Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/10.0TBVLF-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
PROVA PERICIAL
OBJECTO
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE FOZ COA - TRIBUNAL JUDICIAL - SECÇÃO ÚNICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 388º DO CC
Sumário: · Nulidade da decisão por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia.

· Objecto da prova pericial.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Nos presentes autos de acção declarativa com processo sumário, após a organização da base instrutória, o réu, A..., requereu a realização de prova pericial, indicando, como questões que pretendia ver esclarecidas através da diligência, o que alegara sob os artigos 10º, 11º, 13º, 14º, 15º, 20º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º e 31º da contestação e o que os autores haviam alegado sob os artigos 5º, 6º e 7º da petição.

A Meritíssima juíza a quo, entendendo que a perícia não era impertinente nem dilatória, mandou ouvir as partes “sobre o objecto da perícia proposto”. Mandou ainda notificar as partes para indicarem, querendo, a que factos da base instrutória pretendiam fazer incidir a perícia, nos termos dos artigos 513º e 578º, ambos do CPC.

Após a audição dos autores, a Meritíssima juíza a quo proferiu o seguinte despacho:

Lê-se no art. 388º do Código Civil, e no que ora nos interessa, que «a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando seja necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuam».

“E lê-se no art. 513º do Código de Processo Civil, que «a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova».

“Ora, atenta a matéria alegada pelas partes, e já seleccionada em sede de matéria de facto assente e de base instrutória, entendo não ser impertinente, nem dilatória, a diligência de perícia requerida pelo réu, sendo a mesma colegial (cfr. artigo 569º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil)”.

“Pelo exposto, nos termos das disposições legais citadas (e ainda do art. 578º, n.º 2, do mesmo diploma legal), ordeno a realização de uma perícia colegial nos autos, sendo o seu objecto composto pelos seguintes quesitos: artigos 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º da Base Instrutória”.

“Caberá aos Srs. Peritos, sendo caso disso, recusarem a sua resposta, ou porque entendam que não dispõem de elementos suficientes para o efeito, ou porque entendam que a mesma extravasa o âmbito das respectivas valências técnicas, ou porque entendam que se verifica um qualquer outro motivo justificado, que discriminarão”.

“Não obstante o réu ter já indicado o seu perito, notifique as partes para em dez dias virem informar os autos se acordam na nomeação dos peritos e, caso assim não aconteça, para os autores virem escolher um dos peritos (cfr. artigo 569º, n.º 2, do Código de Processo Civil”.

O réu não se conformou com este despacho e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se declarasse a nulidade do despacho recorrido e a revogação dele por outro que incorporasse no objecto da perícia os factos por si indicados.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. Tal como prescreve e impõe o n.º 1 do artigo 577º do CPC, ao requerer a perícia a parte indicará logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência, o que assim foi feito pelo réu, ora recorrente.

2. Tanto para a decisão preliminar a que alude o n.º 1, como para a decisão definitiva a que se reporta o n.º 2, do artigo 578º do CPC, está o juiz vinculado ao dever de fundamentação da decisão, ordenando ou rejeitando a diligência.

3. Quer o juiz defira ou indefira a diligência, tem que invocar e concretizar, como fundamentação da decisão, a pertinência ou impertinência da perícia requerida.

4. Declarando o juiz no despacho definitivo a que alude o nº 2 do artigo 578º do CPC, que a perícia requerida pela parte, in casu o réu não é impertinente nem dilatória, nada mais dizendo nem pronunciando quanto ao objecto da mesma que fora proposto pelo mesmo réu, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 577º, a diligência tem inexoravelmente que abranger tal objecto, pois este só podia ter sido rejeitado sob fundamentação concreta e expressa, de ser impertinente, inadmissível ou irrelevante.

5. Ordenada a perícia como composta apenas pelos artigos 6º, 7º, 8º,9º, 10º, 11º e 12º da base instrutória, sem nada ser invocado que fundamente tal restrição em relação ao objecto que, desde logo, foi indicado pelo requerente da diligência, nada se decidindo quanto à pertinência ou impertinência, relevância ou irrelevância do mesmo objecto, mas não o aceitando, cometeu-se um acto arbitrário, não se respeitando a vontade abstracta da lei, que manda concretizar tal decisão com a invocação da verificação ou não, das duas condicionantes aludidas no nº 2 do artigo 578º do CPC.

6. O despacho recorrido violou o disposto no nº 2 do artigo 578º do CPC e o dever de fundamentação das decisões judiciais imposto pelo artigo 158º do mesmo Código, conduzindo à nulidade prevista no artigo 668ª, nº 1, alínea b), também do CPC.

Os autores responderam, alegando que o recurso era inadmissível.

A Meritíssima juíza a quo, pronunciando-se sobre a arguição da nulidade da decisão, conforme determina o artigo 670º, n.º 1, do CPC, entendeu que “nenhuma nulidade cumpria reparar”.

Nesta Relação, o relator entendeu que o recurso era admissível.

As questões suscitadas pelo recorrente são fundamentalmente as seguintes. Em primeiro lugar, trata-se de saber se a decisão recorrida enferma da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 668º, do CPC. Em segundo lugar, trata-se de saber se, tendo a Meritíssima juíza a quo declarado que a perícia não era impertinente nem dilatória, nada mais dizendo sobre o objecto da perícia proposto pelo recorrente, a diligência tinha necessariamente de abranger este objecto.


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Os factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso são os constantes do relatório deste acórdão e ainda o que foi alegado sob os artigos 10º, 11º, 13º, 14º, 15º, 20º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º e 31º da contestação e sob os artigos 5º, 6º e 7º da petição.

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A primeira questão que importa solucionar é a de saber se o despacho recorrido, ao determinar que o objecto da perícia recaísse sobre os factos controvertidos sob os pontos números 6 a 12 da base instrutória, sem nada dizer em relação ao objecto que havia sido proposto pelo réu, violou o disposto no n.º 2 do artigo 578º, do CPC, e o dever de fundamentação das decisões judiciais, imposto pelo artigo 158º do CPC, enfermando da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 668º, do CPC.

A resposta a esta questão remete-nos para o dever de fundamentação das decisões judiciais [artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 158º do CPC], para as causas de nulidade da sentença [artigo 668º do CPC, aplicável aos despachos, até onde seja possível, por força do disposto no n.º 3 do artigo 666º, do mesmo diploma] e para o regime da proposição e da fixação do objecto da prova pericial [artigos 577º e 578º, ambos do CPC].

Segundo o n.º 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

O n.º 1 do artigo 158º, do CPC, inserido nas disposições gerais do processo civil, dispõe que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.

A alínea b), do n.º 1, do artigo 668º do CPC, diz que é nula a sentença quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Na interpretação desta norma, a jurisprudência tem afirmado de modo constante que só a falta absoluta de fundamentação determina a nulidade. A título de exemplo desta jurisprudência cita-se o acórdão do STJ de 21-06-2011, proferido no processo n.º 1065/06.7TBESP, publicado nem dgsi.pt/jstj. Na doutrina citam-se como exemplos deste entendimento Antunes Varela, J. Miguel Bezerra Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 669, e José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, página 703.

No que diz respeito ao regime da proposição e da fixação do objecto da prova pericial, importa destacar o seguinte.

Segundo o n.º 1 do artigo 577º, do CPC, a parte que requerer a perícia tem o ónus de indicar, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência.

Perante o requerimento, o juiz indefere-o se entender que a diligência é impertinente ou dilatória. Se assim não entender, ouve a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição. É o que prescreve o n.º 1 do artigo 578º, do CPC.

Depois de ouvida a parte contrária, o juiz profere despacho a ordenar a realização da perícia. Segundo o n.º 2 do artigo 578º, do CPC, cabe ao juiz determinar o objecto da perícia, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-as a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.

Ao dizer-se na norma acabada de citar que incumbe ao juiz, ao determinar o objecto da prova pericial, indeferir as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes, tal significa que o juiz tem o dever de pronunciar-se sobre o objecto da perícia proposto pelas partes. E significa também que o poder de rejeitar esse objecto não é um poder discricionário; o juiz só o pode rejeitar com fundamento na respectiva inadmissibilidade ou irrelevância.

Deste modo, se não se pronunciar sobre as questões propostas pelas partes, o juiz incorre em omissão de pronúncia e a decisão por ele proferida é nula por força da 1ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do CPC [aplicável aos despachos por força do n.º 3 do artigo 666º]. Se o juiz deferir ou indeferir as questões sem fundamentar o deferimento ou o indeferimento, a decisão padece da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do mesmo preceito.

Do exposto segue-se para o caso presente o seguinte.

Considerando que, ao requerer a perícia, o réu, ora recorrente, indicou, como questões que pretendia ver esclarecidas através da diligência, o que alegara sob os artigos 10º, 11º, 13º, 14º, 15º, 20º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º e 31º da contestação e o que os autores haviam alegado sob os artigos 5º, 6º e 7º da petição, era dever da Meritíssima juíza a quo pronunciar-se sobre esta pretensão, deferindo-a caso entendesse que as questões eram admissíveis e relevantes, indeferindo-a caso entendesse que eram inadmissíveis e irrelevantes.   

O que fez a Meritíssima juíza a quo

Invocando o disposto no artigo 388º do CC e o disposto no artigo 513º, do CPC, a matéria já assente e a que figurava na base instrutória, determinou que o objecto da perícia fosse composto pelas questões controvertidas sob os artigos 6º a 12º da base instrutória. Confrontando este objecto com o que foi proposto pelo réu, vê-se que o tribunal a quo acolheu apenas a parte deste que era constituída pelo que os autores haviam alegado sob os artigos 5º, 6º e 7º da petição. Quanto ao mais nada disse.

Com que sentido se deve interpretar este silêncio? Como omissão de pronúncia? Ou como um indeferimento tácito?

A circunstância de o tribunal a quo ter aceitado parte do objecto da perícia proposto pelo réu, faz-nos propender para a interpretação de que o objecto restante foi alvo de indeferimento tácito.   

A verdade é que, quer se interprete num sentido quer se interprete noutro, a consequência processual é sempre a mesma: a decisão recorrida é nula. Se interpretarmos o silêncio como omissão de pronúncia, o despacho enferma da causa de nulidade prevista na 1ª parte da alínea d), do artigo 668º, do CPC [o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar]. Se o interpretarmos como indeferimento tácito, a decisão é nula porque não contém qualquer fundamento que a justifique, incorrendo, assim, na nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 668º, do CPC.

Há, assim, que declarar nula a decisão recorrida. 

Considerando, no entanto, o disposto no n.º 1, do artigo 715º, do CPC, segundo o qual “ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação”, há que conhecer do objecto da apelação, ou seja, decidir se as questões de facto propostas pelo réu, que não foram incluídas no objecto da perícia, devem ser esclarecidas através da diligência.

É o que sustenta o recorrente com a alegação de que, “declarando o juiz, no despacho definitivo a que alude o n.º 2 do artigo 578º do CPC, que a perícia requerida pela parte não é impertinente nem dilatória, nada mais dizendo nem pronunciando quanto ao objecto da mesma que fora proposto pelo réu, nos termos dos n.ºs 1 e 2, do artigo 577º, a diligência tem inexoravelmente que abranger tal objecto, pois este só pode ser rejeitado sob fundamentação concreta e expressa de ser impertinente, inadmissível ou irrelevante.”

Este fundamento do recurso remete-nos para o objecto da prova pericial.

O objecto da prova pericial é enunciado no artigo 388º, do CC, nos seguintes termos: “a prova pericial tem por objecto a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.

Da noção acabada de transcrever vê-se que a função dos peritos é a percepção, a apreciação ou valoração de factos.

Concordantemente com esta noção, o artigo 577º do CPC, relativo à indicação do objecto da perícia, dispõe no n.º 1 que a parte enunciará as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência.

Daqui não se segue, como observava Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume IV, Coimbra Editora, Limitada, página 181, em comentário ao artigo 581º do CPC de 1939, que dispunha sobre a prova por arbitramento, que os peritos estivessem inibidos de invocar e de se servir de princípios científicos, de critérios artísticos, de máximas da experiência; era à luz destes princípios, critérios e máximas que eles haviam de fazer a valoração dos factos, valoração que constituía precisamente o acto característico da prova pericial. Fora da prova pericial estavam os conhecimentos jurídicos. Ou seja, a prova pericial não tinha por objecto questões de direito. Por exemplo, numa acção de reivindicação não constituía objecto de perícia a questão de saber se o prédio pertence ao autor ou ao réu, como não constituía objecto a questão de saber se o réu tinha título que justificasse a posse ou a detenção. Estas eram questões de direito que cabia ao juiz decidir na sentença.

Quanto às questões de facto a submeter à prova pericial, vale aqui o disposto no artigo 513º do CPC, segundo o qual a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.

Daqui não se segue, no entanto, que o objecto da prova pericial seja restrito às questões de facto que figurem na base instrutória. A este propósito concorda-se com o entendimento de José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, página 537, segundo o qual as questões de facto “podem igualmente constituir pontos de facto instrumentais, como tais não carecidos de prévia alegação, que constituam via para a prova dos factos principais da causa…”. O que é decisivo é que as questões de facto tenham relação com o objecto do litígio. Se não tiverem, devem ser rejeitadas por inadmissibilidade. Também como fundamento em inadmissibilidade devem ser excluídas as questões de direito ou as que respeitem a factos não controvertidos.

Por seu turno, devem ser afastadas por irrelevância as questões que não tenham qualquer relevo no exame e decisão da causa; ou seja, aquelas questões que são indiferentes às soluções plausíveis da questão de direito.

Por fim, cabe dizer que a prova pericial só é admissível se forem necessários conhecimentos especiais, que o julgador não possua, para a percepção ou avaliação dos factos.

Segue-se do exposto que as questões suscitadas pelo recorrente serão de incluir no objecto da prova pericial se estiverem nas seguintes condições:
1. Se se tratarem de questões de facto;
2. Se se tratarem de questões respeitantes a factos relevantes para o exame e decisão da causa;
3. Se se tratarem de factos controvertidos ou necessitados de prova;
4. Se se tratarem de factos cuja percepção ou avaliação necessitem de conhecimentos especiais que o julgador não possua.

Como se procurará demonstrar, as questões suscitadas não respondem a todas estas exigências.     

Em primeiro lugar, há questões que não pertencem ao domínio do facto. É o que sucede com o que se alega sob o artigo 11º da contestação [“o muro é parte integrante e indissociável do complexo predial dos réus”]; com o que se alega sob o artigo 24º da contestação [“a própria característica da implantação, construção, localização e ocupação do referido muro ao longo de toda a estrema nascente da cerca do réu, mostra e acentua inequivocamente ser o mesmo parte indissociável da cerca e o complexo predial do réu, murado em todos os lados”]; e com o que se alega sob o artigo 31º da contestação [“muro que possui do lado da cerca do réu, estrema nascente, fixadas e cravadas várias grossas pedras de xisto, espalhadas em vários pontos da altura do muro, sinalizando inequivocamente que o mesmo é parte integrante da secular cerca e propriedade do réu, conforme se alcança das fotografias tiradas a partir da confluência sudeste…”], na parte em que se afirma que “o muro é parte integrante do prédio do réu”.

Com efeito, saber a quem pertence o muro é a questão de direito fundamental que se discute na presente acção. Não é, no entanto, ao julgador da matéria de facto que cabe dizer a quem é que pertence o muro. É à sentença, ao julgador do direito, que o cabe dizer.

Em segundo lugar, algumas questões que o recorrente quer ver esclarecidas através da prova pericial pressupõem a resposta à questão de saber a quem é que pertence o muro.

É o que sucede com a questão alegada sob o artigo 10º da contestação. Aqui se afirma que existe um ancestral muro de pedra de xisto, “delimitando toda a estrema nascente do terreno murado destinado a quintal ou cerca do mencionado complexo urbano do réu, dos demais prédios confinantes que, para além do prédio dos autores, se localizam e dispõem ao longo da mesma estrema de cerca”.

Nesta alegação, qual é o facto que os peritos podem percepcionar?

A existência do muro. Porém, como é fácil de ver, para constatar este facto não são precisos conhecimentos especiais.

Já não é facto apreensível pelos peritos aquele que está contido na alegação de que “o muro delimita a estrema nascente do terreno destinado a quintal ou cerca do complexo urbano do réu dos demais prédios confinantes, que, para além do prédio dos autores, se localizam e dispõem ao longo da mesma estrema de cerca”.

Com efeito, saber se o muro delimita a estrema nascente do prédio do réu (como sustenta este) ou se delimita o prédio dos autores (como afirmam estes) é questão a decidir pela sentença.

Também a questão alegada sob o artigo 13º da contestação pressupõe a resposta à questão de saber a quem é que pertence o muro. Neste artigo é afirmado que o muro estende-se “muito para além da área e limite de ocupação do prédio dos autores, prosseguindo com as mesmas características de homogeneidade de construção, delimitando toda a estrema nascente da cerca do réu de outros prédios confinantes para além do pequeno logradouro da casa dos autores, prosseguindo pela parede sul com 3,20 metros de altura sensivelmente, na qual se encontra implantado o portão em ferro de entrada de veículos para a cerca, que o mesmo muro delimita, desde tempos imemoriais, ao longo de toda a estrema nascente, numa extensão aproximada de 60 metros”.

Nesta alegação, os factos que os peritos podem percepcionar são os que dizem respeito à implantação e à altura do muro. Porém, para percepcionar estes factos não são precisos conhecimentos especiais.

Nesta alegação já não são factos apreensíveis pelos peritos a afirmação de que o muro “se estende para além da área e limite de ocupação do prédio dos autores”, a afirmação que o “muro delimita toda a estrema nascente da cerca do réu de outros prédios”, e a afirmação de que “o muro delimita a estrema nascente do prédio do réu desde tempos imemoriais”.

É que, havendo um muro entre pátios e quintais de prédios urbanos, o muro tanto pode ser comum como pertencer apenas a um dos prédios, como resulta do disposto no artigo 1371º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil. É ao julgador do direito, no entanto, que cabe dizer se o muro é comum ou propriedade de um dos proprietários confinantes. 

Em terceiro lugar, a percepção ou a apreciação dos factos não exige conhecimentos especiais. Vejamos.

Nalguns casos é o próprio recorrente quem afirma que a realidade que ele quer ver esclarecida através da prova pericial é facilmente visível no local. É o que sucede com a realidade que ele descreveu sob o artigo 14º [“Muro, que como é facilmente visível no local, tem o seu início e fim, dentro da cerca do prédio do réu, apresentando a colocação das muitas antigas e grossas pedras de xisto que o constituem, incontornáveis vestígios de antiguidade e continuidade de construção do lado da cerca do réu”] e sob o artigo 15º da contestação [“A base ou sopé do muro encontra-se coberta do lado poente do prédio dos autores com terra, como facilmente se pode verificar no local, que ao longo dos anos, os antecessores dos autores foram descarregando no pátio junto ao muro, cobrindo-o parcialmente, em altura, assim fazendo quintal de terra que a sua casa originariamente não tinha, enchendo o fosso fundo que sempre existiu a céu aberto, entre o muro da cerca do réu e a varanda em madeira da casa dos antepossuidores”.

Noutros, embora o recorrente o não diga, é patente que não são necessários conhecimentos especiais para averiguar a realidade que é alegada. É o que sucede com a que é descrita sob os artigos 23º (1ª parte), 25º, 26º, 27º e 28º, da contestação. Assim:

Na 1ª parte do artigo 23º está alegado que a casa dos autores é de construção muito mais recente que a secular casa e cerca do réu;

No artigo 25º está alegado que “o muro vai bater na parede de uma ancestral casa construída em pedra que serve de apoio e arrumos à casa do réu, casa esta que se encontra implantada para além da largura do muro”;

Nos artigos 26º e 27º está alegado que “na confluência norte/poente da casa e logradouro dos autores, encontra-se implantada uma casa térrea, de pedra de xisto, com entrada pela cerca do réu, de construção muito antiga, cujas paredes nascente e sul se prolongam cerca de 60 cm para além da largura do muro, na parte mais estreita”, “alinhando a esquina da confluência das mesmas paredes nascente e sul desta casa com a parte mais larga do muro”;

No artigo 28º está alegado que “a extensão do muro, dentro da área de implantação da casa e logradouro dos autores que delimita do poente, acaba na parede sul da dita casa de apoio da cerca do réu, casa esta que se encontra parcialmente implantada para além do muro, entrando com as paredes norte, nascente, sul e respectivos alicerces dentro do logradouro dos autores, cerca de 60 cm”.

Em quarto lugar, parte da realidade que o autor alegou não é sequer perceptível pelos peritos. Referimo-nos à realidade descrita sob a alegação de que os antecessores dos autores foram descarregando terra no pátio, junto ao muro, cobrindo-o parcialmente, em altura, assim fazendo quintal de terra que a sua casa originariamente não tinha [artigos 15º, 20º e 22º da contestação] e à alegação de que a casa dos autores foi edificada na área ocupada por casas térreas que a precederam (2ª parte do artigo 23º da contestação).

Esta descrição diz respeito a realidades do passado. Ora, em relação a estas, o que os peritos podiam percepcionar ou averiguar eram os vestígios ou sinais dessas realidades. Logo o que os peritos podiam percepcionar, em relação às realidades que o réu alegou, era se havia vestígios ou sinais dela.

Como é de elementar evidência, os peritos em caso algum podiam percepcionar se os antecessores dos autores haviam descarregando terra no pátio, junto ao muro, cobrindo-o parcialmente, em altura, assim fazendo quintal de terra que a sua casa originariamente não tinha. Como em caso algum podiam percepcionar se, antes dos antecessores terem descarregado a terra, a casa dos autores, do lado poente, tinha uma varanda com resguardo e corrimão em madeira, ao nível do mesmo 1º andar, não existindo logradouro ou quintal ao nível da varanda, sendo a céu aberto, do lado poente, todo o espaço entre a mesma casa e o alto muro da cerca do réu, formando um fosso ao longo de toda a mesma estrema, com a altura superior a 2,5 metros.

Quanto à realidade descrita na segunda parte do artigo 23º da contestação, mediante a alegação de que “a casa dos autores foi edificada em área ocupada por casas térreas que a precederam”, também é patente que ela não é perceptível, neste momento, pelos peritos. O que os peritos podiam percepcionar ou averiguar era se havia vestígios no local de a casa dos autores ter sido edificada em área ocupada por casas térreas que a precederam.

Por último, cabe dizer o seguinte quanto às questões de facto enunciadas pelo recorrente sob os números 16º-A e 17º-A. A primeira está relacionada com o ponto n.ºs 8 da base instrutória; a segunda está relacionada com o ponto n.º 9 desta mesma peça.

Sob o número 8 pergunta-se se “a partir do imóvel identificado em A) dos factos assentes [imóvel que os autores dizem pertencer-lhe], o muro tem 50 cm de altura na parte mais baixa e 3 metros de altura na parte mais alta”.

Sob o n.º 9 pergunta-se se “o terreno do logradouro do imóvel identificado em A) dos factos assentes encontra-se a um nível mais elevado do que o terreno que se situa para lá do referido muro (terreno do réu), no sentido poente”.

Sob o n.º 16º-A, o recorrente formula a seguinte questão: “Em caso afirmativo, os Srs. Peritos mediram a parte mais baixa e mais alta do muro, partindo da base do muro, junto ao solo, até ao seu topo, ou a partir da terra a que ele se encontra junta”?

Sob o n.º 17º-A, pergunta: “Em caso afirmativo, tal nível mais elevado verifica-se ao longo de todo o logradouro do imóvel dos autores, partindo do chão do logradouro, junto à base do muro e ao longo de toda a extensão deste, ou apenas se verifica considerando a altura que vai do chão da terra a ele encostada, destinada a horta?

As questões acabadas de transcrever visam sobretudo esclarecer a resposta dada aos pontos n.ºs 8 e 9 da base instrutória, no pressuposto de que esta seja positiva. Ora, o meio processual apropriado para obter o esclarecimento das respostas dos peritos é a reclamação prevista no artigo 587º do CPC ou o pedido de esclarecimentos verbais em sede de audiência, previsto na alínea c), do n.º 3, do artigo 652º, do CPC.

Assim, por todo o exposto, não se admite a prova pericial requerida pelo recorrente.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, não se admite a prova pericial requerida pelo recorrente.

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As custas serão suportadas pelo recorrente


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Emidio Francisco Santos (Relator)

António Beça Pereira

Nunes Ribeiro