípios do caso julgado e do disposto nos artigos 60.º a 64.º da LTE, pelo que deve o mesmo ser alterado de forma a ser reconhecido o trânsito em julgado da decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução em 20 de Abril de 2009 e ser declarado que o prazo máximo da medida cautelar aplicada ao menor PZ apenas ocorreria em 2 de Junho de 2009.”.
Não foi apresentada resposta
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, manifestou o inteiro acordo com as razões expendidas na motivação, concluindo pelo provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO

As questões suscitadas no presente recurso são as seguintes:
- Saber se o Sr. juiz podia revogar uma decisão transitada em julgado anteriormente proferida pela sua colega, com o argumento de que esta seria incompetente para proferir o despacho;
- Saber se o prazo de execução da medida cautelar de guarda de menor em Centro Educativo se inicia na data em que é proferido o despacho que o determina ou na data em que é de facto institucionalizado.
Vejamos.
Por despacho datado de 20 de Abril de 2009, a Mmª juiz de instrução criminal decidiu manter a medida cautelar de guarda em Centro Educativo, em regime fechado, que fora aplicada ao menor PZA (fls. 26 dos presentes autos).
Notificados os vários sujeitos processuais de tal despacho, não foi o mesmo objecto de recurso.
Entretanto por despacho de 25 de Maio de 2009, ora impugnado, o Sr. juiz julgou a sua colega incompetente para proferir aquela decisão, declarando-a nula.
Pois bem não está agora aqui em causa discutir se a Srª juiz era ou não competente para proferir tal despacho, pois fazê-lo significava entrar na avaliação desse despacho, o que está vedado a este tribunal de recurso por ter o mesmo, como veremos de seguida, transitado em julgado.
Na verdade para que assim fosse era necessário que não tivesse transitado em julgado ou que norma expressa o permitisse.
Ora o que se verifica é que não tendo o despacho proferido pela Srª juiz sido objecto de recurso, podendo sê-lo (Cfr. artº 121º nº 1 b) da LTE), o mesmo, bem ou mal, transitou em julgado, e consequentemente resolveu definitivamente essa questão.
É que transitado em julgado, esgotou-se o poder jurisdicional no que tange à apreciação dessa matéria tornando-se definitivo (caso julgado formal) (artºs 663º nºs 1 e 3 CPC ex vi artº 4º CPP)
Se assim não fosse, como refere Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. III, pág, 36. “essas decisões não seriam vinculativas já que poderiam ser repetidamente modificadas”, o que significa que estariam irremediavelmente afectadas a segurança e a confiança que devem merecer as decisões judiciais e que o instituto do caso julgado visa proteger. Ou, como escreve a propósito Alberto dos Reis Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 127. “ Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”.
Esgotado ficou pois o seu poder jurisdicional relativamente à apreciação de mérito, tornando-se definitivo - artºs 663º nºs 1 e 3 CPC ex vi artº 4º CPP.
Por isso tal procedimento ofenderia o princípio do esgotamento do poder jurisdicional e constituiria violação do princípio do caso julgado formal.
Tem pois que ser revogado neste segmento o despacho recorrido.
Entremos então na segunda questão a qual consiste em saber em que data se deve iniciar a contagem da medida cautelar de guarda do menor no Centro Educativo, isto é se desde o momento em que se decidiu pela sua aplicação, como o entendeu o Sr. juiz, ou da data em que se iniciou a sua execução, como defende o recorrente.
Como escreve Anabela Miranda Rodrigues Comentário da Lei Tutelar Educativa, pág. 20. “ O modelo tutelar educativo de intervenção não tem que ver com concepções punitivas ou repressivas porque o elemento-chave do sistema é o princípio da necessidade. Pretende-se uma actuação minimalista e excepcional na área educativa. O que significa que, em casos de desnecessidade de "educação do menor para o direito", apesar de comprovada a prática do facto, a resposta educativa não tem lugar, verificando-se tão-só a intervenção protectora, se se considerarem verificados os pressupostos desta intervenção.
O princípio da necessidade mostra que a intervenção educativa não pretende constituir um sucedâneo da intervenção punitiva e que é primacialmente ordenada ao interesse do menor: interesse fundado no seu direito às condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável, ainda que, para esse efeito, a prestação estadual implique uma compressão de outros direitos que igualmente titula (direito à liberdade e à auto determinação pessoal). Daqui decorre, desde logo, que a intervenção educativa não deve ter lugar se a prática do facto exprimir ainda uma atitude de congruência ou mesmo tão-só de não desrespeito pelos valores essenciais à vida em comunidade ou se se insere nos processos normais de desenvolvimento da personalidade, os quais incluem, dentro de limites razoáveis, a possibilidade de o menor testar a vigência das normas através da sua violação. Em termos práticos, isto significa que o simples cometimento de um facto qualificado pela lei como crime não conduzirá necessariamente, neste novo modelo, à aplicação de uma medida educativa.
Ressalta ainda que não é em função de carências sociais que a interven­ção educativa se vai desencadear, estigmatizando os mais desfavorecidos. Na Lei Tutelar Educativa a igualdade é parametrada por um critério objectivo: o da prova de um facto qualificado pela lei como crime. No caso de um menor em relação ao qual se possa dizer que as instâncias socializadoras funciona­ram normalmente (aquele que vive no seio de uma faIm1ia organizada e estru­turada, por exemplo), a intervenção educativa mostrar-se-á necessária. A sua personalidade evidenciará, neste caso, especiais exigências de educação que as instâncias normais de socialização não conseguiram satisfazer. Já relativamente àqueles menores em que a marginalidade e a desprotecção social só por si explicam o comportamento delinquente, uma intervenção meramente protec­tiva pode revelar-se a única adequada para atalhar à situação.
A densificação do que seja a necessidade de educação para o direito não se pode reconduzir a um manual de procedimento, mas não se afigura tam­bém tarefa demasiado melindrosa para o julgador. Trata-se de corrigir uma personalidade que apresenta deficiências de conformação com o dever-ser jurídico mínimo essencial (corporizado na lei penal) e não meras deficiências no plano moral ou educativo geral.
O que fica dito não afasta a conclusão de que, cabendo-lhe concretizar um conceito normativo que constitui um dos pressupostos da intervenção educa­tiva, atribui-se ao julgador um papel decisivo na feição que a law in action vier a assumir.
Por último, porque a intervenção educativa não visa a punição, ela só deve ocorrer quando a necessidade de correcção da personalidade subsistir no no momento da aplicação da medida. Nos outros casos, a ausência de intervenção representa uma justificada prevalência do interesse do menor sobre a defesa de bens jurídicos e as expectativas da comunidade”.
Pois bem a possibilidade da aplicação de medidas cautelares que a Lei Tutelar Educativa (LTE), aprovada pela Lei 166/99, de 14 de Setembro, veio estabelecer no âmbito do processo tutelar educativo, tem, à semelhança das medidas de coacção em processo penal, o objectivo de impedir que o menor possa prosseguir na prática da criminalidade, e, por isso, tal como nestas, a sua aplicação exige a verificação de determinados pressupostos os quais genericamente diremos, mais não são do que o respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, tipicidade e subsidiariedade, da necessidade, e da precariedade, contidos respectivamente nos artºs 56º, 57º, 58º, 61º e 62º, cuja análise individual não se justifica neste momento, dado que não é essa a questão aqui em discussão.
No caso vertente a medida cautelar que foi aplicada ao menor, foi a de guarda em centro educativo (artº 57º c) da LTE) (fls. 12 a 18 destes autos).
E em matéria de duração das medidas cautelares, o artº 60º da Lei Tutelar Educativa, dispõe sobre os prazos máximos de duração para cada medida cautelar.
Assim aí se prevê que a medida de guarda de menor em centro educativo tem o prazo máximo de 3 meses, prorrogável até ao limite máximo de 3 meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados, e as restantes de 6 meses até à decisão do tribunal da 1ª instância e de 1 ano até ao trânsito em julgado da decisão.
Por outro lado estabelece-se no artº 61º da LTE, o regime de revisão de tais medidas, nos seguintes termos:
“ 1. Oficiosamente ou a requerimento, as medidas cautelares são substituídas, se o juiz concluir que a medida aplicada não realiza as finalidades pretendidas.
2. As medidas cautelares são revistas, oficiosamente, de dois em dois meses.
3. O Ministério Público e o defensor são ouvidos, se não forem os requerentes”.
Mas então subsiste a pergunta - a partir de que data se inicia o prazo de duração da medida cautelar.
A questão afigura-se-nos de extrema simplicidade.
E o que desde já se dirá é que a interpretação feita pelo Sr. juiz de fazer coincidir o início do prazo com a data da prolação do despacho é manifesta e claramente de afastar.
Na verdade, conforme se alcança dos autos, o despacho foi proferido em 21 de Novembro de 2008 e o menor só deu entrada no Centro Educativo em 2 de Dezembro de 2008 (cfr. mandado de condução e respectiva certidão de entrega juntos a fls. 112)
Ora se o menor só em 2 de Dezembro de 2008 é que foi institucionalizado, é evidente que só nessa data se pode iniciar a contagem da duração da medida cautelar.
Com efeito não faria qualquer sentido que o prazo da medida cautelar se iniciasse antes do menor ter sido detido para cumprimento dessa ordenada medida
É que se a medida não estava ainda em fase de execução, como é que se pode defender um tal ponto de vista?
Tal interpretação levada ao extremo poderia conduzir-nos a que o menor cumprisse a ordenada medida cautelar, sem que sequer tivesse ingressado na instituição. Bastaria para tal que o mandado de condução nunca tivesse sido cumprido.
Não pode ser!
Não tem qualquer aceitação nem se entende como pode ser feita uma tal interpretação!
Assim, tendo a medida sido prorrogada por mais 3 meses (fls. 22 a 24), e tendo o menor iniciado o seu cumprimento em 2 de Dezembro de 2008, só em 2 de Junho de 2009, atingiria o prazo máximo de duração dessa medida.
Significa isto que o Sr. juiz ao considerar em 25 de Maio de 2008 (data do seu despacho) que se tinha esgotado o prazo máximo de duração da medida cautelar, não fez uma correcta interpretação da lei.
Não houve prisão ilegal!
Resulta assim do exposto que o segmento do despacho objecto de recurso tem, de ser revogado na sua totalidade.

DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juizes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando-se o segmento do despacho recorrido.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 3 de Fevereiro de 2010.