Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/08.8TAIDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: FUNDAMENTO DE FACTO
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: NULIDADE PARCIAL DA SENTENÇA
Legislação Nacional: ART.º 374º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P., reclama do julgador o exame crítico das provas, que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.
Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão umas provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada.
Decisão Texto Integral: I – Relatório:
No processo comum singular n.º 106/08.8TAIDN, do Tribunal Judicial de Idanha-A-Nova, Secção Única, por sentença de 27/4/2010, o arguido EN... foi condenado, como autor material, pela prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 110 dias de multa, à razão diária de 15 euros, o que perfaz a quantia de 1650 euros, a que correspondem, nos termos do artigo 49.º, do C. Penal, 73 dias de prisão subsidiária.
Foi, ainda, na dita sentença, julgado procedente o pedido de indemnização cível formulado nos autos por AM..., tendo, em consequência, sido o demandado EN... condenado no pagamento àquele, a título de danos não patrimoniais, da quantia de 300 euros.
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Inconformado com essa decisão, dela recorreu, em 1/6/2010, o arguido EN..., defendendo a sua revogação e substituição por decisão que o absolva do crime de difamação, bem como do pedido de indemnização civil, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
1.Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Assistente, aqui Recorrido, deduziu acusação particular contra o Arguido, aqui Recorrente, à margem referenciado e identificado nos autos a fls…., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, do C. Penal, pelos factos vertidos na acusação particular, constante de fls….e que se dá por integralmente reproduzida, no que foi acompanhado pelo Ministério Público.
2. O douto tribunal a quo, para além dos factos que considerou provados e não provados, não considerou nem apreciou outros factos que foram alegados, que resultam dos autos e/ou resultaram dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, ou não valorou devidamente, como deveria ter feito, e que, salvo o devido respeito, têm interesse para a boa decisão da causa.
3. Face aos factos dados como provados em audiência de julgamento e constantes da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, aos depoimentos prestados em audiência de julgamento e a que faz referência a douta decisão, bem como aos depoimentos e aos factos ora relatados, resulta que foram incorrectamente julgados os factos 5) e 7) dos factos dados como provados: 5) O arguido proferiu as declarações referidas em 3), sabendo que ofendia a honra e consideração que são devidas ao assistente, o que logrou conseguir; 7) O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; bem como o facto VI dos factos não provados que refere “as imputações referidas em 3) dos factos provados foram originadas por motivos relevantes e sérios, para realizar interesses legítimos, e não tiveram o propósito de difamar.”.
4. Na verdade, face aos factos constantes dos autos e aos depoimentos prestados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos, e se atendermos a que as palavras proferidas pelo aqui arguido/recorrente e sujeitas a apreciação foram proferidas exactamente na mesma audiência que julgava o aqui assistente/recorrido por crimes de injúria e ameaça, processo n.º 54/06.6GEIDN, e em que foram dados como provados os seguintes factos, como consta de certidão extraída e junta aos presentes a fls…., em decisão transitada em julgado:
5ª- Factos provados:
“1. No dia 18 de Novembro de 2006, pelas 10:30 horas. O arguido aproximou-se de EN..., quando este se encontrava a executar tarefas agrícolas na sua propriedade rústica, denominada Salineiras, sita na freguesia de ..., área desta comarca.
2. Após uma breve troca de palavras, relacionadas com relações de vizinhança, o arguido, dirigindo-se a EN..., afirmou “mato-o a tiro, bem como aos seus animais”.
3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, dirigindo-se a EN..., afirmou “és como uma merda e não vales merda nenhuma”.
4. As palavras proferidas pelo arguido criaram no ofendido o receio de que aquele, no momento, atentasse contra a sua vida e integridade física e a dos seus animais.
5. Nesse momento, o ofendido deixou de executar os trabalhos que estava a fazer e dirigiu-se para o seu veículo automóvel sendo que o arguido tentou que este não fechasse a porta do veículo a fim de o impedir de se ir embora.”
6. Quer se queira quer não, é o próprio assistente/recorrido nos presentes autos que, dirigindo-se ao arguido/recorrente lhe diz: “mato-o a tiro, bem como aos animais”, e depois é visto na propriedade do arguido/recorrente, aparecem aramadas cortadas, desaparecem animais, aparecem animais na exploração do assistente/recorrido, alguns dos quais o assistente/recorrido recusa devolver ou entregar, aparecem animais mortos na exploração, então dúvidas não subsistem de que o aqui arguido/recorrente tinha, ao menos, fundamento sério para em boa fé ter feito as imputações que fez ao assistente/recorrido.
7. Termos em que, salvo o devido respeito, por se entender que o ora arguido/recorrente imputou ao assistente recorrido facto para realizar interesses legítimos e tinha fundamento sério para, em boa fé, o reputar como verdadeiro, conclui-se que o arguido/recorrente não é jurídico-penalmente responsável pela prática do crime por que foi condenado, devendo o mesmo ser absolvido da prática de tal crime, bem como do pedido de indemnização civil formulado.
8. Ao decidir em sentido contrário, o douto tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova carreada para os autos, designadamente da prova gravada, dando como provados factos e outros como não provados que se consideram incorrectamente julgados, bem como evidencia uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, padecendo, pois, a sentença, de um vício previsto no artigo 410.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.
9. E aplicou erradamente o direito contido nas normas dos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, ambos do Código Penal.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, em 11/6/2010, apresentou resposta, em que defendeu a improcedência total do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo valorou devidamente a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, motivando convenientemente a sua convicção, pelo que a sentença recorrida não merece qualquer reparo.
2. O artigo 127.º, do CPP, erige, enquanto princípio de apreciação da prova produzida, o da liberdade vinculada do julgador.
3. Os factos que tiveram por base o presente recurso foram motivados de forma adequada, parece-nos, na sentença proferida e ora em análise, de acordo com as provas constantes dos autos e produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento.
4. O erro notório na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
5. A sentença proferida nos autos jamais incorreu no vício que lhe imputa o arguido, face ao que se considera, para a lei processual penal, como erro notório na apreciação da prova, sendo certo que também não existe qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
6. O arguido não conseguiu provar que tinha fundamento sério para, em boa fé, imputar ao assistente o roubo e morte dos seus animais.
7. Ensina o Comentário Conimbricense do Código Penal, com a particularidade da actividade jornalística, para a qual a mens legislatoris especialmente se orientou nesta norma, que “(…) a boa-fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do jornalista na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. (…) Entre muitos outros aspectos, a observância de tal dever concretiza-se no cuidado na recolha de informações, na selecção e credibilidade das fontes, (…).”
8. Como proficientemente defende a sentença proferida nos autos, a fls. 320, cujo excerto se transcreve, “(…), ainda que se considere a alegada ameaça, atenta a circunstância em que foi proferida, e que consta igualmente daquela factualidade provada, idónea a criar no arguido a convicção de que o assistente mataria a tiro os seus animais, sempre se dirá que se impunha ao arguido diligências adicionais para aferir do nexo de causalidade entre os acontecimentos que veio a relatar naquela audiência de julgamento e a pessoa do ora assistente, devendo fazer uso dos meios legais próprios para o efeito e não discutir perante terceiros questões para as quais não tinha elementos objectivos de provar.”
9. Atendendo, pois, ao que se considera ser a boa fé para justificação de uma conduta como a que está em causa nos autos – e cuja exigência perfeitamente se compreende – certos estamos, salvo melhor opinião, que a sentença proferida pelo Tribunal a quo andou e argumentou bem, nos termos acima expendidos, interpretando e aplicando correctamente a norma do artigo 180.º, do C. Penal.
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O assistente/recorrido não apresentou resposta.
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O recurso, em 13/9/2010, foi admitido.
Nesta Instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 19/10/2010, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, concordando, no essencial, com a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância.
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, apenas o assistente, em 3/11/2010, exerceu o seu direito de resposta, no qual subscreveu, na totalidade, o douto Parecer do Ministério Público e aderiu, também integralmente, à resposta apresentada pela Senhora Procuradora-Adjunta na 1ª instância.
Por despacho de 15/12/2010, não foi admitida a renovação da prova requerida pelo arguido/recorrente.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.
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II. DECISÃO RECORRIDA (com relevo para o recurso): “(…)
III. FUNDAMENTAÇÃO:
A) Fundamentação de facto:
A.1) Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:
Quanto à acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público:
1) O assistente é arguido no processo n.º 54/06.6GEIDN, que corre termos no Tribunal Judicial de Idanha-A-Nova, processo esse em que é assistente o ora arguido.
2) No processo referido em 1), é imputada ao ora assistente a prática de um crime de injúria e de um crime de ameaça.
3) No dia 19/6/2008, em audiência de discussão e julgamento, o arguido, questionado pela Mm.ª Juiz se conhecia o ora assistente, respondeu do modo que segue:
Juiz: Conhece aqui o Sr. AM...?
EN...: Conheço sim
Juiz: Há quanto tempo?
EN...: Há muitos anos, mas não sei dizer quantos anos, há muitos anos que o conheço.
Juiz: É amigo, vizinho?
EN...: Não, temos propriedades que eram confinantes, ouvi dizer que venderam, não sei, as propriedades do pai, falava de vez em quando com o pai e com ele.
Juiz: Olhe, dá-se bem com este senhor?
EN...: Agora não.
Juiz: Mas antes…?
EN...: Antes dava.
Juiz: Dava?
EN...: Dava! Quer dizer, também tínhamos contactos muito rápidos, não é?
Juiz: Antes dos factos que estão aqui alegados, não tinha nada contra este senhor?
EN...: Não, mas antes disso já me dava mal com este senhor. Tinha algumas suspeitas, enfim…da sua conduta, da sua má conduta, algumas coisas que foram desaparecendo da propriedade, alguns excessos, condutas menos próprias, um dia, enfim…muitas coisas.
Juiz: Que nomes é que lhe chamou?
EN...: Muitos, meritíssima, chamou-me muitos nomes, ameaçando-me que me matava a tiro, e que matava as vacas todas e, fazendo um parêntesis, a mim não matou mas matou muitas vacas, são outros processos que estão a decorrer neste tribunal, se tão depressa o disse, mais depressa o fez (…). A instâncias do seu Ilustre Mandatário, o ora arguido disse:
EN...: Viemos embora, porque de facto não tínhamos condições para trabalhar, não é, com um clima destes, com ameaças, com estes improprérios, com esta conduta, não é, quer dizer, é isso que eu queria dizer, que isto tem um objectivo, Sr. Dr., criar mau estar para não vir à propriedade para eles poderem roubar à vontade.
Juiz: O Sr. Não pode dizer essas coisas, porque depois podem querer que o senhor prove aquilo que está a dizer, está bem? Vamos ter todos calma e vai responder às perguntas com serenidade.
4) As declarações constantes em 3) foram proferidas perante todos os que se encontravam no Tribunal: Juiz, Advogados, Funcionários e demais pessoas que assistiam ao julgamento.
5) O arguido proferiu as declarações referidas em 3), sabendo que ofendia a honra e a consideração que são devidas ao assistente, o que logrou conseguir.
6) O arguido proferiu as declarações referidas em 3), sabendo que o assistente, então arguido, não lhe podia retorquir convenientemente, dada a qualidade de arguido naqueles autos.
7) O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
8) Na parte confinante dos prédios explorados pelo arguido, sitos nas freguesias de ... e ..., e aqueles que foram propriedade dos pais do assistente ( ...), verifica-se que a aramada ora encontra-se cortada (possivelmente, com alicate), ora derrubada, sendo que, em alguns pontos, não está colocada.
9) Em 3 de Maio de 2005, FC... e esposa, MC…, RM… e AM... celebraram entre si contrato de arrendamento rural de um conjunto de prédios identificados no documento de fls. 210 a 217 dos autos, que formam um único conjunto predial denominado ...s.
10) JV… adquiriu a propriedade designada de ...s, propriedade dos pais do assistente, em Agosto de 2007, tendo tomado posse da mesma, em Fevereiro/Março de 2008.
11) O assistente permaneceu na propriedade ...s, nos anos de 2007 e 2008.
12) Em 5 de Abril de 2008, o arguido apresentou denúncia contra o ora assistente pela alegada retenção de um animal de raça bovina, no ..., ....
13) Em 8 de Abril de 2008, o arguido apresentou queixa-crime nos Serviços do Ministério Público contra o assistente pela apreensão, na sua propriedade, de 16 cavalos e 36 bovinos, pertença do arguido.
14) Em 4 de Abril de 2008, o arguido denunciou junto da ASAE o furto pelo assistente de animais bovinos, os quais são levados para a propriedade do assistente onde são trocadas as marcas auriculares e posteriormente abatidos para consumo público.
15) No dia 15 de Abril de 2008, o arguido apresentou denúncia junto da GNR – Posto territorial de ..., contra o assistente pelo furto de 26 animais de raça bovina.
16) Por sentença proferida nos autos de processo comum singular n.º 54/06.6GEIDN, transitada em julgado, AM… foi condenado, além do mais, pela prática, em 18/11/2006, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, e absolvido da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.
17) Dos factos provados da sentença proferida nos autos do processo referido em 16), consta que o ora assistente dirigiu-se ao arguido, em 18/11/2006, e disse “mato-o a tiro, bem como aos seus animais”.
Quanto às condições sócio-económicas do arguido:
18) O arguido é empresário e médico veterinário e aufere a retribuição mensal de € 2.000,00.
19) O arguido reside com a mulher e dois filhos, sendo um menor e outro maior, já licenciado.
20) O arguido reside em casa adquirida através de empréstimo bancário, cujo valor mensal é de € 800,00.
Quanto aos antecedentes criminais:
21) Por sentença proferida em 13/12/1999, pelo Tribunal Judicial de Idanha-A-Nova, no âmbito do processo comum singular n.º 48/98.3TBIDN, o arguido foi condenado pela prática, em Abril de 1998, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º, do C.P., na pena de 440 dias de multa, à taxa diária de € 7,50, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 12/4/2005.
22) Por sentença proferida em 19/2/2004, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 1910/03.9PTAVR, o arguido foi condenado pela prática, em 11/8/2003, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do C.P., na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 14,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 6/5/2005.
23) Por sentença proferida em 11/4/2005, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, no âmbito do processo comum singular n.º 1230/04.1TAAVR, o arguido foi condenado pela prática, em 20/3/2004, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, do C.P., na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 12,00, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 30/10/2006.
24) Por sentença proferida em 7/12/2005, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-A-Velha, no âmbito do processo comum singular n.º 662/04.0GAALB, o arguido foi condenado pela prática, em 16/12/2004, de um crime de violação de proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º, do C.P., na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 15,00, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 9/12/2007.
25) Por acórdão proferido em 26/6/2007, transitado em julgado em 28/5/2008, pelo Tribunal Judicial de Idanha-A-Nova, no âmbito do processo comum colectivo n.º 72/03.6GEIDN, o arguido foi condenado pela prática, em Novembro de 2003, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º, do C.P., na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
26) Por acórdão proferido em 27/11/2008, transitado em julgado em 12/1/2009, ppelo Tribunal Judicial de Idanha-A-Nova, no âmbito do processo comum colectivo n.º 58/06.9GEIDN, o arguido foi condenado pela prática, em 11/11/2006, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º, do C.P., na pena de 4 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Quanto ao pedido de indemnização civil:
27) Em consequência da conduta do arguido, o assistente ficou ofendido na sua honra e consideração.
28) O assistente sentiu-se humilhado e agastado com as afirmações proferidas pelo arguido.
29) A povoação de ... é um meio pequeno.
Quanto à contestação do arguido:
30) O arguido explora várias propriedades sitas no concelho de ..., em particular nas freguesias de ... e ....
31) Nas explorações de animias referidas em 30), o arguido tem gado bovino e cavalos.
32) O arguido tem uma exploração de animais na ... há mais de vinte anos.
33) Há vários anos que o arguido é vítima de roubos e furtos vários nas suas propriedades.
34) Das propriedades referidas em 30), desaparecem cabeças de gado, vacas, material e equipamento diverso como seja, entre outros, alfaias agrícolas, tractores, motores, semeadores, enfardadeiras, grades e escaraficadores, aramadas, cancelas, mangas de condução e vacinação de gado, bombas de água, tubagem de rega.
35) O assistente explorava propriedades próximas das propriedades do arguido referidas em 30)
36) Em propriedade do assistente foram encontradas cabeças de gado pertencentes ao arguido.
37) O arguido denunciou nos serviços do Ministério Público os futos e roubos de que foi vítima, processos que correm os seus termos com os n.ºs 10/08.0GEIDN, 74/09.9TAIDN, 294/08.3JACBR, 516/09.3JACBR e que, atendendo à conexão existente, foi determinada a sua incorporação no processo n.º 10/08.0GEIDN e deferida a competência para a investigação na P.J., conforme despacho do Exmo. Senhor Conselheiro Vice-Procurador-Geral da República.
38) O arguido sente impotência e revolta perante a devassa do seu património.
39) As imputações referidas em 3) dos factos provados foram motivadas pela defesa da propriedade, dos bens e do património do arguido.
A.2) Factos não provados:
Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente e no essencial:
Quanto à acusação particular:
I)O arguido proferiu as expressões referidas em 3) com a intenção de denegrir, vexar e humilhar o ora assistente.
Quanto ao pedido de indemnização civil:
II) A conduta do arguido causou graves danos morais ao assistente, pois sentiu aborrecimentos sérios, preocupações e mau estado psicológico.
III) O assistente é pessoa séria, honesta com créditos firmados no meio social onde vive.
IV) O assistente nunca deu azo a que o arguido lhe fizesse as imputações constantes do ponto 3) dos factos provados.
Quanto à contestação do arguido:
V) Em propriedade explorada do assistente, foram encontradas mangas de condução, tubagem e bombas de água, propriedade do arguido.
VI) As imputações referidas em 3) dos factos provados foram originadas por motivos relevantes e sérios, para realizar interesses legítimos e não tiveram o propósito de difamar.
VII) O arguido não tinha consciência que as imputações referidas no ponto 3) dos factos provados poderiam ser entendidas com propósito difamatório.
A.3) MOTIVAÇÃO DE FACTO:
(…)
A.3.1) Quanto ao crime de difamação:
Para considerar provada a factualidade descrita em 1) a 17) e 30) a 39), o Tribunal analisou criticamente a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as declarações prestadas pelo arguido.
O arguido admitiu o teor das declarações prestadas, na qualidade de assistente, em sede de audiência de discussão e julgamento, no âmbito do processo n.º 54/06.6GEIDN. Neste conspecto, o arguido declarou ser proprietário e explorador de várias propriedades agrícolas, particularmente nas freguesias da ... e ..., em ..., onde detém gado bovino e equídeos, e das quais os animias, materiais e equipamentos diversos desaparecem. Por sua vez, o assistente explorava algumas propriedades na região de ..., algumas próximas das propriedades do arguido, nas quais foram encontradas cabeças de gado e material pertença do arguido e tendo o arguido visto o assistente a carregar animais da sua pertença do interior das suas propriedades.
Mais explicou que, tratando-se esta questão de um problema social, a sua conduta naquele processo visou defender a sua propriedade, os seus bens e seu património, pelo que teve em vista realizar interesses legítimos, considerando ter fundamentos sérios para, em boa fé, reputar como verdadeiras as palavras proferidas.
As testemunhas JV…, filho do assistente, e JJ…, amigo do assistente desde 1972, e prestador de serviços agrícolas para o mesmo até Agosto de 2008, revelaram conhecimento directo sobre os prédios explorados pelo arguido e os prédios que confinam com aqueles e que pertenceram aos pais do assistente, bem como o tipo de gado existente em cada uma das propriedades, afirmando que na propriedade do arguido apenas existe gado bravo, sendo este o único proprietário de tal espécie na região, o tipo de aramadas colocadas em ambas, tendo afirmado que as aramadas da propriedade do arguido não são adequadas a deter o gado bravo.
EN…, não obstante o grau de parentesco com o arguido (seu filho), prestou um depoimento desinteressado e credível. Não obstante afirmar que, desde 2005, deixou de visitar a propriedade do pai sita em ..., permanecendo no local apenas quatro vezes por ano, revelou conhecer o número de animais existentes na propriedade e o número de animais desaparecidos, a vedação colocada e aquela que aparece cortada, afirmando, tal como o arguido, que a propriedade dispõe das condições naturais e estruturais para o número de cabeças de gado existentes no local, e que, não obstante tal facto, os animais desaparecem e aparecem mortos sem causa justificativa.
A testemunha referiu que, efectivamente, foram buscar animais bovinos à propriedade que pertenceu aos pais do assistente – ... -, mas que este entregou os mesmos sem qualquer oposição.
JP..., trabalhador do arguido desde 2006, presta serviços agrícolas na exploração de ... e prestou depoimento em sentido parcialmente coincidente com as declarações do arguido e o depoimento da testemunha EN…, no que concerne aos animais existentes na exploração e aqueles que desapareceram. Afirmou a existência de animais do arguido na propriedade que pertenceu aos pais do assistente – designadamente, cavalos e uma vaca -, tendo identificado os mesmos por se tratarem de raça brava, e que, quando se deslocava ao local para ir buscar os animais, era com o assistente que falava, não obstante a venda do ... a um indivíduo espanhol.
Mais afirmou a testemunha que a aramada da propriedade do arguido está cortada e que os animais saem para os outros terrenos e para a povoação da ....
PA... trabalhou na exploração agrícola do arguido até há cerca de nove meses, altura em que foi despedido pelo arguido. Não obstante a relação comprometida da testemunha com o arguido, o seu depoimento foi em sentido coincidente com os depoimentos das demais testemunhas no sentido de afirmar que as aramadas estavam cortadas, que o gado existente no local é bravo, que os animais saem da propriedade e circulam na via pública, que os animais desaparecem da propriedade em grande número, sendo certo que a propriedade tem caminhos públicos por onde circulam pessoas estranhas à exploração, sendo o depoimento da testemunha neste particular aspecto coincidente com o da testemunha JP... que afirmou circularem de moto 4 e cavalos nesses caminhos, sendo visíveis os rastos.
JV…, ganadeiro, actual proprietário do ..., propriedade confinante com a exploração do arguido, afirmou que, em 2007, existiam ovelhas no terreno e, em 2008, não existiam animais no local. A testemunha explicou o estado das aramadas e a substituição de cerca de vinte quilómetros das mesmas, na parte que confinavam com a propriedade do arguido e que se encontravam em mau estado. Mais afirmou que encerrou na sua propriedade dois bovinos, sendo um bravo, que não estavam brincados, tendo sido a testemunha JP... que esclareceu tratarem-se de animais pertença do arguido.
Confrontado com o teor das denúncias e queixas apresentadas pelo arguido, no que concerne à retenção de animais no interior da sua propriedade, a testemunha negou que, em 31.03.2008 e 04.04.2008, permanecessem no ... animais bovinos ou equídeos pertença do arguido. Instado sobre a permanência do assistente na propriedade, entre 2007 e 2008, confirmou a sua livre circulação, mas negou que o mesmo prestasse serviços para si, tendo apenas procedido à sementeira do terreno.
JÁ….z, filho do assistente, confirmou a retenção de um animal bovino, de raça brava, propriedade do arguido, num barracão no ..., como meio de prova num caso de alegado ataque de pessoa na via pública, tendo dado conhecimento de tal facto à GNR.
O estado das aramadas da propriedade do arguido, facto assente em 8), resulta dos depoimentos conjugados das testemunhas, nos termos sobreditos, e ainda da diligência de exame ao local realizada pelo tribunal.
O facto constante do ponto 9), no que concerne ao contrato de arrendamento rural celebrado com RV…, resulta das declarações do arguido que revelou conhecer a ocupação do ... por OV…, pai de RV…, dos depoimentos das referidas testemunhas – RV…e OV… -, e do documento junto aos autos a fls. 210 a 217.
OV…, feitor agrícola, e arrendatário do ..., entre 2005 e 2006, afirmou que, durante esse período, teve naquela propriedade ovelhas e vacas, animais comprados aos pais do assistente, e que, durante aquele período, nunca viu animais pertença do arguido na propriedade arrendada, nem trabalhadores do arguido ou o próprio no seu terreno.
Os factos constantes do ponto 10), referentes à aquisição do ... pela testemunha JV…, resultam do seu próprio depoimento, o qual se mostrou isento e credível, conjugado com as declarações do arguido, que afirmou a aquisição da propriedade pela testemunha, há cerca de ano e meio, com o depoimento da testemunha JJ…, o qual afirmou que, em Dezembro de 2007, JV…z fazia obras nas instalações da quinta e que, a partir de Agosto de 2008, deixou de prestar serviços agrícolas para o assistente no ..., da testemunha JÁ…, que demonstrou conhecer as datas de início e cessação do contrato de arrendamento rural celebrado com RV… e a compra da propriedade por indivíduo de nacionalidade espanhola, e das testemunhas em geral, as quais revelaram conhecer a venda da referida propriedade a um indivíduo de nacionalidade espanhola.
HP… prestou depoimento que não foi relevante para a descoberta da verdade, porquanto desconhecia os factos relevantes em discussão nos presentes autos.
Os factos constantes dos pontos 12) a 15) da factualidade provada, referentes às denúncias e queixa-crime apresentadas pelo arguido contra o assistente, reportadas ao furto de animais, resultam do teor dos documentos juntos aos autos a FLS. 153 A 160.
Os factos provados em 16) e 17) resultam da análise da certidão extraída dos autos do processo n.º 54/06.6GEIDN, junta a fls. 168 a 186.
A factualidade assente no ponto 37), referente aos inquéritos pendentes nos serviços do Ministério Público junto deste Tribunal e respectiva incorporação, resulta do teor do documento junto aos autos a fls. 113 a 115.
Face à prova produzida e concatenada entre si, dúvidas não teve o tribunal em considerar provados os factos tal como ficaram consignados.
Quanto aos factos provados em 5) a 7), refira-se que o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu com livre vontade de proferir as afirmações que proferiu, em sede de audiência de julgamento, visando com as mesmas imputar ao assistente o furto e dano de animais da sua propriedade, tendo consciência da idoneidade ofensiva para a honra e consideração do assistente de tais factos.
No que concerne aos factos provados relativos ao pedido de indemnização civil, o tribunal valorou os depoimentos das testemunhas JÁ…z e JJ…. As testemunhas, nos depoimentos prestados, para além de revelarem conhecimento directo sobre os prédios explorados pelo arguido e os prédios que confinam com aqueles e que pertenceram aos pais do assistente, bem como o tipo de gado existente em cada uma das propriedades, o tipo de vedação existente em ambas, afirmaram, de forma credível, que o assistente sentiu-se ofendido e humilhado com as imputações do arguido e que a situação objecto dos presentes autos afectou o dinamismo do assistente, levando-o a resguardar-se em casa e a evitar contacto com as demais pessoas.
A.3.2) Quanto á situação económica do arguido e condição pessoal:
A factualidade provada em 18) a 20), respeitante à situação pessoal e sócio-económica do arguido, alicerçou-se na valoração positiva das declarações do arguido, inexistindo outros elementos de prova que as infirmem e não sendo as mesmas excluídas pelas regras da experiência.
A.3.3) Quanto aos antecedentes criminais:
Os antecedentes criminais do arguido, factualidade provada em 21) a 26), resultam da análise do teor do certificado de registo criminal, junto a fls. 142 a 147 dos autos.
A.3.4) Quanto aos factos não provados:
Quanto aos factos não provados, assim são considerados ou por serem incompatíveis com os que resultaram provados, ou por não ter sido produzida prova quanto aos mesmos, sendo que a propriedade do arguido quanto aos prédios em discussão nos presentes autos dependia de prova documental que não for produzida.
Quanto ao demais alegado e que não consta da matéria de facto e não provada, o tribunal não se pronuncia porquanto considera tratar-se de matéria conclusiva ou de direito.
B)FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
(…)
B.1) ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS:
(…)
Cingindo-nos ao caso concreto, é patente que as declarações prestadas pelo ora arguido, em audiência de discussão e julgamento realizada no processo n.º 54/06.6GEIDN, consubstanciam a imputação de factos (juízos de afirmação relativos a dados de existência ou de realidade) sobre o comportamento ético-jurídico do ora assistente.
Com efeito, a «outra pessoa» são imputados factos, sob a forma de afirmações, que, ainda que na forma velada, na sua estrita objectividade, ofendem o bom nome, honra e consideração daquela, porquanto, de per si, e, sobretudo, quando integradas na estrutura global das declarações prestadas, são idóneas a fazer crer que o assistente furtou ao arguido animais e coisas, do interior da sua propriedade sita em ....
Acresce que ficou igualmente provado, designadamente pela prova testemunhal produzida, o sentimento de ofensa sentido pelo assistente.
Face ao exposto, dúvidas não restam quanto ao preenchimento dos elementos objectivos do crime.
Igualmente, a conduta do arguido materializa subjectivamente a prática de um crime de difamação.
O processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu com livre vontade de proferir as afirmações que proferiu naquela audiência de julgamento, tendo consciência da idoneidade ofensiva para a honra e consideração do assistente dos factos que a este imputou, tanto mais quando alertado para a sua conduta pela Mm.ª Juiz, não relevando neste aspecto, para preenchimento do tipo, o animus injuriandi vel diffamandi.
Todavia, para que se possa considerar como preenchido o ilícito criminal em análise, é necessário apurar se não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
(…)
Em matéria de causas de exclusão da ilicitude, dispõe o n.º 2, do artigo 180.º, do C. Penal, que “a difamação não é punível desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições: a) a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira” (Faria da Costa, ob. cit., pág. 615).
Como refere Oliveira Mendes, “o ónus da prova relativamente à verdade dos factos, bem como à boa fé, incumbe inquestionavelmente àquele que informa (…), sem que com isso se possa afirmar estarmos perante uma manipulação arbitrária e injustificável do princípio do in dubio pro reo, determinante de uma inconstitucional presunção de culpabilidade” (ob. cit., pág. 73).
No caso dos autos, e face à factualidade provada, o arguido não logrou provar a veracidade da globalidade das imputações efectuadas.
Da prova produzida, não foi possível concluir que o assistente tenha furtado animais ou coisas da propriedade do arguido ou que tenha morto animais. É um facto provado que desapareceram da propriedade do arguido animais e materiais. Mas não foi possível concluir que os desaparecimentos são imputáveis ao assistente. Por outro lado, quanto aos animais bovinos e equídeos que foram encontrados no ..., não foi possível afirmar que foram levados para aquele local pelo assistente, sendo, inclusivamente, discutível se este explorava a dita propriedade à data dos factos, e encontrando-se a permanência dos animias na propriedade justificada face aos depoimentos das testemunhas, sendo certo que todos afirmaram, inclusivamente o filho do arguido, que, quando solicitada a entrega dos animais ao assistente, a mesma nunca foi negada.
Acresce que o arguido também não logrou provar que tinha fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiras as afirmações proferidas. Escuda-se o arguido na alegada ameaça proferida pelo ora assistente e constante da factualidade provada da sentença proferida no processo n.º 54/06.6GEIDN – “mato-o a tiro, bem como aos seus animais” – para justificar o seu fundamento sério para, de boa fé, reputar como verdadeiras as expressões que proferiu naqueles autos.
Ora, ainda que se considere que a alegada ameaça, atenta a circunstância em que foi proferida, e que consta igualmente daquela factualidade provada, é idónea a criar no arguido a convicção de que o assistente mataria a tiro os seus animais, sempre se dirá que se impunha ao arguido diligências adicionais para aferir do nexo de causalidade entre os acontecimentos que veio a relatar naquela audiência de julgamento e a pessoa do ora assistente, devendo fazer uso dos meios legais próprios para o efeito e não discutir perante terceiros questões para as quais não tinha elementos objectivos de provar.
Assim, e face à factualidade provada, não tinha o arguido fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiras as afirmações proferidas.
Para fazer operar a causa de justificação prevista no citado n.º 2, do artigo 180.º, do C. Penal, necessário é ainda que a imputação do facto desonroso seja feita para realizar interesses legítimos – al. a.
No caso sub judice, as imputações referidas em 3) dos factos provados, foram originadas para realizar interesses legítimos – defesa da propriedade, de bens e do seu património.
Não obstante, não se mostrando preenchidos os pressupostos cumulativos do n.º 2 do artigo 180.º, do C. Penal, a conduta do arguido não está a coberto da referida causa de justificação.
(…)
Face ao exposto, EN… deve ser jurídico-penalmente responsabilizado pela prática, como autor material, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do C. Penal.”
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III. Apreciação do Recurso.
Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P., Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, Ac. do S.T.J., de 11/1/2001, Processo n.º 3408/00 – 5ª Secção.
As conclusões destinam-se a habilitar o Tribunal Superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito, pelo que «são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado (…), devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto da decisão», conforme refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 350.
Assim sendo, este Tribunal da Relação só tem de se pronunciar sobre as questões que estejam suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.º 2 e n.º 3, do C.P.P.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
As declarações oralmente prestadas em audiência foram documentadas em acta por referência aos respectivos suportes áudio, nos termos estipulados no artigo 363.º do C.P.P.
Deste modo, deverá conhecer este Tribunal de facto e de direito, de acordo com o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P.
Estão bem delimitadas as questões a conhecer:
1) Saber se houve erro de julgamento quanto a certos factos, invocando o recorrente a existência de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.
2) Saber se a sentença aplicou erradamente o direito contido nos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, ambos do Código Penal.
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Antes de avançarmos para a respectiva apreciação, importa, contudo, abordar uma questão prévia. Afigura-se-nos que a decisão recorrida padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, por referência ao n.º 2 do art. 374.º, do mesmo diploma, nulidade esta que é de conhecimento oficioso como reiteradamente vem salientando o Supremo Tribunal de Justiça. Na realidade, tal decorre inequivocamente da redacção do n.º 2 da primeira das disposições legais citadas, quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”.
Com efeito, por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença que: ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.
Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador pormenorizasse o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, do CPP – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/1/1997, C.J., Acs. do STJ, V, Tomo 1, pág. 172, e Ac. do S.T.J., de 27/1/1998, B.M.J. n.º 473, pág. 166. Actualmente, face à nova redacção do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, - aditamento à redacção do preceito: exame crítico das provasé indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 7/7/1999, C.J., Acs. do S.T.J., VII, Tomo 2, pág. 246.
Foi a referida Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007 levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nada alterou nesta matéria.
Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareçaquais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”, conforme resulta do Ac. do S.T.J., de 1/3/2000, B.M.J. n.º 495, pág. 209.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de base ao respectivo conteúdo.
Sem receio de errar, podemos afirmar que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.
Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão uma provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/5/2007, Processo n.º 247/07, 3ª Secção.
Ora, não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se obrigatório um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.
Em resumo, “a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 31/10/2007, Processo n.º 3280/07, 3ª Secção.
**** Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos manifestamente insuficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal, no que tange aos factos provados e não provados, ou seja, pela motivação, onde é patente a falta de exame crítico, não é possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o Tribunal a quo formasse a sua convicção. Na realidade, na sentença recorrida, em sede de fundamentação da decisão em matéria de facto (motivação), podemos encontrar três partes distintas:
a) os dez primeiros parágrafos (fls 309 e 310), em que são feitas considerações genéricas, aceites por todos, sobre os princípios a que deve obedecer a apreciação da prova, os quais não foram transcritos no presente acórdão, na medida em que nada acrescentam ao caso em concreto;
b) os vinte parágrafos seguintes (fls. 310 a 313), acima transcritos – com início em “para considerar provada a factualidade descrita em 1) a 17) e 30) a 39)…” até “…resulta do teor do documento junto aos autos a fls. 113 a 115.” -, nos quais a sentença descreve, em resumo, o que foi dito pelo arguido, pelas testemunhas, além de remeter para o valor dado a certos documentos (nesta parte, pode ser incluído, ainda, o parágrafo em que é feita referência ao pedido de indemnização civil – fls, 313 e 314);
c) dois parágrafos (fls. 313), em que pode ser lido o seguinte: “Face à prova produzida e concatenada entre si, dúvidas não teve o tribunal em considerar provados os factos tal como ficaram consignados.
Quanto aos factos provados em 5) a 7), refira-se que o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu com livre vontade de proferir as afirmações que proferiu, em sede de audiência de julgamento, visando com as mesmas imputar ao assistente o furto e dano de animais da sua propriedade, tendo consciência da idoneidade ofensiva para a honra e consideração do assistente de tais factos.”
****
Face ao exposto, é evidente que o exame crítico da prova se encontra ausente da motivação que consta da sentença, na parte que agora interessa considerar.
Na realidade, a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida peca por não ser persuasiva, revelando insuficiências que põem em dúvida a racionalidade e a coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à convicção do tribunal a quo no tocante à convicção sobre os factos.
Se bem repararmos, apenas os dois parágrafos citados em último lugar apresentam alguns laivos de análise crítica da prova, e, mesmo assim, muito ténues, nada assertivos.
Vejamos.
Por um lado, a sentença considera que “face à prova produzida e concatenada entre si, dúvidas não teve o tribunal em considerar provados os factos tal como ficaram consignados.”
Por outro lado, pode ser lido na sentença que “quanto aos factos provados em 5) a 7), refira-se que o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu com livre vontade de proferir as afirmações que proferiu, em sede de audiência de julgamento, visando com as mesmas imputar ao assistente o furto e dano de animais da sua propriedade, tendo consciência da idoneidade ofensiva para a honra e consideração do assistente de tais factos.”
Simplesmente, não se retira da sentença qual o processo de raciocínio do tribunal na formação da sua convicção.
Há uma omissão total quanto a isso.
Certamente que não é através de dois parágrafos com o teor dos ora transcritos que se faz a análise crítica de vinte anteriores parágrafos.
Existe uma impossibilidade prática de o fazer.
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Qual o motivo pelo qual o tribunal a quo desvalorizou por completo a versão trazida aos autos pelo arguido, sendo manifesto que, há vários anos, está presente um mau ambiente entre si e o ofendido?
Qual o motivo pelo qual o tribunal a quo entendeu que o arguido, ao proferir as expressões dadas por provadas, pretendeu ofender a honra e consideração de AM…, sendo certo que, conforme consta do facto provado n.º 3, parte final, a dado momento, o Senhor Juiz disse “…Vamos ter todos calma e vai responder às perguntas com serenidade.”, o que, pelo menos, faz pressupor que o arguido se encontrava nervoso, não medindo bem o valor e as consequências do que estava a afirmar, sem esquecer que, muitas vezes, em julgamento, como ensina a experiência, são proferidos, num primeiro momento, muitos desabafos inconsequentes, havendo que distinguir o trigo do joio.
A talhe de foice, o tribunal cuidou de saber se o arguido, após a dita advertência, continuou pelo mesmo caminho ou mudou de discurso?
Qual o motivo pelo qual o tribunal a quo não fez referência ao que foi dito pela testemunha OV… - sessão de 26/3/2010, referência 318802, a 28:22:
“O advogado (mandatário do arguido): Foram lá para ir buscar animais. O sr. AM… não os deixou ir buscar os animais, qual o teor da vossa conversa, a justificação para isso?
O.V.: Não houve conversa.
O adv.: Então?
O.V.: Ponha-se daqui para fora, mais nada?”
E a 21:52:
“O adv.: O Sr. AM… não os deixou entrar?
O.V.: Impediram-nos de tirar os animais, assim como utensílios, cancelas, utensílios agrícolas…”
E a 22:52:
“Adv.: Os animais nunca mais vos foram entregues? Nem esses instrumentos?
O.V.: Não! Não!
Adv.: O Sr. AM… deu explicação?
O.V.: Não!”
Qual o motivo pelo qual o tribunal recorrido não aludiu ao que foi dito pela testemunha PA... – sessão de 26/3/2010, referência 318802, a 9:07 (referindo-se ao terreno explorado pelo assistente):
“Adv.: Apareciam lá vacas mortas?
P. A.: Apareciam lá vacas mortas.”
Qual o motivo pelo qual o tribunal recorrido não se referiu ao que foi dito pela testemunha JM… – sessão de 19/2/2010, referência 315667, a 10:33:
“Adv.: Alguma vez viu o Sr. AM… nas propriedades do arguido?
J.M.: Sim. Vi. Muitas vezes. Dentro das aramadas.
E a 13:40 (referindo-se ao gado do arguido):
“J.M.: Vi cabeças de gado morto na propriedade do AM….”
E a 15:12 (referindo-se a cavalos do arguido encontrados na propriedade explorada pelo assistente):
“Adv.: Aqueles cavalos eram do Dr. EN...?
J.M.: Eram sim. Ele (AM…) não nos quis dar.”
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O exame crítico da prova nos presentes autos passa, necessariamente, por uma explicação quanto às perguntas acabadas de fazer.
Por conseguinte, tendo em conta as disposições conjugadas dos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, a sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, nos preditos termos, na parte supra referida, abrangendo, consequentemente, o pedido de indemnização civil que se correlaciona com o dito crime de difamação.
Prejudicado fica, pois, o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
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IV. Decisão:
Nestes termos, decide-se declarar a nulidade parcial da sentença do tribunal a quo, na parte relativa à motivação acima descrita, devendo proceder-se à elaboração de nova decisão final que observe o supra exposto, quanto à fundamentação da decisão de facto.
Sem custas.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo