Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
193/10.9PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 379º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: As nulidades da sentença previstas no art.º 379º, do C. Proc. Penal, são de conhecimento oficioso, o que decorre do disposto no n.º 2, do mesmo normativo.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
           
1. No processo comum singular n.º 193/10.9PBAVR do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro, por sentença datada de 17 de Dezembro de 2010, foi
PARTE CRIMINAL
Condenado o arguido MM..., pela prática de um crime previsto e punido no art. 152º n.º 1 b) e 2 do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa por 2 (dois) anos.
PARTE CIVIL
· Condenado o demandado MM... a pagar a PM... a quantia de 535,34 € (quinhentos e trinta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos), a título de danos patrimoniais e a quantia de 1500 euros (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, quantia a que acrescem os juros a contar da notificação do pedido de indemnização civil.
· Condenado o mesmo demandado a pagar ao Hospital I... a quantia de 108,00 € (cento e oito euros), quantia a que acrescerão os juros legais a contar da notificação dos pedidos civis até efectivo e integral pagamento.

            2. Inconformado, o arguido recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
            «A- IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
· O depoimento da queixosa não foi claro, nem convicto, nem sofrido.
· Mudou a descrição dos factos ao longo do depoimento.
· Descreveu-os de forma que seria impossível serem praticados por um cego (como o arguido é).
· Deu ênfase a agressões verbais, sendo que na acusação não constava uma única agressão verbal, apenas aparecendo em julgamento essa versão dos factos.
· O depoimento das testemunhas permitiu perceber que a cada uma deu versões diferentes dos factos, inventando agressões e fracturas que nunca
ocorreram.

· Os exames médicos não sustentam qualquer uma das versões dos factos relatadas em julgamento.

B- CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
A douta sentença afirma:
“os factos descritos são altamente lesivos da dignidade pessoal da ofendida, envolvendo grande violência física e psicológica(...)”;
Mas mais à frente também afirma:
“a conduta é pouco grave, cingindo-se a três episódios”.
São manifestamente contraditórias as afirmações.
Como é contraditório que tenha considerado provado que partiu os óculos (quando estava de óculos quando foi ao Hospital, onde foi fotografada) e que tenha gasto dinheiro em medicamentos - alegadamente por causa da agressão - que nem sequer lhe foram receitados e que não se destinam a qualquer agressão.
A douta sentença violou os arts. 40º e 152° do C.P.(uma vez que em face da prova efetivamente feita em julgamento, nenhum crime foi cometido pelo arguido),  127°(uma vez que foram, salvo o devido respeito, frontalmente violadas as regras de correcta apreciação da prova e da experiência comum), 410º, n°2 b) e c) ( uma vez que a douta sentença padece de erro notório na apreciação da prova e de contradições insanáveis o que impede a sua compreensão) e deve por isso ser substituída por outra que absolva o arguido do crime e da indemnização civil em que foi condenado, assim se fazendo Justiça».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência.
A assistente não respondeu ao recurso.
           
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 219-220, no sentido de que o recurso não merece provimento, sufragando, no essencial, a posição do MP de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:
· se a prova foi mal apreciada (erro de julgamento);
· se há algum vício do n.º 2 do artigo 410º do CPP.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA
            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
· «O arguido e a ofendida PM... iniciaram um relacionamento amoroso há cerca de 2 anos, tendo a partir daí partilhado cama, mesa e habitação que fixaram na R. …, ..., encontrando-se actualmente separados.
· Porém, desde o mês de Junho de 2009 que a sua relação com a ofendida começou a ficar marcada por alterações comportamentais violentas, na sequência de discussões que passaram a ser frequentes.
· Assim, em data não concretamente apurada, no Verão de 2009, no interior da residência que partilhavam, por causa de um diferendo relacionado com um electrodoméstico que haviam adquirido, o arguido chamou a ofendida de burra e, de seguida, empurrou-a para o chão e apertou-lhe o pescoço, não tendo porém recebido tratamento hospitalar.
· No dia 24.01.2010, pelas 12h30m, no interior da residência de ambos, na sequência de discussão por a ofendida o ter chamado à atenção de passar demasiado tempo ao telemóvel com outras mulheres, o arguido disse-lhe que o que ela queria era explorá-lo e ordenou à mesma que fosse para a rua, ao mesmo tempo empurrou-a contra as paredes e portas da residência, o que fez com que a ofendida tivesse caído ao chão e perdido os sentidos, tendo acordado algum tempo depois no chão da cozinha com dores abdominais e o corpo frio, o que motivou recebimento de tratamento hospitalar.
· Com a sua actuação agressiva, o arguido provocou na ofendida ferimentos, cujas lesões nomeadamente no tórax, que melhor se encontram descritas na ficha clínica de fls. 23-27 e examinadas nos autos de exame médico de fls.15-18, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e que lhe determinaram directa e necessariamente um período de 4 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho.
· No dia 26.01.2010, pelas 14h30m, na sala da residência, após a ofendida ter pedido ao arguido que lhe entregasse as chaves de casa e se fosse embora para sempre, o mesmo empurrou-a dizendo-lhe que a mataria se a mesma lhe tirasse as chaves de casa.
· Agindo assim, sabia o arguido que causava dores e lesões no corpo da
· ofendida, bem como lhe causava medo receio e inquietação e que a atingia na sua honra e consideração, o que tudo quis.
· Sempre que humilhou, ameaçou ou agrediu a ofendida, sabia bem o arguido o que estava a fazer e nada o obrigava a adoptar esses comportamentos.
· Agiu do modo descrito, bem sabendo que infligia maus tratos à ofendida e que, assim, a molestava física, moral e psicologicamente, o que fazia com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder e de pelo uso da violência física e verbal manter a ofendida submissa à sua vontade.
· Fê-lo com total indiferença para com os deveres de respeito e cooperação e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e verbal.
· Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo a sua conduta censurável, proibida e punida criminalmente.
· O arguido aufere uma pensão anual de cerca de 7000 € por ano ao que acrescem cerca de 300 € mensais que o arguido retira da sua actividade como músico.
· O arguido é cego, vivendo com um casal amigo.
· Não tem antecedentes criminais
· A ofendida sofreu dores devido às agressões de que foi vítima, além de abalo psicológico, humilhação e medo, tendo tido necessidade da ajuda de amigas e vizinhas na execução dos trabalhos domésticos.
· Em consequência da agressão ocorrida a 24/01 os óculos da ofendida caíram ao chão e partiram-se, ficando inutilizados e ascendendo o seu valor a 462,97 €.
· Em medicamentos a ofendida despendeu a quantia de 72,37 €
· Por causa das agressões de que foi vitima, a ofendida recorreu ao Serviço de Urgência do Hospital I..., onde em cuidados de saúde que lhe foram ministrados foi despendida a quantia de 108 €».

2.2. Na sentença recorrida, não se enunciaram FACTOS NÃO PROVADOS.

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada da seguinte forma:
«O tribunal fundou a sua convicção:
· no CRC de fls. 109.
· no relatório pericial de fls. 15 e ss;
· no relatório de urgência de fls. 23 e ss,
· nos docs de fls. 97, 98 e 102
· no depoimento da arguida que de forma clara, convicta e sofrida confirmou a matéria constante da acusação. Referiu ainda que o arguido lhe partiu uns óculos
· no depoimento da testemunha GP..., vizinho da ofendida e que viu as marcas de agressão no corpo da mesma.
· no que se refere às testemunhas arroladas no pedido de indemnização civil, embora o seu depoimento fosse incoerente e contraditório quanto aos factos, depuseram de forma convincente quanto ao abalo psicológico sofrido pela ofendida.
· O arguido negou os factos, admitindo apenas quanto ao episódio ocorrido a 24 de Janeiro a interpelação da arguida por causa dos seus telefonemas e a sua resposta dizendo que ela o queria explorar. Depôs no que toca à sua condição pessoal».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
           
3.1. Vem o arguido MM... interpor recurso da sentença em que foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 e 2 do C.Penal, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período.
Peticiona a sua absolvição.
Para tanto, entende, em síntese, que a prova produzida foi mal apreciada.
Uma palavra inicial sobre o recurso em matéria cível.
A condenação cível foi do seguinte teor:
- foi condenado o arguido/demandado a pagar à demandante a quantia de € 2035,34, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (morais).
No que diz respeito aos princípios gerais atinentes à tramitação dos recursos ordinários, adianta o artigo 400°, n.° 2 do CPP  que «o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada», sendo tais requisitos cumulativos.
Ora, a alçada dos tribunais da 1ª instância era (e mantém-se), à data da formulação do pedido cível (9/6/2010[2]), de € 5.000,00[3] (artigo 24.°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro, e redacção decorrente do Decreto-Lei n.° 303/07, de 24 de Agosto).
Ao pedido cível deduzido nos autos foi atribuído o valor de € 3.035,34, tendo o demandado sido condenado a pagar ao demandante a quantia exacta de € 2.035,34.
Ou seja, conjugando-se tais disposições legais, a sentença proferida mostra-se insindicável, no que tange à condenação no pedido cível, por intermédio de recurso ordinário.
De facto, o valor do pedido cível e o valor da condenação cível não atingem os exigíveis € 5.000 e € 2500, respectivamente..
Em conclusão, e sem necessidade de mais considerações, há que concluir que tal parte da sentença é irrecorrível[4].

3.2. Antes de mais, urge verificar se estão correctas as conclusões apresentadas.
Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Contudo, no caso vertente, o recorrente indica, embora de forma muito imprecisa, mas sempre suficiente, no corpo da motivação as partes dos depoimentos gravados que crê ter sido mal valorados pelo tribunal.
Como tal, e mesmo considerando que a peça das alegações de recurso não prima pela perfeição processual, entendemos que o recurso satisfaz as condições mínimas para poder passar pelo crivo inicial.
Ou seja, e em conclusão:
O recorrente impugna a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada quanto ao RECURSO.
E tal faremos até ancorados em recente e sábia decisão do STJ, datada de 1/7/2010 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S1).
Nesse aresto, assim se escreveu:
«O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, corno tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do nº 4 do art. 412º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n. s 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da provei, esta tiver sido impugnada, nos termos  do artigo 412º, n.º 3,  não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7)- Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º  3 do art. 412º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)”.
E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas ais. a), b) e e) tem corno efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412.°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17- 2-05, proc. n.° 47 16/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-1 1-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora cm que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar “as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa”, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412.°, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente “escolher” a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379.°, n.° 1, al. e) e 425.°, n.° 4, do CPP».

3.3. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
· e dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.4. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Ora, analisando a decisão recorrida, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2 do CPP, mormente o erro notório na apreciação da prova, assente que o que invoca o recorrente na 1ª parte do seu recurso mais não é do que a alegação de um erro de julgamento, a analisar de seguida.
Diga-se ainda que a alegada «contradição insanável da fundamentação», aduzida na 2ª parte do recurso, só pode improceder na medida em que se refere o recorrente a juízos de valor apostos na sentença, sem que estejamos a falar de factos – de facto, as expressões tidas como contraditórias são escritas na parte da fundamentação de DIREITO da sentença, não relevando para efeitos da perfectibilização do vício do artigo 410º/2 b) do CPP, como atrás se delineou.
Por aqui, pois, improcede o recurso, mormente a conclusão B, assente ainda que a questão dos óculos se refere a matéria da decisão em matéria civil, a qual é, já o vimos, irrecorrível.

3.5. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[5].
            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.6. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.7. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.
O arguido impugna genericamente a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, rebatendo a credibilidade do depoimento da assistente, dizendo que ela, em julgamento, não foi clara, convicta nem sofrida, adjectivos com que o tribunal caracteriza esse depoimento de PM..., então companheira do arguido.
Recordemos a forma como o tribunal motivou desta forma tal factualidade dada como provada:
«O tribunal fundou a sua convicção:
· no CRC de fls. 109.
· no relatório pericial de fls. 15 e ss;
· no relatório de urgência de fls. 23 e ss,
· nos docs de fls. 97, 98 e 102
· no depoimento da arguida que de forma clara, convicta e sofrida confirmou a matéria constante da acusação. Referiu ainda que o arguido lhe partiu uns óculos
· no depoimento da testemunha GP..., vizinho da ofendida e que viu as marcas de agressão no corpo da mesma.
· no que se refere às testemunhas arroladas no pedido de indemnização civil, embora o seu depoimento fosse incoerente e contraditório quanto aos factos, depuseram de forma convincente quanto ao abalo psicológico sofrido pela ofendida.
· O arguido negou os factos, admitindo apenas quanto ao episódio ocorrido a 24 de Janeiro a interpelação da arguida por causa dos seus telefonemas e a sua resposta dizendo que ela o queria explorar. Depôs no que toca à sua condição pessoal».
Convenhamos que esta motivação não é brilhante, estando longe de ser exemplar.
Contudo, parece-nos suficientemente explícita para passar no crivo da própria nulidade de sentença ínsita na conjugação dos artigos 374º/2 e 379º/1 a) do CPP, vício esse nem invocado pelo recorrente, aliás[6].

3.8. Ouvindo as transcrições magnéticas do ocorrido no julgamento, na sua única sessão (13/12/2010), em estrito cumprimento do n.º 6 do artigo 412º do CPP, chegamos às seguintes constatações:
Não vislumbramos qualquer temeridade ou leviandade na apreciação da prova feita pelo tribunal «a quo».
O arguido nega ter agredido alguma vez a mulher, querendo dar a ideia de ter sido mais vítima do que algoz, transmitindo a ideia de uma mulher dominadora ou provocadora (como se a provocação justificasse a violência física), o que não convenceu o tribunal recorrido, nem sequer este de recurso.
Toda a outra factualidade foi dada como provada pelo depoimento da assistente – aqui chegados, é necessário que se comece a pensar que os depoimentos isolados das vítimas, se forem convincentes e resistirem a um hábil contraditório, poderão ser suficientes para a condenação de arguidos em crimes como este[7], ocorridos na «pretensa paz dos casarios», entre 4 paredes, invariavelmente sem testemunhas oculares.
E, nesse particular, ao contrário do que naturalmente defende o arguido (que apenas pretende que a sua própria valoração – necessariamente suspeita – da prova produzida em juízo se imponha à convicção criada pelo tribunal), o testemunho da assistente é eloquente, convincente e elucidativo quanto às concretas situações de agressão física e verbal de que foi vítima por parte do companheiro.
Ouvido o seu testemunho, também nós criámos a convicção de que esta mulher viveu momentos difíceis com este homem, estando perfeitamente justificado, por tal motivo, ter-se dado como provados os factos narrados na acusação.
Alega que viveu cerca de 2 anos com o arguido e que foi maltratada por ele, em Janeiro de 2009, agarrada como se fosse um boneco, empurrada contra uma parede por ele.
É verdade que durante o depoimento não assume logo que foi agredida mais do que uma vez, pondo sempre o acento tónico na agressão de Janeiro de 2010.
Mais tarde, refere a agressão de 2009, evento esse até que foi desculpado pela assistente…
Diremos aqui que não nos parece que pelo facto da assistente não relatar de imediato o episódio de agressões físicas de que foi vítima em Julho de 2009 descredibilize o seu depoimento, já que, com o natural nervosismo do julgamento, é plausível que tenha colocado a primazia factual no evento que veio a dar origem à ruptura do casal e já não tanto a outras.
A prova é livremente apreciada pelo tribunal. E neste jaez, sabemos que as cenas da vida conjugal se passam, a sua maior parte, no interior dos casarios, na pretensa paz dos lares, em segredos inconfessados e inconfessáveis, sem testemunhas ou sem que fiquem grandes vestígios dessa vivência.
Considerar que o testemunho de uma mulher violentada ou agredida é pouco para se condenar alguém é condenar estes tipos de crimes à impunidade. Mas veja-se que, in casu, não ficou o tribunal recorrido pelo simples depoimento da queixosa (vejam-se os registos médicos e hospitalares, assente que não é credível que a assistente se tenha auto-agredido, e o depoimento de GP...).
Diremos, não obstante, que o depoimento da assistente foi para nós relevante e suficiente.
Já quanto ao depoimento de GP..., também por nós ouvido, anotaremos que este chegou a ver marcas no corpo da assistente – menos que a mulher dele, mas chegou a ver… (e daí que não se corrobora a conclusão do MP de 1ª instância quanto ao erro do tribunal recorrido em afirmar que o GP...viu marcas no corpo da P...).
É irrelevante estar a ouvir as testemunhas do pedido cível mencionadas no recurso (H..., E..., A... e R...) pois nem sequer o tribunal as considerou convincentes quanto à prova dos factos naturalísticos.
Aludir também a uma eventual expulsão de casa do arguido por parte da assistente também não é relevante para este efeito pois sabemos muito bem que o ser agredido tem, não raras vezes, de tomar essas medidas drásticas para se defender da força do agressor.
E não se diga que o arguido, sendo invisual, não era capaz de agredir a companheira, como é óbvio. Qualquer pessoa pode agredir outra, ainda mais vivendo paredes-meias um com o outro, muito próximos um do outro, movendo-se pela voz e pela dinâmica habitual do casal. Aliás, a assistente refere que ele vê vultos…
Diga-se ainda que não é verdade que não conste da acusação uma específica injúria atribuída ao arguido, dirigida à companheira («burra»)[8]. Ora, também não ignoramos que nestes momentos mais hercúleos, a palavra injuriosa sai facilmente de boca em boca, podendo ter havido outras injúrias proferidas pelo arguido (que a assistente reproduziu em julgamento), sem que as mesmas tenham sido vertidas no texto do libelo acusatório (não podendo o tribunal usar tal nova factualidade, sem lançar mão do mecanismos dos artigos 358º e 359º do CPP, não o tendo feito correctamente).
Quanto às lesões concretas, a assistente fala de empurrão contra uma parede, o que justifica as marcas lesivas visualizadas a fls 15[9]. Tal basta para a condenação do arguido, não obstante poder ter havido a referência, em julgamento, a outros ataques a pernas ou pescoço.
Diremos também como o MP de 1ª instância:
«É manifestamente irrelevante para o julgamento dos factos imputados ao arguido e para avaliação da credibilidade do depoimento da assistente se esta se embriagava ou não, se caía e se era por quebra de tensão ou por embriaguez, não sendo esta que está sob julgamento nem estando qualquer dos episódios em questão relacionado com tais factos, sendo certo que apesar das insinuações feitas pelo arguido a tal respeito, nenhuma prova foi feita de que a assistente se embriagasse.
Não é verdade nem resulta da prova produzida em julgamento que o arguido tenha sido “posto na rua” num dia de temporal de por árvores abaixo. Se é verdade que no dia 27 de Fevereiro de 2010, sábado, se verificaram tais condições climatéricas em Portugal continental (uma semana após as cheias e deslizamentos de terras na ilha da Madeira) é igualmente verdade que o arguido saiu de casa nesse dia, como poderia ter sido noutro qualquer, não tendo sido “posto na rua”, não tendo ficado à chuva nem ao vento, tendo sido retirado do interior da casa pelo seu amigo S....
Assim, a afirmação da testemunha sobre as condições climatéricas desse dia prende-se exclusivamente com a localização temporal dos factos, perguntado sobre quando é que o arguido saiu de casa respondeu ter sido nesse dia e acrescentou que foi um dia de temporal, motivo pelo qual se recorda.
(…)
Nem a forma sincera como disse receber o dinheiro do arguido, esperar dele um príncipe e não lhe apetecer vesti-lo só para tomar café retira sofrimento à forma como depôs e ao que sentiu após a agressão sofrida em 24 de Janeiro de 2010, sendo crível o abalo psicológico, a vergonha e a humilhação que aquela senhora idosa sofreu por ter sido violentada por aquele que tentou apoiar e auxiliar, dentro das suas possibilidades físicas e económicas, dando-lhe casa, cuidados e companhia».
Fala quem esteve no julgamento e teve uma percepção real e próxima da prova produzida.
E dizer de alguém que é habitualmente dócil não significa que esse alguém não possa, num momento ou noutro, «perder a cabeça», errando…
Recordemos o que atrás já se deixou escrito - o tribunal de recurso não tem a imediação da prova oral nas mesmas condições em que esta ocorre no tribunal recorrido.
É por isso que a decisão só deva ser alterada quando seja evidente que a prova oral referida na fundamentação não conduz à decisão obtida; mas não quando, havendo duas versões sobre os factos, o juiz na 1ª instância optou por uma, fundamentando-a racionalmente em detrimento da outra.
Não basta, pois, ao recorrente dizer que determinados factos estão incorrectamente julgados. Seria necessário demonstrá-lo, nomeadamente face às regras da experiência comum, o que não logrou fazer, apesar do seu heróico e prolixo esforço.
Como tal, nenhuma censura nos merece a forma como é dada como provada a matéria constante da sentença recorrida.
Portanto, nunca ficou, pois, o tribunal, em situação de fazer funcionar o alegado princípio «in dubio pro reo», na medida em que não se gerou, no seio do julgador, qualquer dúvida «séria e honesta» com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação de versão dos factos prejudiciais ao arguido[10].
Aqui chegados, parece-nos, sem sombra de qualquer dúvida, que o tribunal recorrido analisou bem a matéria factual, decidindo acertadamente.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127.º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
            Na expressão regras da experiência incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
            Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
            Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo.
Não se verificou, por conseguinte, qualquer violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio e dos artigos 340.º, 355.º e 356.º, do CPP.
            Razão pela qual não há que alterar a matéria de facto quanto aos pontos sindicados no recurso, assente que não se vislumbra qualquer fundamento para tal.
Em CONCLUSÃO, da análise da prova produzida, através dos documentos juntos aos autos e da audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação da decisão de facto, sem esquecer que o recurso é um remédio e não um segundo julgamento, conclui-se que inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante da sentença recorrida, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada na decisão «a quo».           
Não merece, por conseguinte, qualquer censura a decisão – poderíamos dizer, a CONVICÇÃO[11] - proferida pelo tribunal recorrido quanto ao rol dos factos provados, já que o mesmo se mostra conforme a prova produzida e tomada com plena observância do disposto no art. 127º, do C. Processo Penal.    

3.9. A matéria de facto adquirida, porque evidenciadora de uma actuação violentadora da personalidade da ofendida e da sua vivência pessoal e familiar, por parte do arguido, configura-se como integradora da previsão normativa contida no nº 1, alínea b) e n.º 2 do artigo 152º do Código Penal revisto, não merecendo, por isso, qualquer censura a qualificação jurídico-penal encontrada na sentença, à luz da qual foi o mesmo sancionado criminalmente[12], estando, pois, fora de qualquer cogitação a defesa da sua absolvição.
Quanto à pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, nada temos – ou podemos - a objectar, perante os critérios dos artigos 70º e 71º do CP, sendo de a manter, por conseguinte[13].
No que se refere à condenação cível, PERMANECE intocada atenta a sua irrecorribilidade.

            3.10. Urge, contudo, fazer duas correcções na sentença, emendando-se dois lapsos materiais cometidos na motivação de facto e na fundamentação de direito [artigo 380º/1 b) e n.º 2 do CPP], nenhum deles importando qualquer modificação estrutural ou essencial (o próprio recorrente alude ao 1º lapso de forma natural no seu recurso, também lhe chamando «lapso»).
Assim,
· a fls 164, quando se lê na linha 21) «No depoimento da arguida (…)»
Dever-se-á ler:
«No depoimento da assistente (…)»
· a fls 167, na linha 21/22, quando se lê «(…) suspendo a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 6 meses»»
                        Dever-se-á ler:
«(…) suspendo a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos».

            III – DISPOSITIVO
           
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal desta Relação em
1º- corrigir o texto da sentença recorrida, determinando-se que
· a fls 164, quando se lê na linha 21) «No depoimento da arguida (…)»
Dever-se-á ler:
«No depoimento da assistente (…)»
· a fls 167, na linha 21/22, quando se lê «(…) suspendo a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 6 meses»»
                        Dever-se-á ler:
«(…) suspendo a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos»

2º- julgar não provido o recurso intentado por MM..., mantendo na íntegra a sentença recorrida.

            Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º/1 do CPP revisto pelo DL 34/2008 de 26/2 e 8º/5 do RCP, este remetendo para a Tabela III].


Paulo Guerra (Relator)
Alberto Mira


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Correspondente ao momento em que os direitos do demandante ficaram definidos, atendendo ao seu estatuto de lesado civil.
[3] Esta revisão do valor da alçada dos tribunais de 1ª instância é aplicável já aos autos, sendo certo que o processo inicia-se após o dia 1/1/2008 (em 27/1/2010 – cfr. fls 3), não estando, pois, pendente à data da entrada em vigor dessa revisão operada em 2007 (em 1/1/2008) - cfr. artigo 12º do DL 303/2007.
Note-se que o valor anterior de tal alçada era de € 3.740,98 (artigo 24º/1 da Lei 3/99 de 13/1 e DL 323/01 de 17/12).
[4]Não se deixará de dizer que, se se concluir que o recurso criminal terá de proceder, absolvendo-se o arguido, então, teremos de retirar consequências civis, nos termos do artigo 403º, n.º 3 do CPP.
[5] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.
[6] Note-se que nas conclusões não se arguiu qualquer nulidade deste jaez, sendo esse o adequado local para o fazer pois, repetimos, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões (cfr. nota n.º 1 deste acórdão)
Contudo, comungamos da tese segundo a qual tal nulidade do artigo 379º do CPP é de conhecimento oficioso.
Antes das alterações introduzidas pela Lei 59/98, não havia dúvidas de que as nulidades da sentença constantes das alíneas a) e b) (as únicas então existentes) do artigo 379º C P Penal, eram nulidades sanáveis e, portanto, dependentes de arguição (veja-se até que, no caso da nulidade prevista na alínea a) do art. 379º CP Penal, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo art. 374º nº 2, do mesmo diploma, decidiu o STJ, pelo Assento de 6.5.1992, in DR-I Série-A, de 6.8.1992, com dois votos de vencido, que tal nulidade não era insanável, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119º CPPenal).
Nesse diapasão, foi também proferido o Acórdão n.º 1/94 do Plenário das secções criminais do STJ, in DR-I Série-A, de 11.2.1994, firmando jurisprudência no sentido de que as nulidades da sentença, previstas então nas alíneas a) e b) do artigo 379º C P Penal, poderiam ser ainda arguidas em motivação de recurso para o tribunal superior, à semelhança do que para o processo civil resulta da 2ª regra da 1ª parte do nº 3 do artigo 668º do CPCivil.
Acontece que o texto do artigo 379º/2 do CPP sofreu alterações pela Lei n.º 59/98 de 25/8, tendo-se aditando uma nova alínea c) ao nº 1, e mudado o nº 2, que passou a ter a seguinte redacção: "as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 414º, nº 4".
Vislumbramos, assim que, se a nova alínea introduzida no nº. 1 do artigo 379º CPPenal, tem redacção semelhante à contida na alínea d) do nº 1 do artigo 668º CPCivil, já o novo nº. 2 do artigo 379º CPPenal corresponde a uma transposição parcial do nº 3 do art. 668º CPC e à adopção da doutrina contida no Acórdão 1/94, indo, porém, mais longe.
Enquanto no regime do C P Civil, a arguição das nulidades pode ser feita em sede de motivação de recurso, no nº 2 do artigo 379º, impõe-se essa arguição nessa altura, "as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso".
A parte final desta expressão só pode significar o conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime previsto no processo civil, que diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes processuais, neste sentido cfr. Ac. STJ de 12.9.2007, relator Silva Flor, consultável no site da dgsi.
No sentido de que a nulidade do alínea a) do nº. 1 do artigo 379º C P Penal é do conhecimento oficioso, decidiram, entre outros, os Acs STJ de 12.9.2007, relator Raul Borges e de 17.10.2007» (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 21/1/2009 (Pº6847/08 - 4ª Secção).
Para Paulo Pinto de Albuquerque, não obstante, a menção alternativa «ou conhecidas» mais não é do que uma referência ao poder de cognição do tribunal de recurso e não a consagração da oficiosidade do conhecimento desse nulidade do artigo 379º do CPP.
Não secundamos tal tese, contrária à nova letra de lei.
 

[7] Tal como em crimes em que são vítimas crianças.
[8] Mas há mais. O arguido vinha acusado de agredir verbalmente a ofendida, sendo mais do que uma as referências constantes na acusação a tais agressões verbais, designadamente:
«(...) no Verão de 2009 (...) o arguido chamou a ofendida de burra (...).
No dia 24.01.2010 (...) disse-lhe que o que ela queria era explorá-lo e ordenou à mesma que fosse para a rua (...).
No dia 26.01.2010 (...) dizendo que a mataria (...).
(...) sabia o arguido (...) que a atingia na sua honra e consideração (...).
Sempre que humilhou, ameaçou (...).
Agiu do modo descrito (...) pelo uso da violência física e verbal (...).
Fê-lo (...) pelo recurso à violência física e verbal».
Como tal, torna-se claro que a ofendida sempre se queixou que era muito ofendida verbalmente, não sendo tal uma novidade no julgamento.
[9]Da leitura atenta do relatório médico-legal de fls. 16 a 18, resulta claro e evidente deste elemento de prova pericial que na data do exame (28 de Janeiro de 2010) a ofendida apresentava: “dor na grelha costal direita; dificuldade em respirar; (no tórax) equimose esverdeada-amarelada na face lateral direita, por baixo da mama, com 6cmx5,5cm”. Mais resulta que as lesões verificadas são compatíveis com a informação — “agressão com empurrão seguido de queda que terá sido infligida por companheiro”.
[10]Extremamente expressivo, neste particular, o teor do Acórdão da Relação de Coimbra de 26/11/2008 atrás citado.
[11] Assinale-se que a prova necessária para a convicção do julgador não reside tanto na quantidade como na qualidade dos meios de prova produzidos.
Refere Paulo Saragoça da Matta que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Note-se ainda que a alínea b) do n.º 3 do art.º 412º do Código de Processo Penal fala de provas que imponham decisão diversa.
[12] Este tipo legal de crime foi introduzido, pela primeira vez, na versão originária do Código Penal de 1982, através do n.º 3 do art.º 153.º, que tinha por epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» e sofreu alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o art.º 152.º, sob a epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge», o qual foi alterado pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, e ainda pela Lei n.º 7/00, de 27 de Maio, passando a ter a epígrafe «maus tratos e infracções de segurança», sendo de salientar que antes desta última alteração (com a Lei n.º 7/00), o procedimento criminal pelo crime de maus tratos a cônjuge (n.º 2 do art.º 152.º do CP) dependia de queixa, embora na redacção dada pela Lei n.º 65/98, o Ministério Público pudesse dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
O art. 152º do C. Penal, na redacção resultante da revisão operada pelo DL nº 48/95 de 15/3, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 65/98 de 2/9 e 7/2000 de 27/5, dispunha, na parte que aqui nos interessa, que: “1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e a) Lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente; (…) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º; 2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus-tratos físicos ou psíquicos.(…)”.
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações ao ilícito criminal em referência, distribuindo por três preceitos as previsões que antes se encontravam concentradas num só.
Actualmente, os maus tratos a um conjunto de pessoas com quem o agente mantenha ou tenha mantido um relacionamento conjugal ou análogo, seja do outro ou do mesmo sexo e ainda que sem coabitação, bem como àquelas que coabitem com o agente e se encontrem particularmente indefesas, têm previsão autónoma no actual art. 152º, com a epígrafe de “Violência doméstica”.
Contudo, no essencial, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Relativamente ao anterior crime de maus tratos, foi, de facto, adicionada uma referência à comissão alternativa de modo reiterado ou não, clarificando-se aquilo que já constava da mais recente corrente jurisprudencial – por regra, «não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime (o termo «reiteração» prende-se a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham de ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si).
É uma relação de domínio ou de poder que está aqui em causa.
Plácido Fernandes, em interessante artigo publicado na Revista do CEJ, n.º 8, sobre as Jornadas sobre a Revisão do Código Penal (p. 308), opina, e nós com ele, que, «pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana».
[13] Anote-se um outro lapsus calami da Exmº julgadora, na parte da fundamentação de Direito – apesar de fixar a pena de prisão em 2 anos (o mínimo), a verdade é que deixa escrito a fls 167 que vai suspender tal execução de pena «pelo período de 2 anos e seis meses», o que nunca poderia ser possível face à nova redacção do n.º 5 do artigo 50º do CP, já aplicável aos autos. Contudo, no DISPOSITIVO aparecem os correctos 2 anos de suspensão.