Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
338/13.7TBOFR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE CREDORES
RECUSA
HOMOLOGAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 194º E 215º DO CIRE.
Sumário: I – O princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.

II - É, por isso, admissível, o estabelecimento, pelo plano de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.

III - A ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

No processo especial de revitalização, em que é requerente e devedor ‘S…, Lda.’, que corre termos no Tribunal Judicial de Oliveira de Frades, o Sr. Administrador Judicial Provisório apresentou no dia 18 de Junho de 2014, o plano de revitalização.

O plano – que num universo de créditos no valor de € 2.837034, 86, foi votado por credores detentores de créditos no valor de € 2.215.367,66, tendo obtido votos favoráveis e desfavoráveis correspondentes a € 1.623.984,44, de créditos comuns e garantidos, e a € 591.383,22 respectivamente – prevê, no tocante aos credores…, o pamento integral, em prestações, do capital em dívida, e, relativamente aos demais credores comuns, o pagamento de 10% da dívida de capital.

Os credores … opuseram-se à homologação do plano.

Então, a Sra. Juíza de Direito, proferiu, no dia 4 de Julho de 2014, esta decisão:

(…) O plano em causa contempla um pagamento integral do capital em dívida em prestações, com perdão de juros vencidos e vincendos no que respeita aos credores ... No que respeita aos restantes credores comuns (fornecedores), o plano em causa comtempla o perdão total de juros vencidos e vincendos e o pagamento parcial de 10% do montante em dívida em prestações.

Ora, é manifesta a desigualdade de tratamento do plano em apreço relativamente aos credores de natureza comum, pelo que se impõe analisar os fundamentos que subjazem a esta desigualdade e aferir se os mesmos se integram em diferenciações justificadas por razões de ordem objectiva, tal como permite a lei.

Seguindo o plano em causa, temos que a justificação para a notória desigualdade é, em suma, a seguinte:

- a credora N… é considerada vital para o desenvolvimento da actividade da requerente, pois é um dos seus principais fornecedores, tendo garantido a continuidade dos fornecimentos sem alteração de condições, para além de que tem proporcionado à devedora oportunidades de negócio que lhe garantem a sustentabilidade.

- As credoras … são fundamentais para a prossecução da actividade da Requerente, tendo desempenhado papel fundamental quando outros credores se recusaram a fornecer a devedora, aproveitando-se da sua frágil situação económica para promoverem alterações nas condições e preços de fornecimento, numa clara estratégia de aproveitamento da instabilidade daquela. Mais refere que face ao limitado número de fornecedores têm um papel essencial.

- As credoras … são também estratégicos na medida em que os seus serviços são essenciais à continuidade da empresa, pois garantem a continuidade dos seus fornecimentos e encontram-se dispostos a apoiar a empresa nesta fase de recuperação.

- A credora … é essencial porquanto a Devedora necessita da mesma para prosseguir a sua actividade.

Analisados os fundamentos invocados entendemos que os mesmos não consubstanciam razões objectivas susceptíveis de justificar a enorme diferenciação de tratamento existente entre os credores comuns, a qual se afigura manifestamente desproporcionada.

Da alegação contida para justificar a diferenciação, retira-se que os critérios que se encontram subjacentes à mesma assentam, ainda que em parte, no facto de alguns credores terem manifestado disponibilidade para apoiar a Requerente nesta fase de recuperação e outros terem alterado os preços e as condições de fornecimentos.

Ora, a diferenciação dos credores no âmbito do plano de recuperação não pode ser utilizada para premiar os credores que aceitaram as condições impostas pela Devedora em detrimento daqueles que as não aceitaram.

Não são invocados no plano em causa factos objectivos dos quais se possa concluir que efectivamente esses credores comuns mais beneficiados são essenciais para a Requerente, não bastando, a nosso ver, alegar sem qualquer concretização que os mesmos garantem a continuação dos seus fornecimentos sem alteração de condições. Ademais, o alegado número limitado de fornecedores não confere essa essencialidade, pois como a própria requerente admite, existem mais fornecedores.

Os fundamentos invocados pela Requerente para a diferenciação de pagamento aos credores comuns, assentou, a nosso entender em critérios subjectivos e relacionados com o apoio e disponibilidade que alguns credores manifestaram relativamente à situação da devedora.

O pagamento da totalidade da dívida a alguns credores de natureza comum, por confronto com o pagamento de apenas 10% da dívida a outros credores, também de natureza comum, é manifestamente desproporcional e desrazoável.

Para além disso, a desproporção em causa não se encontra justificado por razões objectivas que a sustente. Acresce que, esse tratamento mais desfavorável, não foi consentido pelos credores afectados, os quais, de resto, votaram contra o plano de recuperação em causa, e se manifestaram expressamente contra a sua homologação.

O plano de recuperação apresentado viola o princípio da igualdade previsto no art.º 194º do CIRE, aplicável ao presente processo de revitalização por força do disposto no n.º 5 do art.º 17.º - F do CIRE, o que configura violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação em apreciação nos presentes autos de revitalização, que impõe a recusa da sua homologação (…).

Em face dos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no artº 17º-F, nº 5, 194º, nº 1 e 215º do CIRE, o Tribunal recusa, pela presente sentença, o plano de recuperação”.

É, precisamente esta sentença, que a devedora revitalizanda, impugna no recurso ordinário de apelação – no qual pede a sua alteração por outra que homologue o plano de recuperação – tendo encerrado a sua alegação com estas conclusões:

...

Apenas a credora I…, SL, Sucursal de Portugal, respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos que relevam para o conhecimento do objecto do recurso – relativos, na sua essência, ao conteúdo do plano – são os que o relatório, em síntese apertada, documenta.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso

Como o âmbito objectivo do recurso é recortado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, pelo requerimento de interposição pelas conclusões e pelas conclusões que o impugnante extrai da sua alegação, a questão controversa que esta Relação é chamada a resolver – tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente - é a de saber se a decisão que homologou o plano de recuperação dos devedores deve ser revogada e, consequentemente, se deve recusar-se a homologação desse mesmo plano (artºs 635 nºs 2, 1ª parte, 3 e 4 do NCPC).

A decisão impugnada é constituída pela sentença, que, no contexto do processo especial de revitalização, com fundamento na violação do princípio da igualdade dos credores, recusou a homologação do plano de recuperação aprovado pelas maiorias exigíveis. A devedora, acha, porém, que as distinções que o plano opera entre os credores comuns são objectivamente fundamentadas e, por isso, aquele não viola o princípio estruturante da igualdade.

Nestas condições, considerando os parâmetros da competência decisória desta Relação, representados pelo conteúdo da decisão impugnada alegação da recorrente, é só uma a questão concreta controversa que importa resolver: a de saber se a decisão de recusa de homologação do plano de recuperação deve ser revogada e logo substituída por outra que o homologue.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, ao exame, ainda que leve, do princípio da igualdade dos credores.

3.2. Princípio da igualdade dos credores.

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 nº 1 do CIRE).

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 735 nº 3 e 813 nº 1 do nCPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC de 1961 e 53 nº 1 do NCPC).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas ou de sacrifícios, ou de comunhão de riscos entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[1].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[2].

Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artº 174 nº 1 e 175 nº 1 do CIRE). Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.

O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artºs 175 nº 1 e 176 do CIRE e 604 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.

Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos. Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio credito.

É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

O plano deve, pois, orientar-se pelo princípio da satisfação paritária dos interesses credores, ou, pela negativa, deve impedir que algum credor possa obter uma satisfação mais eficaz – mais rápida ou mais completa – do que – em prejuízo de – os restantes credores.

Seja como for, o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes. O princípio da igualdade dos credores tolera, pois, a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.

O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para o distinguo dos credores como razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.

Um fundamento objectivo – porventura o mais claro – de diferenciação dos credores é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados[3]. Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar diferença de tratamento, é, por exemplo, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Realmente parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo. Outro motivo objectivo de diferenciação é, por exemplo, o valor dos créditos que, v.g., pode justificar prazos diferenciados para o seu pagamento.

Originariamente, a finalidade única e última do processo de insolvência era a satisfação dos interesses dos credores (artº 1 do CIRE, na redacção anterior àquela que lhe foi impressa pelo artº 2 da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril). Este objectivo podia, todavia, ser prosseguido por dois modos diferenciados: através da liquidação universal do património do devedor e a partilha ou a repartição do respectivo produto pelos credores, de acordo com o esquema supletivo disposto na lei; através da satisfação dos credores pela forma regulada num plano de insolvência aprovado pelos credores, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artºs 1 e 192 nº 1 do CIRE).

O plano de insolvência constitui, por isso, na lógica do CIRE um meio alternativo à liquidação universal dos bens do devedor, que decorre segundo o modelo supletivo traçado na lei. Com o plano de insolvência, procura-se dar ao problema da insolvência do devedor uma resposta diferente da pura e simples liquidação, universal e colectiva, do seu património, segundo o modelo supletivo desenhado no CIRE.

A letra da lei permite, sem esforço, identificar quatro modalidades de plano de insolvência: o plano de liquidação da massa insolvente; o plano de recuperação; o plano de transmissão da empresa; o plano misto (artº 195 nº 2 b) do CIRE)[4].

Todavia, seja qual for a modalidade de plano considerada, na fixação do seu conteúdo, rege o princípio da liberdade e da autonomia dos credores, por força do qual estes gozam de liberdade latitudinária, mas não ilimitada, na conformação jurídica dos seus interesses (artº 195 nº 2, in fine, e 196 nº 1 do CIRE)[5]. Limite relevante dessa liberdade e autonomia é – como já se apontou - o representado pelo princípio da igualdade dos credores (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção[6] e, portanto, um verdadeiro contrato. A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de um simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias, no caso dos credores privilegiados[7] – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.

Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui, porém, uma verdadeira condição de eficácia do plano[8] (artº 217 nº 1 do CIRE).

O juiz da insolvência está, portanto, vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de insolvência, devendo recusar, ex-offício, a sua homologação, designadamente, caso o seu exame o leve a concluir que se verificou uma violação, não negligenciável, de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo (artº 215 do CIRE). Note-se que, quer se trate de normas de procedimento quer de normas de conteúdo, em causa estão sempre normas processuais, i.e., normas que definem uma consequência processual, ou, mais concretamente, aquelas cuja previsão desencadeia um efeito processual.

À vista do plano, com a finalidade última de o homologar ou de recusar a sua homologação, o juiz deve, portanto, proceder a um duplo exame: exame do acto sob o ponto de vista do procedimento; exame sob o ponto de vista do seu conteúdo. No primeiro caso, o exame terá por objecto as normas de tramitação, i.e., de normas que regulam a sequência de actos que constituem o processo relativo à apresentação e aprovação do plano; no segundo, esse objecto é constituído pela normas de conteúdo, i.e., pelas normas processuais que permitem determinar o conteúdo desse mesmo plano. No exame do ponto de vista do procedimento, o magistrado procurará averiguar se o plano acatou as normais processuais integrantes do iter, marcado na lei, conducente à sua aprovação; no exame do conteúdo, o juiz indagará se o plano observou as normas que conformam a respectiva substância, designadamente, as que definem um conteúdo vinculado desse mesmo plano.

Numa palavra: o juiz deve examinar se se verifica, quer no plano do procedimento relativo à aprovação do plano de insolvência, quer no plano atinente ao seu conteúdo, uma qualquer nulidade processual, i.e. se se praticou um acto que não é permitido ou foi omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artºs 201 do CPC de 1961 e 195 do NCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Todavia, para recusar, mesmo oficiosamente, a homologação do plano não é suficiente a constatação de que houve violação tanto de normas de tramitação como de normas relativas ao conteúdo do plano. A ofensa de normas de qualquer destas espécies só autoriza a recusa da homologação se for não negligenciável, exigência que vincula, evidentemente, à distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes e que traz, naturalmente, implicada a concessão ao juiz de um largo poder de apreciação. Essa apreciação deve nortear-se pelos princípios orientadores, em geral, da nulidade processual, entre os quais se conta o da essencialidade, de harmonia com o qual a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame e na decisão da causa (artºs 201 nº 1, in fine, do CPC de 1961 e 195, in fine, do NCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Numa palavra: só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa[9], que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezível, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente. Neste contexto, a violação do princípio da igualdade dos credores deve ter-se, em regra, por não negligenciável, com a consequente recusa de homologação do plano[10].

Como se notou, o plano de insolvência, é susceptível de impor aos credores uma compressão generalizada e grave das suas faculdades típicas: pode afectar a esfera jurídica dos interessados e interferir com os direitos de terceiros independentemente do seu consentimento – desde que a lei o autorize expressamente (artº 192 nº 2 do CIRE). Pode, por isso, por exemplo, sujeitar um credor a um tratamento mais desfavorável sem necessidade de consentimento expresso – dado que é suficiente o consentimento tácito (artº 194 nº 2 do CIRE).

Pode mesmo afectar créditos públicos – créditos do Estado, das Instituições de Segurança Social e de outras públicas, sujeitos a regimes especiais (artº 196 nº 2, a silentio). O regime compreende-se: o plano é uma convenção, um negócio jurídico processual – mas um negócio jurídico outro, específico do Direito de Insolvência, a qual a lei atribui uma força jurídica especial de afectação de direitos.

Consabidamente, o CIRE suprimiu a dicotomia recuperação/falência em que assentava o direito anterior e construiu o processo de insolvência como um processo de liquidação: o único instrumento a que pode assinalar-se uma finalidade de recuperação da empresa insolvente é o representado pelo plano de insolvência (artºs 1 nº 1 e 195 nº 2 b). Maneira que a recuperação foi reduzida a simples condição de finalidade possível do processo de insolvência: nitidamente – numa visão notoriamente liberal – privilegiou-se os interesses de ordem económicos dos credores, com prevalência de mecanismos próprios de regulação de mercado – subalternizando interesses públicos tão eminentes como os da expansão da economia e a estabilidade de emprego.

Todavia, uma das obrigações a que o Estado Português se vinculou no quadro do programa de auxílio ou assistência financeira que concluiu com Banco Central Europeu (BCE), O Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Europeia (CE) foi a de alterar o Código de Insolvência, a fim de facilitar o resgate efectivo de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis.

É neste contexto que é instituído - através da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que modificou, pela sexta vez o CIRE- o processo especial de revitalização (PER).

De forma deliberadamente simplificadora pode, sem erro, dizer-se que o PER é um processo pré-insolvencial que tem por vantagem mais proeminente a possibilidade de o devedor – qualquer devedor e não apenas o devedor que seja uma empresa – obter um acordo de recuperação, sem que seja declarado insolvente.

O PER é facultado ao devedor que se encontre em situação económica difícil – definida como a situação em que o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito – ou de insolvência eminente – conceito que a lei não define, mas que pode ser entendido como a probabilidade séria da impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, num futuro próximo, das suas obrigações vincendas[11] (artºs 1 nº 1, 17-A nº 1 e 17-B do CIRE). A particularidade relevante do PER é a probabilidade da homologação do plano de recuperação, desde que aprovado por uma maioria qualificada o tornar vinculativo para todos os credores, mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 6 do CIRE). Ao plano de recuperação são aplicáveis, por extensão de regime, com as necessárias adaptações, no tocante tanto às maiorias exigíveis para a sua aprovação como aos fundamentos da recusa da sua homologação, as regras dispostas na lei para o plano de insolvência (artºs 212 nº 1, 215 e 216, ex-vi artº 17-F, nºs 3 e 5, do CIRE).

A lei é terminante em mandar aplicar, à decisão de homologação do plano de recuperação ou de recusa da homologação, com algumas ressalvas, as regras dispostas para aprovação do plano de insolvência no título IX do CIRE (artº 17-F nº 3, in fine, deste mesmo Código). Por força dessa extensão de regime, exige-se, para a aprovação do plano de recuperação, a participação de credores que representem pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, e mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 3, in fine, do CIRE).

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão objecto da impugnação.

3.3. Concretização.

Como se notou, a cláusula da igualdade a que o plano está submetido não garante a cada credor o mesmo tratamento ou benefício que é atribuído a outros; garante-lhe apenas que, na concessão do benefício ou na imposição do sacrifício, o credor será tratado com igual preocupação e respeito, ou seja, o princípio da igualdade não garante a cada credor o mesmo tratamento – mas antes o tratamento como igual.

A igualdade – material – dos credores conduz, inevitavelmente, a um padrão de controlo da sua observância que remete para juízos de valoração que incidem sobre os fundamentos ou os critérios que pretendem justificar, em caso de desigualdade de tratamento, a distinção ou discriminação, levada a cabo pelo plano e, em caso de igualdade, a equiparação ou indiferenciação produzida.

É indiscutível que o plano trata de forma desigual credores de uma mesma categoria ou classe – os credores comuns – dado que para alguns deles prevê a satisfação integral da dívida de capital e, para outros, a ablação de 90% do valor do débito de capital. A desigualdade entre um e outros credores é, pois, conspícua, patente.

E desde que a intenção restritiva se dirige a credores concretos, ela traz, no mínimo, implícita, o perigo de uma desigualdade de tratamento. Há, portanto, que determinar objectivamente se a desigualdade assenta num critério de diferenciação admissível.

A este propósito, diz a recorrente: há razões objectivas que justificam a distinção – o carácter estratégico e não estratégico de uns e outros credores, entendendo-se pelos primeiros – relativamente aos quais o plano prevê o pagamento integral do crédito de capital - os credores sem os quais não haveria forma de garantir a prossecução da actividade da recorrente.

Seria o caso, no ver da recorrente, dos credores …, que fornecem matérias-primas que não se encontram facilmente no mercado, que são por isso vitais, e portanto, estratégicos à prossecução da sua actividade; os credores … justificam-se pelo défice de oferta no mercado; a … é fornecedor essencial de serviços legalmente obrigatórios; a …, dado que sem energia a recorrente não pode prosseguir a sua actividade.

Uma análise mais fina ou um exame mais detido do conceito de credor estratégico de que apelante se serve para justificar o distinguo de tratamento dos credores comuns – que não encontra, no plano normativo, a mínima tradução - mostra que aquela qualificação assenta no posicionamento daqueles credores no mercado em que opera, únicos capazes de lhe assegurar o fornecimento de matérias-primas ou serviços indispensáveis à prossecução da actividade industrial que constitui o seu objecto social. Ora, a verdade é que um tal pressuposto não está demonstrado: realmente basta atentar na alegação do único credor que respondeu ao recurso, no segmento em que sublinha que aqueles credores não são os únicos operadores do mercado ou os únicos com capacidade para disponibilizar à apelante, devedora, as matérias-primas e serviços indispensáveis ao exercício da sua actividade. Isto é, patente, por exemplo, no tocante ao fornecedor de energia eléctrica, em consequência da liberalização do mercado e do fim do monopólio de um único operador.

Independentemente da correcção desta consideração, a verdade é que o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente, para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe, dado que fez recair sobre alguns deles, de forma desproporcional, as perdas. Dito doutro modo: a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns credores da mesma classe. Recorde-se, que, segundo o plano aprovado, uns credores obtém a satisfação da totalidade do seu crédito de capital; outros, sofrem um hair cut do seu crédito, da mesma espécie, no valor de 90%.

O conteúdo do plano não tem ínsito apenas um tratamento diferenciado, mas sobretudo um tratamento privilegiado de alguns credores de uma mesma classe. Há, pois, um tratamento desigual sem uma justificação material da desigualdade que, aliás, nem sequer está devidamente comprovada. Não é, portanto, possível identificar um fundamento racional e objectivo, justificador da distinção entre os credores, patente no plano de recuperação homologado[12].

Neste sentido, o plano de recuperação viola, realmente, o princípio da igualdade dos credores, entendido como limite objectivo da discricionariedade ou da liberdade de conformação desse mesmo plano, dado que não é possível encontrar, para a diferenciação assumida pelo plano, um fundamento razoável, objectivo e racional.

A esta luz não há realmente que duvidar da correcção da decisão impugnada e, correspondentemente, pela falta de bondade do recurso.

Duas palavras mais para explicar que a recusa de homologação do PER não constitui uma causa peremptória, inexorável, de decretamento da insolvência, com a consequente execução universal dos bens do devedor[13]. Como a declaração de insolvência tem de se requerida pelo administrador judicial provisório, o juiz não pode considerar-se dispensado de confirmar se existe, de facto, o estado de insolvência do devedor, não a devendo declarar se tiver dúvidas – que não consiga dissipar através o uso dos poderes inquisitórios fortes que a lei lhe reconhece – quanto à sua verificação (artºs 11, 28 e 17-G nº 4 do CIRE). A declaração da insolvência neste contexto sendo, decerto, a consequência mais natural, não pode todavia, ter-se como corolário que não possa ser recusado. Basta pensar no caso de o administrador não requerer, por qualquer motivo, a declaração de insolvência.

Síntese recapitulativa:

a) O princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.

b) É, por isso, admissível, o estabelecimento, pelo plano de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante;

c) A ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável, e consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.

As custas do recurso serão satisfeitas pela parte que nele sucumbe: a devedora apelante (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                                             15.03.17

                                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                               Isabel Silva

                                                                                                              Alexandre Reis


[1] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[3] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Lisboa, 2013, pág. 753, e Acs. da RL de 12.07.07, CJ, XXXII, III, pág. 110, e de 23.01.14 e da RG de 04.03.13.
[4] António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137/III, (2005), pág. 503, e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 99.
[5] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas Notas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 587.
[6] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “a natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[7] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[8] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas notas”, cit. pág. 590.
[9] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, Quid Iuris, 2006 pág. 119.
[10] Ac. da RP de 17.11.13, www.dgsi.pt.
[11] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 20.
[12] Ac. da RL de 23.01.14, www.dgsi.pt.
[13] Dado que a lei não regula expressamente as efeitos da recusa da homologação do plano aprovado, a esse caso devem aplicar-se, por interpretação extensiva, as normas reguladoras da conclusão do processo negocial sem aprovação de plano (artº 17-G, do CIRE): Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 288.